Em Salvador, Gilberto Gil inicia turnê de despedida com show grandioso na Fonte Nova

Aos 82 anos, Gilberto Gil mostrou que ainda tem muito vigor e muito a dizer. Se algumas de suas últimas apresentações eram mais mornas, o baiano ratificou, na Fonte Nova, seu status de gigante...

Mar 20, 2025 - 14:33
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Em Salvador, Gilberto Gil inicia turnê de despedida com show grandioso na Fonte Nova

texto de Nelson Oliveira
fotos de @pridia@30ebr

No fim de semana de 15 de março, o estádio da Fonte Nova, em Salvador, recebeu um espetáculo. Um clássico. Para uma parcela da capital baiana, a frase poderia valer para o Ba-Vi, disputado por Bahia e Vitória, válido pela final do Campeonato Baiano de futebol. Para outra parcela, no entanto, a sentença se aplica ao sábado, quando Gilberto Gil deu o pontapé inicial a “Tempo Rei”, sua turnê de despedida dos palcos. E, para cerca de 53 mil presentes na arena, o artista passeou pelas suas mais de seis décadas de carreira com maestria, numa apresentação pujante de cerca de 2h30, ainda que sua voz seja mais econômica do que era anos atrás.

Gilberto Gil entrou em cena às 20h35, com pouco mais de meia hora de atraso, após os telões da arena exibirem 10 minutos de anúncios publicitários e vídeos em que o baiano refletia sobre sua carreira, a turnê e o tempo. No palco, uma estrutura helicoidal de LED ratificava o discurso de permanente mudança que o artista compartilhara nas falas expostas pouco antes – afinal, formas espirais carregam consigo esta simbologia.

A queima de fogos que anunciou a entrada do artista no palco trazia consigo a promessa de celebração. E foi assim que Gil abriu o show: com a festiva “Palco”, composta em 1980 como símbolo de despedida da carreira – e que teve efeito contrário em sua trajetória, revigorada pelo hit. Em seguida, o baiano passou por “Banda Um” e “Tempo Rei”, canção que dá nome à turnê e alude às transformações que o andamento da vida provoca. Ao fim da terceira faixa, o soteropolitano agradeceu à presença do público, que classificou como motivação para sua trajetória musical, e puxou um trecho de “Aqui e Agora”, reafirmando que não existiria outro lugar onde gostaria de estar naquele momento.

Depois disso, o show passou a contar a trajetória do artista em blocos temáticos e mais ou menos cronológicos, reverberando a ideia de relatividade do tempo. Assim, foram encadeadas canções que até compuseram os mesmos estágios da carreira do baiano, mas não necessariamente obedecendo uma ordem ligadas a seus anos de lançamento.

Primeiro, Gilberto Gil foi até suas origens musicais, resgatando os ritmos que o influenciaram a seguir carreira musical e calcaram parte das bases do movimento tropicalista: o baião, na figura de Luiz Gonzaga, e o samba de Dorival Caymmi, que também desaguaria na bossa nova. Assim, passeou por “Eu Só Quero Um Xodó”, de Dominguinhos, que gravou nos anos 1980, e a autoral “Eu Vim da Bahia”, que ficou muito associada à voz e ao toque de violão sincopado de João Gilberto. Na primeira canção, Gil deu destaque ao sergipano Mestrinho, que comandou o acordeom no espetáculo (além de alguns arranjos) e viria a ganhar espaço outras vezes ao longo da noite.

O segundo bloco temático foi dedicado ao tropicalismo e à oposição do baiano à ditadura militar. Para lembrar de seus anos como um dos fios condutores do movimento vanguardista que sacudiu a música popular brasileira, fundindo gêneros populares com guitarra elétrica e lisergia, Gil começou com “Procissão” e depois por “Domingo no Parque”, duas canções que há muitíssimo tempo não compunham seu repertório.

