Por que está tão difícil ter um relacionamento?
Entre medos e objetivos racionais, parece que está cada vez mais complicado entrar em uma relação

Clara abriu o cardápio sedenta. Depois de uma semana agitada, precisava sentir o gosto de algo diferente. Rejeitou todas as ofertas do menu até flagrar João. Mesmo sem ler a descrição (genérica) do rapaz, ficou encantada. Naquele restaurante, porém, havia uma regra: Clara só poderia satisfazer seu desejo se João sentisse o mesmo interesse por ela.
Felizmente, foi recíproco. Os dois se provaram, mas logo a empolgação deu lugar a um gosto insosso. Eram interessantes, mas não exatamente o que buscavam. Despediram-se para sempre. Na semana seguinte, abririam o cardápio novamente, tudo atrás de um grande amor.
Mais de 16 milhões de brasileiros usaram aplicativos de namoro em 2024. De acordo com uma pesquisa promovida por um deles, o Bumble, 72% de seus usuários estão em busca de um relacionamento sério. E o amor é tema de livros, séries e músicas. “Ele continua sendo uma demanda existencial”, diz Francine Tavares, doutora em comunicação, com estudo da relação entre mídia, emoção e subjetividade.
No entanto, alguns sociólogos e filósofos defendem que o sentimento de se apaixonar está ficando cada vez mais raro. A porcentagem de norte-americanos sem relações fixas aumentou 50% desde 1986, segundo o Pew Research Center. No Brasil, o fenômeno é parecido: pela primeira vez, há mais solteiros do que casados no país — são 81 milhões contra 63 milhões. Todo mundo quer um amor, mas não anda tão fácil encontrar um.
Individualismo dificulta os relacionamentos

Parte da dificuldade vem da forma como temos enxergado a questão. Pensamos sobre tudo — especialmente sobre nós mesmos —, o tempo todo, e essa racionalização vem demonstrando ser ambivalente.
Se por um lado a interiorização trouxe avanços, como a possibilidade de autoconhecimento, por outro, ela impõe um custo: “Quando é levada ao extremo, impede a vivência”, diz Leila de La Plata Cury, professora do Instituto de Psicologia da USP. O resultado é que estamos racionalizando amores, achando que eles precisam de lógica, manual e até nos oferecer retorno.
Aplicativos de namoro funcionam como vitrines ou cardápios, onde escolhemos pessoas como se fossem produtos. Quando alguém não atende às nossas expectativas, descartamos e seguimos para a próxima opção. Essa relação de consumo é tão intensa que passamos a usar termos do mercado financeiro para falar de amor.
Basta entrar nas redes sociais para encontrar palavras como “investimento”, “retorno” e “custo-benefício” invadindo o vocabulário das relações. “Vale a pena esse relacionamento? Ele me traz benefícios? Quanto tempo devo investir antes de desistir?”
Para o filósofo sul-coreano Buying-Chul Han, o narcisismo de hoje impede a experiência genuína de enxergar o outro. Seria algo como: não buscamos o sentimento do amor, mas sim confirmar nosso próprio valor através de outra pessoa. O problema é que esse sentimento, por natureza, exige o oposto: ver o outro como único, especial, insubstituível.
“O amor é necessariamente uma experiência de alteridade, uma experiência relacional”, diz Francine. De fato, na mesma pesquisa citada acima, quase dois terços das mulheres dizem que não estão mais fazendo concessões para se relacionar. Esse comportamento é positivo, é claro, quando falamos de relacionamentos violentos ou abusivos — mas não existe um amor que não precise de concessões aqui e ali.
Relacionamentos não são mais necessidade social

