Entrevista: Memória de Peixe lança “III” e deseja fomentar o lado positivo da troca cultural entre Brasil e Portugal
A grande novidade do trabalho, que procura transmitir uma mensagem de paz e de esperança em função do conturbado cenário mundial, passa pela exploração da voz como fator determinante

entrevista por Pedro Salgado, especial de Lisboa
O encontro com os Memória de Peixe começou numa tarde de sexta-feira no Estúdio Mãe do Céu, em Lisboa, onde o guitarrista e fundador da banda, Miguel Nicolau, apresentou o espaço no qual o grupo trabalha e compõe a sua música. A banda, de matriz instrumental, formou-se em 2011 quando Miguel criou um projeto de guitarras em ‘loop’ ao qual se juntou o baterista Nuno Oliveira. O álbum homônimo de estreia, lançado em 2012, denotou um espírito roqueiro e imediato (com ecos dos Battles e das bandas da Warp Records) e proporcionou ao duo uma boa projeção e receptividade crítica em Portugal além de participações em festivais como Milhões de Festa (Portugal), Liverpool Sound City (Inglaterra) e Coquetel Molotov (Brasil), entre outros.
Seguiu-se o disco “Himiko Cloud” (2016), que contou com Marco Franco na bateria, representativo de uma fase mais agressiva, com menos barreiras e imposições de formas, de cariz mais exploratório e cruzando a fantasia e o sci-fi. O trabalho favoreceu as ambições do grupo, que excursionou os palcos europeus com maior frequência. Atualmente, os Memória de Peixe apresentam-se como um power trio composto por Miguel Nicolau (guitarra, vozes), Filipe Louro (baixo, vozes) e Pedro Melo Alves (bateria, vozes) e estão com álbum nas plataformas, “III” (2025). O disco terá edição em vinil pelo selo leiriense Omnichord Records e em cassete pela editora Ticket To Ride Records.
A grande novidade do trabalho, que procura transmitir uma mensagem de paz interior e de esperança em função do conturbado cenário mundial (propondo igualmente uma viagem e sumarizando os caminhos sonoros anteriores), passa pela exploração da voz como fator determinante no ‘storytelling’ e no potencial melódico da banda. Exemplo disso são faixas como “Under The Sea” ou “Not Tonight”, onde o contributo vocal do músico lisboeta Norberto Lobo, que colaborou na fase inicial do álbum, atestou a sua importância no processo criativo dos Memória de Peixe. No disco, destacam-se igualmente o single cintilante “Good Morning” e o seu arrebatado sucessor (“3:13”), que explora um lado vertiginoso, inspirado no universo ficcional e desafiador de David Lynch, e inclui um solo do saxofonista José Soares.
O álbum termina de forma interessante, com a orquestral “Good Night”, traduzindo o gosto do trio pelo universo da música clássica. Sobre a faixa, Miguel Nicolau explica o seu âmago e funcionalidade: “A música foi composta pelo Pedro Melo Alves. Ele achou que devíamos fazer um ‘medley’ de todas as canções, das partes identitárias e melodias e recontextualizá-las para fechar o disco. Foi quase como uma gravação perdida algures no espaço e no tempo tal como um astronauta vem de outra realidade. Nós gostamos de brincar com estas mensagens que até podem vir do futuro”.
Em dezembro de 2024 os Memória de Peixe fizeram um tour nacional de pré-apresentação de “III” que, segundo Miguel Nicolau, “surpreendeu-nos pela boa adesão do público, que ainda se lembrava do projeto ao fim de vários anos e revelou vontade em conhecer os novos passos da banda”. Presentemente, os Memória de Peixe estão a apostar fortemente num concerto de apresentação do álbum na Culturgest (Lisboa), a 16 de abril, e Miguel promete que o trio fará mais shows de norte a sul de Portugal.
Quando o questiono sobre a maior ambição do grupo, o fundador e guitarrista dos Memória de Peixe revela um sentido prático: “O objetivo é continuar a poder ter o privilégio de fazer a música que nos apraz e, de alguma maneira, as pessoas gostarem de escutar a banda”. E expressa por fim um sentimento mais amplo. “A música atualmente é um adereço para alguma coisa. Por vezes como consequência do mundo em que vivemos. Portanto, quando aparece alguém que se esforça para superar o gesto básico de fazer ‘scroll’ ou seja, procura ir aos shows e quer saber mais sobre um grupo, trata-se de um ato admirável. Eu sei o privilégio que representa essa atitude, porque faço isso com os outros e comigo também. O meu papel é de tentar ao máximo servir a música, aquilo que puder fazer para ajudar e o resto vem por acréscimo”, conclui.
De Lisboa para o Brasil, Miguel Nicolau, guitarrista e fundador dos Memória de Peixe, conversou com o Scream & Yell:
Porque demoraram nove anos para fazer “III” (2025) e que objetivos pretendiam alcançar com este trabalho?