Depois, Gil apresentou “Cálice”, de sua autoria e imortalizada por Chico Buarque e Milton Nascimento, que raras vezes cantou. Nos momentos de lembrança da repressão, da censura, do AI-5 e dos presos e mortos políticos, como Rubens Paiva, uma das figuras centrais de “Ainda Estou Aqui”, filme brasileiro vencedor do Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira, exibido juntamente a outras ilustres figuras no telão, como o próprio Gilberto e Caetano Veloso, o público alternou entre aplausos e gritos de “sem anistia”, em referência aos golpistas do presente, dos tempos obscuros que vivemos – o clamor da plateia, inclusive, chegou a encobrir um discurso de Chico Buarque no telão, que antecedeu a canção.

Para arrematar o bloco, após os momentos de forte emoção, Gilberto Gil lembrou de seu exílio, com “Back In Bahia”, antecedida por um trechinho com o refrão de “Bat Macumba”, puxado pelas backing vocals. Na apresentação, destaque para o solo de guitarra de João Gil, seu neto, um dos tantos familiares que compunham a numerosa banda – além dele, os filhos Bem, José e Nara, e a nora Mariá Pinkusfeld.

Em transição para a produção de seu trabalho mais versátil nos anos 1970, influenciado pelo contato com outros gêneros musicais no período vivido forçadamente fora do Brasil, o artista puxou “Refazenda” como décima canção do show. Na sequência, discursou sobre como uma viagem para o Festac 77, um festival afrodiaspórico em Lagos, na Nigéria, mudaria seu jeito de compor e existir no mundo, enquanto pessoa preta, e quanto disso desaguaria em “Refavela” e sua inspiração em claves de juju e highlife.

Ao adentrar a trilogia “Re”, que seria concluída mais tarde, com “Realce”, Gil voltou a alterar o tempo cronológico e puxou outro bloco temático: o da enorme influência dos ritmos jamaicanos sobre o seu trabalho, que se renovaria a partir disso e o levaria até mesmo a rodar o país ao lado de Jimmy Cliff. Numa cidade como Salvador, que ama tanto o reggae a ponto de transformar o termo em sinônimo de festa, este trecho da apresentação não teria como de ser um dos seus pontos mais altos.

Essa parte do show começou com “Não Chore Mais”, versão de “No Woman, No Cry”, de Bob Marley, e fez a Fonte Nova ficar iluminada com milhares de lanternas de celulares acesas. O bloco ainda teve “A Novidade” e “Vamos Fugir”, cantada em coro pelo estádio, mas alcançou o seu ápice realmente com “Extra”, uma das mais potentes canções do repertório do baiano. A famosa linha de baixo da faixa, gravada em 1983, reverberou pela arena e embalou os presentes, que se sacudiram e foram no embalo do mestre de cerimônias.

Após passar pelo reggae, Gilberto Gil relembrou da influência que o pop, o rock e a disco music tiveram em seu trabalho nas décadas de 1970 e 1980, puxando um bloco que começou em alta, com “Realce” e “A Gente Precisa Ver O Luar” – numa noite de lua cheíssima e brilhante, pós-eclipse lunar –, mas seguiu um pouco mais morno, passando por outras canções daquele período, como “Punk da Periferia” e “Extra II (O Rock do Segurança)”.

Caminhando para a reta final do show, Gil começou o último bloco temático: o de canções mais introspectivas e místicas, iniciado por “Se Eu Quiser Falar com Deus” e um solo de acordeom de Mestrinho. Acompanhado por violinos, violas, um trompete e seu violão, o artista se emocionou durante a apresentação e, entre lágrimas, ofereceu a noite a Preta Gil, sua filha, que vem batalhando contra um câncer e assistiu à apresentação num camarote, horas depois de receber alta média de uma internação.

Na sequência do trecho mais emotivo do show, Gilberto Gil cantou “Drão”, composta para a mãe de Preta, e também transitou por “Estrela” e “Esotérico” – sucessos como “A Paz” ou “Superhomem – A Canção” ficaram de fora, mas seria impossível incluir todos os seus hits no repertório. Depois das lágrimas e das reflexões, foi a vez de retomar as celebrações na aceleração final para a despedida. Como diz aquele meme, “um pouco de salada, um pouco de droga”.

