Em “Here We Go Crazy”, Bob Mould reconhece seu próprio legado e abraça vigorosamente a resignação

texto de Davi Caro Bob Mould sempre se destacou em meio a seus contemporâneos por sua incansável determinação e um constante ritmo de trabalho.

Mar 17, 2025 - 12:55
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Em “Here We Go Crazy”, Bob Mould reconhece seu próprio legado e abraça vigorosamente a resignação

texto de Davi Caro

Bob Mould sempre se destacou em meio a seus contemporâneos por sua incansável determinação e um constante ritmo de trabalho. “Here We Go Crazy” (2025), seu novo disco de estúdio – o 12º de sua discografia solo, sem contar os trabalhos lançados como membro do Hüsker Dü e do Sugar – também dá sequência a um de seus períodos mais frutíferos, inspirados e relevantes. Desde 2012, quando o vocalista e guitarrista emergiu com o barulhento “Silver Age” (que ele mostrou ao vivo em dois shows concorridos no Sesc Pompeia), seus álbuns vem carregados de muito material vital. Além disso, o mesmo disco foi responsável por iniciar a longeva e invejável relação musical com os veteranos Jason Narducy (ex-membro da mitológica banda Verbow) no baixo e Jon Wurster (conhecido por seus trabalhos junto ao Superchunk e também com o The Mountain Goats) na bateria.

O que leva a uma questão pertinente: tendo em vista o os já numerosos lançamentos a contar com a dupla – “Beauty & Ruin” (2014), “Patch The Sky” (2016), “Sunshine Rock” (2019), e “Blue Hearts” (2020) –, que novidades, além da promessa sempre cumprida de riffs grudentos e melodias enérgicas, seriam possíveis de encontrar em um novo disco de Mould junto aos velhos parceiros mais de 10 anos após sua primeira união? Muitas, a julgar pelas 11 músicas e pouco mais de 35 minutos de duração de “Here We Go Crazy”. Esbanjando uma surpreendente vitalidade em sua performance vocal (que carrega o mesmo dom harmônico que o mundo conheceu nos anos 80) e entregando cintilantes e até desafiadoras sonoridades extraídas de suas seis cordas, Bob prova que ainda tem muito a dizer, resignações e aflições a parte.

A reflexiva faixa-título (e primeiro single) é responsável por dar o tom cadenciado e mesmo cinemático de muitas das letras encontradas aqui: entre reminiscências sobre paisagens e bandeiras com muitas cores, é quase impossível não entender as indagações de Mould frente às muitas atribulações testemunhadas por seus compatriotas (e pelo mundo inteiro) ao longo dos últimos meses. A amargura, porém, é deixada de lado para a veloz e irresistível “Neanderthal”, com um andamento digno de estar em “Copper Blue” (1992), disco clássico do Sugar. Não por acaso o segundo corte de divulgação do trabalho, a canção pode até causar estranhamento quando emparelhada com a mais lenta “Breathing Room”, e sua confessional letra repleta de referências à mantras – em meio as quais Narducy brilha em suas graves melodias.

Tanto Narducy quanto Wurster, aliás, conseguem soar ainda mais à vontade do que antes em seus respectivos papéis como acompanhantes de Mould: se “Hard To Get” evoca o passado do baterista na banda de Mac McCaughan, “Fur Mink Augurs” justifica a ainda pouco reconhecida importância de Bob e de sua influência sobre as muitas bandas punk que, desde os 90, trabalham sob as regras que o próprio guitarrista inventou dez anos antes. Em momentos como “Sharp Little Pieces”, que abre apenas com a distorcida voz de Mould acompanhando a si mesmo na guitarra, vale ter em mente os muitos shows realizados nos últimos anos pelo cantor sem acompanhamento de uma banda para que se chegue a uma bela conclusão: mesmo que incapaz de ignorar os problemas que ocorrem a seu redor, Bob se mostra mais à vontade com o passado do qual pareceu correr respeitosa, porém determinadamente, em outras épocas. Outra dessas passagens, a bonita “Lost Or Stolen”, é o ponto mais delicado no disco, com violões dando toques de sutileza em um trabalho que poderia ser marcado por passagens mais melancólicas, ainda que não desesperançosas.

“Thread So Thin”, por outro lado, talvez seja o momento menos recompensador do tracklist. Com uma abordagem sonora mais moderna (que rememora os áridos tempos nos quais o “pós-grunge” parecia ser o triste futuro do rock), é uma faixa destoante junto à derradeira “Your Side”, onde o vocalista soa mais fragilizado e reticente. Talvez com a já citada “Neanderthal” em seu lugar, o sentimento poderia ser menos anti-climático e mais redentor. Mais vale a esperta “When Your Heart Is Broken”: enterrada no meio do repertório, a faixa é uma grata surpresa que remete ao que Bob fazia no início de sua segunda década de carreira, em um aceno tão pop quanto os melhores momentos de sua trajetória solo até agora. Desde já, pode ser um dos grandes momentos do novo disco quando executada ao vivo.

Ainda que não tão dolorido quanto “Blue Hearts” – lançado durante a pandemia de COVID-19 – “Here We Go Crazy” termina colocando um acento um tanto dúbio em seu impulsivo, espontâneo título. Talvez este tivesse sido mesmo o efeito esperado: um bem-humorado comentário a respeito da própria liberdade criativa e satisfação em relação a mais um excelente trabalho em prol dos bons sons. E, apesar de flertar com o anticlímax em alguns momentos (e de confundir em alguns outros), Bob Mould se mostra confortável em cortejar a confusão em meio a seus muitos seguidores em favor da própria arte.

Curiosamente, tanto Jason Narducy quanto Jon Wurster vêm tomando parte em uma das mais celebradas turnês do circuito independente americano nos últimos meses: acompanhando o cantor e ator Michael Shannon, a dupla embarcou em uma turnê por clubes dos EUA tocando o disco “Reckoning”, clássico do R.E.M. de 1984, na íntegra (o baixista já havia participado das apresentações feitas anteriormente em homenagem a “Murmur”, disco debut da banda de Athens). Chamando a atenção para a atitude reverente no palco e sendo agraciados até pela presença dos próprios ex-membros do quarteto, os elogiados shows voltados ao passado servem como um espelho côncavo em comparação ao presente cinzento, porém real, de Mould. Longe da auto-celebração, e ciente da importância de seus antigos feitos, Bob se encontra determinado a dividir, surpreender, emocionar e, sim, empolgar mesmo seus mais contrariados seguidores. Convenhamos que não há muitos méritos maiores que este – se é que existe algum.

Ouça o disco abaixo!

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia mais textos dele aqui.