O percurso de nove anos, às vezes, acaba por ser não ser o ‘timing’ que idealizamos quando começamos os projetos, pelo meio houve a pandemia e depois acontece a vida que nos traz coisas muito interessantes. Faz com que procuremos novos caminhos e as outras pessoas procurem o seu rumo também. No fundo nós andamos à boleia (carona) daquilo que é o crescimento pessoal e individual, porque escutamos música diferente, crescemos enquanto indivíduos e trabalhamos com diversos artistas. A mudança sônica dos Memória de Peixe tem muito a ver com isso. Está igualmente relacionada com o fato de eu deixar de pensar tanto em mim e no projeto e aprender mais com os outros. Esta posição de produtor musical (trabalhou com JP Simões, Da Chick, Lisa Sereno ou Monday) em que também me encontro é uma colaboração artística, mas depende mais dos outros músicos. Isso foi muito importante para perceber que existem imensas realidades diferentes. Por exemplo, a voz era uma coisa que eu não usava muito, e uma canção quando tem um poema existe, também, a parte lírica, mas esse lado evoca imagens e sentimentos. A música instrumental pode fazê-lo, no entanto não é tão direta e até permite sonhar mais. Mas, a presença da voz ou a premissa de criarmos histórias foi algo que neste disco é determinante. Acabou por ser o culminar destes nove anos e de trabalhar muito mais com referências e sonoridades diferentes e de colaborar com artistas que cantam. Quando conheci o Pedro Melo Alves chegamos à conclusão que partilhávamos imensas influências musicais, onde em várias delas a voz era apenas um instrumento ou carregava uma mensagem. A partir daí comecei a perceber que havia espaço no disco para criar um todo que nos caracteriza agora.
“Memória de Peixe” (2012) pende ao pop/rock e assente em loops sobrepostos de guitarra e “Himiko Cloud” (2016), não renegou as bases iniciais, mas apostou numa maior exploração cruzando a fantasia e o sci-fi. Globalmente, “III” (2025) mantém o espírito de viagem sonora anterior, mas a banda ganha um novo fôlego com a adoção do psicadelismo e da influência jazzística. Concorda com esta leitura?
Sim, concordo. Acho que, como você diz, nos outros discos já havia espaço e gosto por essa área. Mas, com os músicos que compõem o grupo agora e com a abertura que eles proporcionam para se poder trabalhar nas canções desta forma, intensamente, permite perceber várias perspetivas das mesmas músicas. Por vezes não há tempo para fazer isso e aqui fizemo-lo porque era o que queríamos. Incorporamos lados e gêneros diferentes dentro da própria faixa, porque a canção tem momentos. O objetivo é que a música seja expressiva a ponto de contar uma viagem. Se a determinada altura da viagem existe um derrapar, porque é que essa tensão não pode ser posta até no próprio tempo da música e o universo começar a dessincronizar-se? Há que pensar na faixa como uma viagem e ter este leque de opções. Isso é possível quando tens músicos que entendem a música como uma expressão maior e não estão agarrados a um determinado estilo, com o qual não tenho nada contra. O que descobri nestes músicos fantásticos e amigos, em que partilhamos várias influências, foi que quando fazemos música só estamos a pensar na ideia. A implementação dos gêneros que você falou às vezes é inconsciente. O que pensamos é numa canção que tem uma história, a qual, ocasionalmente, criamos na cabeça para ajudar o processo de composição e quando o universo começa a dessincronizar, pede uma coisa diferente. A partir daí vamos trabalhar sem perder o lado da canção. Nós pretendíamos que fosse um álbum equilibrado entre aquilo que é a audição de uma música e o que são as mensagens que podem viajar para outros lados. O “Himiko Cloud” (2016) foi um disco muito intenso e imersivo e apesar de eu gostar bastante dele, não é para todas as ocasiões. O primeiro álbum (“Memória de Peixe”, de 2012) era mais imediato porque eram canções mais pop e rock. Em “III” (2025) tentamos equilibrar um pouco as coisas.
“Good Morning” é uma faixa cintilante, renovada e sugere o nascer de um novo dia. Foi por essa razão que a escolheram como primeiro single?
