A política TikTok
Spellbound / A Casa Encantada (1945):cenários de Salvador Dalí para um clássico de Alfred Hitchcock O povo do TikTok não tem memória nem cultiva o conhecimento. Que pensam disso os políticos? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 março).I. Politicamente, vivemos numa caixa de ressonância de “mensagens”, saturada de redundâncias, que é também uma máscara do cenário quotidiano em que tudo se produz e reproduz: vogamos num espaço de pensamento enquistado no seu próprio espectáculo, incapaz de se distanciar da pornografia mediática de que, afinal, se alimenta. E penso uma vez mais, como um assombramento que se renova, nas palavras concisas do filósofo francês Claude Lefort (1924-2010): “As democracias modernas, transformando a política num domínio autónomo de pensamento, criam condições para o totalitarismo.”II. A cruel passagem dos dias obriga-nos a acrescentar um suplemento descritivo às palavras de Lefort. Assim, o seu “domínio autónomo de pensamento” passou a existir como uma paisagem predominantemente televisiva que, porventura na cândida inconsciência dos seus profissionais, desistiu de qualquer metodologia descritiva para, em nome de um naturalismo serôdio, se encenar como tribunal popular, sem centro simbólico nem juiz identificado ou identificável.III. A regra é esta (sem menosprezo, antes pelo contrário, pelas excepções): a gestão da informação disponível deixou de ser um complexo, vigilante e metódico processo de conhecimento, para ser transformada numa acumulação redundante capaz de gerar uma agitação “informativa” em que, supostamente, se espelham os direitos da nossa cidadania.IV. O TikTok — aliás, o sistema ideológico e tecnológico que se exprime no TikTok — não se esgota num baú de fragmentos que alimentam o vazio saltitante dos nossos olhares. Se fosse apenas isso, já seria um crime audiovisual contra séculos de elaboração cognitiva sustentados por uma história nobre que vai das pinturas primitivas das cavernas até às maravilhas reais e surreais que o cinema gerou ao longo do seu século XX. O TikTok funciona como uma máquina de desvalorização de qualquer aproximação humanista da experiência humana — a alegria de que falava o filósofo está agora reduzida à vibração efémera de uma existência (a das imagens e também a nossa) que se esgota na rotina de acrescentar pitoresco ao pitoresco, estupidez à estupidez, obscenidade à obscenidade.V. A palavra “povo” quase desapareceu do nosso vocabulário porque a realidade que nela se encarnava está estilhaçada. Já só há “comunidades”, “seguidores”, “amigos” de polegar ao alto. Até mesmo os plurais que nos uniam se tornaram suspeitos, a ponto de se considerar que quem se dirija aos “portugueses” está a ofender meio mundo — a questão de género deixou mesmo de começar na intimidade mais recôndita de cada ser humano, para ser brandida como uma palavra de ordem militante. Ignora-se a prática política como uma prática de vida e uma permanente dedicação a uma ideia forte de comunidade. Resta um mero xadrez de poderes jogado pelos membros da classe política, com os cidadãos, munidos de telemóveis e afins, a consumir minutos, segundos cada vez mais curtos, não poucas vezes com o tempero de apoteóticos disparates de alguns “influencers” e seus derivados.VI. Perseguindo uma pureza sem história, sancionada por uma agressiva ignorância mitológica, direitas e esquerdas revelam-se igualmente desastradas — sendo a ingenuidade congénita o maior dos seus desastres — na ocupação deste novo território virtual (mas muito real) sobre o qual, afinal de contas, não conseguem produzir a mais pequena ideia operativa.VII. São as forças mais extremadas do espectro político, invulgarmente hábeis na exploração das contradições de tudo isto, que vão acumulando dividendos: passo a passo, eleição a eleição, garantem a sua crescente legitimação entregue por um povo que, através dos abalos telúricos do espectáculo, julga rever-se nos ecrãs que utiliza. Entretanto, promovem-se muitos, e muito interessantes, debates sobre as ameaças da Inteligência Artificial, ignorando o abandono a que vai sendo votada a inteligência humana.

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Spellbound / A Casa Encantada (1945): cenários de Salvador Dalí para um clássico de Alfred Hitchcock |