Cinema: Em “Amizade”, Cao Guimarães navega calmamente em direção ao desconhecido
“Amizade” é uma viagem no tempo, um deslocamento pela história dos aparatos técnicos da imagem e do som. Película, vídeo, digital, fita de rolo, secretária eletrônica e whatsapp se misturam em uma cacofonia tecnológica absurda

texto de Leandro Luz
Artista inquieto e curioso, o mineiro Cao Guimarães vem realizando, desde o final dos anos 1980, uma investigação formal sem-par com as artes plásticas e o audiovisual. Algumas de suas obras podem ser encontradas em coleções como as do Tate Modern, no Reino Unido, do MoMA e do Museu Guggenheim, nos Estados Unidos, da Fondation Cartier, na França, de Inhotim, aqui no Brasil, dentre várias outras. A partir dos anos 2000 a sua produção artística ganha fôlego junto ao cinema. Acostumado a trabalhar desde sempre em uma lógica de produção familiar, doméstica, com equipes pequenas que não raro se repetem, Guimarães gestou um corpo consistente de 12 longas-metragens que circularam pelo Brasil e pelo mundo ao longo das últimas três décadas.
O mais recente filme do artista é um convite à camaradaria. Antes de qualquer outra coisa, “Amizade” (Cao Guimarães, 2023) é uma viagem no tempo, um deslocamento pela história dos aparatos técnicos da imagem e do som. Película, vídeo, digital, fita de rolo, secretária eletrônica e whatsapp se misturam em uma cacofonia tecnológica absurda que nos revela o quanto mudamos e, consequentemente, o quanto o mundo mudou de 2000 para cá. As imagens de arquivo que compõem o filme – nenhuma delas produzidas em função deste objetivo, vale destacar – foram coletadas ao longo desse tempo no qual Guimarães estabeleceu parcerias profissionais – e de vida – que o trouxeram até aqui.
Roteirizado e montado pelo próprio diretor, “Amizade” precisou de cerca de cinco anos na ilha de edição para existir. Em entrevistas a respeito do seu processo de criação, Guimarães afirma que este foi o seu filme mais difícil, sobretudo pelo árduo trabalho de montagem, que exigiu a digitalização de inúmeros arquivos antigos registrados em diversos formatos e um olhar atento e sensível para a decupagem desse vasto material. “O diferente de mim era eu. O outro era eu mesmo”, declara o cineasta quando questionado a respeito de seu novo filme. Acostumado a investir na alteridade, Guimarães acaba, desta vez, realizando um gesto interno que todos nós pudemos um dia reconhecer quando ouvimos a nossa própria voz ou vimos a nossa imagem capturada por uma câmera. O efeito espelho muito próprio do cinema e intensificado pela lógica documental é ativado com muito interesse por Guimarães, consciente de que, filosoficamente, o coração do filme está exatamente nisso.
Uma das coisas que mais chama a atenção do ponto de vista do estilo adotado em “Amizade” é o expediente sonoro concebido pelo duo de artistas Marcos Moreira e Nelson Soares, mais conhecidos pela alcunha O Grivo. O design de som e a trilha sonora original percorrem um caminho nada óbvio, pouco interessados em perseguir as imagens, e sim em confrontá-las, em “dar um perdido” nas intenções narrativas mais evidentes. Em determinado segmento do filme, por exemplo, Guimarães direciona o seu olhar para os letreiros dos ônibus (em Belo Horizonte, provavelmente). Sem a trilha sonora, enérgica, viva, com sons que remetem às experimentações sonoras contemporâneas, as imagens daqueles ônibus e de uma cidade que hoje não existe mais (pelo menos não da mesma maneira) poderiam sugerir uma busca pela nostalgia. No entanto, a criação sonora d’O Grivo aponta para outra direção, para uma verdadeira viagem entre o passado, o presente e o futuro, algo que Guimarães parece perseguir com afinco.
Não é também por um sentimento nostálgico que Guimarães filma o seu amigo e produtor de longa data dirigindo um carro e cantando músicas do Clube da Esquina e dos Novos Baianos. A câmera parece hipnotizada pela imagem do homem, as suas mãos inquietas, o diálogo constante com o rádio do carro, a paisagem que emoldura essa relação de amizade que existiu em um determinado instante no tempo. A amizade em oposição e resistência à barbárie que tomou conta do Brasil a partir de 2016. A obra também revela um interesse profundo em refletir a respeito do nosso país, sobretudo o da última década – incluindo a pandemia, que acaba tendo um protagonismo grande também na segunda metade do filme, com o seu deserto de rostos, como frisa a narração. Imagens de telas inundam o quadro: computadores e celulares permitem as vídeo-chamadas; as telas servem aos momentos de relaxamento e festa, mas também de reflexão e conscientização.
“Amigos a gente não escolhe. Amigos acontecem (será mesmo?).” Quando atento aos detalhes no uso desse arquivo rico e improvável, Cao Guimarães consegue tirar do “grande tema” uma saída possível para algo de interesse coletivo. O tempo dilatado e os corpos humanos recortados dão conta dessa abstração, por exemplo. Em contrapartida, quando se detém excessivamente nas imagens mais concretas de um passado entre amigos, incluindo meditações a respeito de questões geracionais e do princípio do conceito de amizade, o filme perde um pouco o embalo e se confunde com um diário pessoal. De qualquer maneira, até que ponto algo tão íntimo pode ser de interesse comum é o que norteia o filme, que entre acertos e imprecisões navega calmamente em direção ao desconhecido. Essa é a beleza do cinema de Cao Guimarães e de seu novo longa-metragem.
Para quem quiser mergulhar fundo no cinema de Cao Guimarães, está em exibição na Embaúba Play um conjunto de 10 obras do cineasta, entre elas “Andarilho” (Cao Guimarães, 2006), “O Homem das Multidões” (Cao Guimarães e Marcelo Gomes, 2013) e “Espera” (Cao Guimarães, 2018).
– Leandro Luz (@leandro_luz) escreve e pesquisa sobre cinema desde 2010. Coordena os projetos de audiovisual do Sesc RJ desde 2019 e exerce atividades de crítica nos podcasts Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.