Sem dúvida. Para nós, a faixa fala sobre um acordar que vem de um momento distópico, que é um pouco o que estamos a viver com estas questões políticas, de instabilidade e desinformação e até de repetição da própria história. Há aqui um lado dos Memória de Peixe que é um ‘full circle’ e que as pessoas às vezes como são desinformadas não se apercebem o que está por detrás de certas ações. Por isso, a faixa “Good Morning” está contextualizada neste período atribulado do mundo e o vídeo tenta passar isso. Há também uma ficção, no sentido em que isto está prestes a acabar e dava algum jeito que viesse uma mensagem. Neste caso, a mensagem vem de alguém de outra realidade que traz um aviso à navegação, despertando e acordando, antes que aconteça aquilo que está próximo de suceder. Também pode ser algo que aconteceu a essa pessoa noutra vida ou realidade. Essa é a grande mensagem de “Good Morning”, que responde de forma metafórica, mas é basicamente o que queremos passar. Há uma nova alvorada para nós e um sentido de missão em que os Memória de Peixe pretendem dar um pouco dessa alegria que o disco transmite. É um álbum que fala da gravidade da nossa situação e tenta igualmente dar esperança, porque o mundo já passou por coisas piores e sobreviveu.
Este álbum será lançado em vinil pela Omnichord Records e em cassete pela Ticket To Ride Records. Como avalia o trabalho do selo leiriense Omnichord e a sua ligação com os Memória de Peixe?
Eu sigo o trabalho da Omnichord Records há muitos anos, aliás como não seguiria quando eles têm estado envolvidos em experiências musicais, mas também comunitárias e agregadoras. Isso é uma missão humana e transcende qualquer conversa que se possa ter sobre determinada editora. Os artistas com quem eles trabalham são referências no panorama musical português. Eles têm feito bastante pelos músicos, pela arte, para nos unirmos, que é uma coisa cada vez mais difícil nos dias que correm, e para procurar desafios mais amplos. Isto surgiu naturalmente, porque há projetos em que o Pedro Melo Alves está envolvido com a Surma e enquanto produtor eu trabalhei o disco de Bloom (de JP Simões), tal como o álbum da Lisa Sereno e ambos foram editados pela Omnichord Records. Portanto, já havia admiração pelo trabalho desse selo. Eles são uma família e pertencem à zona oeste de Portugal como eu (Miguel Nicolau é natural da cidade de Caldas da Rainha). A ligação existe e conheço muitos músicos de lá.
Relativamente à música brasileira, existem artistas que vocês admirem e com os quais gostassem de fazer uma parceria?
O Brasil está com uma cena independente e alternativa incrível. Quando eu era miúdo (garoto) escutava os clássicos brasileiros e o Tom Jobim e aprendi a tocar guitarra a partir da bossa nova antes de qualquer coisa. Quando atuamos no festival Coquetel Molotov, no Recife, em 2013, percebemos que havia uma cena gigante. Temos o Rodrigo Amarante, Cícero, a Maria Luíza Jobim que na época tinha um projeto (Opala) e depois lançou o seu disco, os inevitáveis e espetaculares Boogarins e até o Carne Doce. Eu acompanho muito o que se vai fazendo e até tenho uma playlist onde incluo os artistas que mencionei. Sei também que existe uma abertura muito grande em Portugal para esses músicos estarem cá e atuarem regularmente. Estou a pensar no Tim Bernardes e tantos outros. Nós gostamos de todos. Por isso, se houver abertura para fazer algo nós teremos interesse em pensar nisso, mas tem de fazer sentido para ambos. Não aponto um nome específico porque existem muitos e adoramos a cena brasileira que está a acontecer atualmente.
Qual é a mensagem dos Memória de Peixe para os leitores do Scream & Yell?
Estamos todos juntos. Essa é a grande mensagem. A música tem este lado agregador e unificador e, especialmente, em alturas onde tentam fazer exatamente o oposto. Somos todos representantes e neste momento Portugal, Brasil e o mundo todo precisam de pensar nisso. A nossa ligação é óbvia. Nós queremos muito fomentar o lado positivo que existe na troca cultural e o caminho não pode ser pela separação, pelo preconceito e é precisamente o contrário. A música prova historicamente que serve como linguagem universal. Portanto, ainda mais estranho é estarmos a criar separações entre aquilo que é melhor e pior ou entre o que vem primeiro ou depois. Pegando nesse fato, estamos juntos e vamos continuar a fazer por continuarmos unidos. É esse o cerne deste disco e de sermos igualmente resilientes e puxarmos para a frente. Eu creio que é uma mensagem de paz interior e de procurarmos a paz com os outros. Isso é suficientemente universal para que as pessoas percebam que estamos a viver um momento conturbado no mundo e que precisamos de nos unir. O álbum dos Memória de Peixe é só sobre a paz interior e percebendo quem somos entendemos qual é o nosso lugar no mundo e as ações concretas que podem ser feitas para que melhoremos o atual panorama. No fundo, este disco tenta dar algum conforto às pessoas nesta fase difícil em que vivemos.
– Pedro Salgado (siga @woorman) é jornalista, reside em Lisboa e colabora com o Scream & Yell desde 2010 contando novidades da música de Portugal. Veja outras entrevistas de Pedro Salgado aqui. A foto que abre o texto é de Anna-Bobyrieva.