Mas esse não é o único motivo para as pessoas estarem se relacionando menos. À medida que mulheres conquistaram cargos importantes no mercado de trabalho, ampliaram seus estudos e passaram a ter mais liberdade para escolher com quem ficar (e se desejam ficar com alguém), muitas perceberam que os benefícios dos relacionamentos longos não são igualmente distribuídos entre os gêneros. Casados, eles vivem mais, são mais felizes e desfrutam de melhores perspectivas econômicas do que elas.
Não é exagero: os homens comprometidos são até 13,9% mais satisfeitos com a vida do que as mulheres na mesma situação (segundo estudo da Universidade Regional de Blumenau), possuem duas vezes mais chances de envelhecer bem que os solteiros (pesquisa da Universidade de Toronto) e têm maiores salários que seus pares descompromissados (estudo da Universidade de Cambridge).
Além disso, os relacionamentos deixaram de ser uma necessidade social. “Antes, os homens e mulheres precisavam de um compromisso sério para ter acesso ao sexo e outros objetivos. Hoje, essa interdependência não existe mais nem mesmo para a reprodução da espécie, já que mulheres de classes mais altas, por exemplo, podem recorrer à fertilização”, lembra Francine.
Há também uma crescente disparidade de visões de mundo entre elas e eles. Mulheres com menos de 30 anos são 25% mais progressistas do que os homens da mesma idade, diz um levantamento do jornal Financial Times. Isso pode levar a expectativas — e quebras de expectativas — diferentes.
“Nos anos 1960 e 1970, havia clareza sobre o que os homens valorizavam nas mulheres”, explica a pesquisadora. A virgindade, por exemplo, era um atributo objetivo, e as mulheres também sabiam o que desejavam em um homem: segurança financeira, comprometimento até o fim da vida. Com a revolução sexual, os atributos se modificaram. “Como não chegamos a um entendimento comum sobre o que esperar do outro, porque raramente as pessoas conversam sobre isso, tudo fica no campo da suposição.”
Essa confusão é o que leva ao boom de conteúdos sobre relacionamentos. Basta entrar nas redes sociais para ser bombardeado por vídeos sobre o que fazer, esperar e aceitar em uma relação amorosa.
“Consumimos conteúdos sobre relacionamento da mesma forma que consumimos dicas de saúde: como se a informação pudesse garantir o controle. Conversamos com amigas, assistimos a filmes, ouvimos podcasts, lemos livros de autoajuda, tudo para minimizar a incerteza de se entregar ao outro”, completa Francine. As pessoas decoram checklists do que alguém precisa oferecer para ser amado por elas, em vez de, bem, amar.
Frases como “você é sua prioridade”, “ele precisa te amar mais do que você o ama” e “ame a si mesmo antes de amar o outro” se tornaram recorrentes. “A experiência amorosa tem sido colocada como um processo individual. No entanto, não existe vivência amorosa sem o outro, isso desde a nossa formação, porque precisamos que alguém nos ensine a desenvolver essa habilidade”, diz a doutora em comunicação.
Medo de se relacionar afeta a experiência amorosa

Mas nem todo mundo é individualista porque quer — muitas vezes, a culpa é do medo. “Após viverem ou presenciarem relações ruins, como a dos pais, muitos temem se envolver amorosamente”, pontua Leila.
Aprendemos a amar experimentando o amor de nossos cuidadores na infância, mas, quando essa vivência é falha ou ausente, desenvolver habilidades afetivas ao longo da vida se torna mais difícil, segundo a professora. “Esse mau desenvolvimento, inclusive, é o que geralmente leva ao desejo de posse em relacionamentos, que acaba causando experiências negativas e gerando medo novamente.”
Nesse ponto, surge a pergunta: estamos caminhando para relações cada vez mais superficiais? “A superficialidade não está na falta de amor, mas na forma como nos relacionamos. O problema não é a incapacidade de querer ou de se envolver, mas a dificuldade prática de sustentar um relacionamento”, responde Francine. E como mudar essa realidade? A resposta não é única, nem simples, mas a pesquisadora indica refletir sobre os modelos prontos.
O excesso de comunicação não resolve tudo, assim como racionalizar demais pode criar barreiras. “O essencial é encontrar nossas próprias medidas, o que faz sentido dentro da nossa relação. Mas honestidade, franqueza e disposição para construir um relacionamento são fundamentais. Se entramos em uma relação com um checklist de qualidades predefinidos, nos fechamos para as experiências inesperadas que o outro pode oferecer”, indica a doutora em comunicação. Dar uma chance ao amor é o primeiro passo.
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