Depois de um trecho de “Pipoca Moderna” tocada no pífano por Thiago Oliveira, Gilberto Gil colocou para circular o “Expresso 2222”, já flertando com a carnavalização – afinal, é o nome de seu camarote na folia momesca soteropolitana. Após “Andar com Fé”, a festança chegou de uma vez por todas na homenagem ao afoxé Filhos de Gandhy, do qual Gil é membro. Os telões mostravam imagens do artista nas saídas do bloco (numa delas, acompanhado até de Carlinhos Brown) enquanto a Fonte Nova era preenchida pelos acordes e versos de “Emoriô”.

Os arranjos de “Emoriô” eram os mesmos da versão gravada em 2019 no show “Gil Baiana”, em que o ícone da música brasileira dividiu o palco do Centro de Exposições Agropecuárias de Salvador com o BaianaSystem. Não era por acaso: passados alguns segundos, Russo Passapusso, frontman do Baiana, entrou no palco de surpresa, entoando os versos de “Autodidata” e “Dia da Caça”, que integram o registro acima mencionado, levando o público ao delírio completo.

A sensação só aumentaria quando, na cadência do ijexá, foi a vez de Margareth Menezes – atual Ministra da Cultura, ocupando um cargo que fora de Gil entre 2003 a 2008 – foi trazida por Passapusso para participar da festa em “Toda Menina Baiana”, que fez os mais de 50 mil presentes pularem alto no gramado e nas arquibancadas do estádio.

Em altíssima voltagem, Gilberto Gil foi tomar uma água no backstage e voltou para o bis revigorado. Para a despedida (ou até breve?), o artista retomou as influências de forró e samba ao cantar “Esperando na Janela” e “Aquele Abraço”. Ainda deu tempo de dar tchau com alguns versos de “Na Baixa do Sapateiro”, de Ary Barroso, para lembrar ao público que a Bahia não lhe sai do pensamento. Quando a banda já se apresentava para receber os aplausos dos presentes, o som mecânico da turnê soltou “Sítio do Pica‐Pau‐Amarelo”.

Aos 82 anos, Gilberto Gil mostrou que ainda tem muito vigor e muito a dizer, apesar de sua voz estar mais contida. Se algumas de suas últimas apresentações eram mais mornas, o baiano ratificou, na Fonte Nova, o seu status de gigante da música popular brasileira, de imortal que jamais será vencido pelo tempo.

A turnê de “Tempo Rei” rodará o Brasil e passará por outras nove cidades, em mais 17 apresentações (agendadas por enquanto). Gilberto Gil ainda se apresentará no Rio de Janeiro (29 e 30/3, 5, 6 e 31/5 e 1º/6), em São Paulo (11 e 12/4 e 25 e 26/4), Brasília (7/6), Belo Horizonte (17/6), Curitiba (5/7), Belém (9/8), Porto Alegre (6/9) e Fortaleza (15/11), até encerrar o périplo nacional no Recife (22/11).

Repertório _ Gilberto Gil na Fonte Nova

01. Palco
02. Banda Um
03. Tempo Rei + Aqui e Agora
04. Eu Só Quero Um Xodó
05. Eu Vim da Bahia
06. Procissão
07. Domingo no Parque
08. Cálice
09. Bat Macumba + Back In Bahia
10. Refazenda
11. Refavela
12. Não Chore Mais
13. Extra
14. Vamos Fugir
15. A Novidade
16. Realce
17. A Gente Precisa Ver O Luar
18. Punk da Periferia
19. Extra II (O Rock do Segurança)
20. Se Eu Quiser Falar com Deus
21. Drão
22. Estrela
23. Esotérico
24. Pipoca Moderna + Expresso 2222
25. Andar com Fé
26. Emoriô
27. Toda Menina Baiana
28. Esperando na Janela
29. Aquele Abraço
30. Na Baixa do Sapateiro

– Nelson Oliveira é jornalista e fotógrafo residente em Salvador. É diretor da Calciopédia, foi correspondente de esportes do Terra na Bahia e colaborou com UOL, VICE e Trivela.