Cinema: “O Melhor Amigo” é uma encantadora comédia musical gay sobre encontros e desencontros amorosos
“O Melhor Amigo” é um filme que obedece aos signos e ditames das comédias românticas e dos musicais pop, seguindo bem a referências clássicas dos filmes de Sessão da Tarde

texto de Renan Guerra
O cinema brasileiro é bastante profícuo em suas criações e é possível encontrar em nossa cinematografia os mais variados gêneros de filmes, o que invalida uma recorrente discussão sobre a injustificada falta de diversidade do nosso cinema, que, segundo teorias, seria dividido entre “favela movies” e “comédias Globo Filmes”. Essa discussão é bastante rasa, e este “O Melhor Amigo”, de Allan Deberton, é um bom exemplo para ser usado quando alguém reclamar da falta de diversidade do nosso cinema: quer algo diverso? Então mergulhe nessa comédia romântica musical sobre gays cearenses! Risos. Esse parágrafo de abertura é apenas uma brincadeira com todos esses debates, mas ainda assim é fato que esses epítetos realmente servem ao filme de Deberton.
“O Melhor Amigo” acompanha o jovem arquiteto Lucas (Vinicius Teixeira), que após uma crise com seu atual namorado Martin (Léo Bahia), resolve viajar para o litoral sozinho. Numa tentativa de se libertar e experimentar um momento diferente consigo mesmo, Lucas acaba esbarrando com Felipe (Gabriel Fuentes), um antigo colega de faculdade, agora guia de turismo na região. Desejo, paixão e muitas dúvidas voltam à tona quando os dois se conectam novamente. Para além desse reencontro, Lucas experimenta outras coisas – e pessoas – pelas noites quentes de Canoa Quebrada, no litoral do Ceará. Tudo isso é contado em tom leve, com clima de comédia romântica – especialmente feito para os gays filhos de Julia Roberts e Meg Ryan. Para completar, o filme é recheado de números musicais bem ao estilo clássico, com os personagens cantando e dançando sem motivo, porém há um toque especial: aqui eles cantam canções clássicas do cancioneiro pop comercial brasileiro, como numa bela noite de karaokê.
O longa-metragem de Allan Deberton (diretor do premiado “Pacarrete”, de 2020) nasceu de um curta-metragem de mesmo nome lançado por ele em 2013. “O Melhor Amigo”, o curta, funciona como espécie de prelúdio para o novo filme, já que a história narra a antiga amizade de Lucas e Felipe, nos tempos de faculdade – os filmes se complementam, mas também coexistem de forma independente. Deberton explicou que a ideia de expandir a narrativa desse casal surgiu quando o curta-metragem começou a repercutir no YouTube nos anos 2010 e diversos comentários pediam a continuação da história, expressando uma empatia mais direta pelo personagem de Lucas. E daí nasce o longa-metragem, com uma história que parte de um olhar particular do diretor para contar narrativas gays por outras óticas, mais reais para o nosso cotidiano, mas que ainda assim não abrem mão da fantasia e dos jogos que o cinema permite. “O Melhor Amigo”, o longa-metragem, é um deleite nesse sentido, conseguindo transpor as cores, a alegria e a vibração das ruas, do litoral e das noites para a tela.
Em cartaz nos cinemas brasileiros dentro do projeto Sessão Vitrine Petrobras, que possibilita lançamentos com preços mais acessíveis, “O Melhor Amigo” tem uma qualidade que se destaca, pois é um filme que obedece aos signos e ditames das comédias românticas e dos musicais pop, seguindo bem a referências clássicas dos filmes de Sessão da Tarde, porém há um diferencial: Deberton subverte as regras heteronormativas e deixa seus personagens mais soltos, mais livres. Por isso aqui essas figuras se entregam ao sexo casual, ousam experiências novas e entendem que a vida não é o fim se você não tiver em um relacionamento sacramentado para o resto da vida. Para que essa intersecção entre a realidade dos nossos tempos e a fantasia dos romances de cinema se torne crível, o filme conta com um elenco completamente entrosado e leve em cena. Vinicius Teixeira constrói gestos e detalhes para seu protagonista Lucas, conseguindo transpassar sensações através de seu olhar ou mesmo de sua pele, que parece responder sinestesicamente as ações em tela. Já Gabriel Fuentes encarna de forma deliciosa o “Amante Profissional”, aquele da canção da banda Herva Doce, clássico kitsch dos anos 80 (entoado no filme). Fuentes basicamente seduz todo mundo que está em cena e todo mundo que está sentadinho na poltrona do cinema. Além dos protagonistas, vale destacar o trabalho de grupo do elenco, que soa extremamente coeso e desenvolto, criando realmente essa sensação de companheirismo e intimidade que o roteiro pede. Importante mencionar a presença especial de Claudia Ohana e de Gretchen, em participações afetivas que celebram memórias do próprio diretor e de uma parcela do público.
Em entrevista à Rolling Stone, Allan Deberton falou que o filme tinha essas referências que funcionam como “um presente para a plateia que nasceu nos anos 80”; mas que também são referências tão fortes do imaginário popular brasileiro que acabam dialogando com plateias para além disso. Dentre as participações, ainda é fundamental citar a presença de Mateus Carrieri, ator que hoje em dia pode ser conhecido por muitos como um ex-participante do reality show “A Fazenda”, da Record, mas que marcou umas duas ou três gerações de homens gays desse país. Ator mirim de sucesso nos anos 70, Carrieri tem em seu currículo importantes novelas nos anos 80 e 90, em emissoras como Globo, SBT e Bandeirantes, porém causou polêmica quando posou nu para a revista G Magazine. Foram quatro ensaios, quatro capas históricas no mundinho GLS – como era a antiga sigla. Participante da formação clássica da primeira edição do reality “Casa dos Artistas”, do SBT, e com uma passagem pelo universo dos filmes pornográficos nos anos 2000, Carrieri é o nosso hétero aliado e entrega como ninguém um personagem gay em tela, dando vida a um “daddy” perfeito, sem cair em momento algum no caricatural.
Para além dessas participações, o tal presente dito por Deberton também vem na trilha sonora do filme, que vai de clássicos da Xuxa até sucessos radiofônicos de Zizi Possi e Tetê Espíndola, sem medo algum de ser cafona. “O Melhor Amigo” assume 100% sua postura de ser exagerado, kitsch e estilizado. O final de semana de Lucas em Canoa Quebrada é essencialmente uma fábula, um lampejo de magia para que se encare a realidade com outros olhos. Em uma seara de narrativas LGBTQIA+ que nos relembram as dores e dificuldades de se existir nesse mundo, é bom demais aproveitar esses 90 minutos em que somos transportados para uma narrativa leve e celebratória, com personagens queer apenas existindo, amando, transando, dançando e cantando.
O maior presente de “O Melhor Amigo” é ser uma espécie de “comfort movie” para LGBTs que cresceram amando filmes água-com-açucar (e aqui a expressão é usada de forma completamente positiva, ok? Sem juízo de valor). Neste filme a gente não precisa caçar meios de se identificar com algum personagem heterossexual ou se envolver com algum personagem coadjuvante outsider, aqui é tudo nosso: uma comédia-musical para que a gente se apaixone e cante junto, livres-leves-e-soltos!
– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.