A resistência e perfeição de Nadia Comăneci. E a história contada por Lola Lafon

Em ‘A Pequena Comunista que Nunca Sorria’, a autora francesa baseia-se na vida da ginasta romena e centra-se na sua infância.

Mar 16, 2025 - 15:56
 0
A resistência e perfeição de Nadia Comăneci. E a história contada por Lola Lafon
A resistência e perfeição de Nadia Comăneci. E a história contada por Lola Lafon

O ano é o de 1976 e, em Montreal, decorrem mais uns Jogos Olímpicos de Verão. Num dos pavilhões, toma lugar a ginástica – nas traves, no solo, nas barras assimétricas. Nas bancadas, milhares de pessoas aguardam a ginasta que irá apresentar o próximo exercício. E é então que chega uma rapariga, magra, não muito alta, a vestir um maillot branco e com uma franja que pára mesmo acima das sobrancelhas. Lançada às barras assimétricas, a pequena ginasta executa movimentos que se sucedem de forma exemplar. As mãos, cobertas em pó branco, agarram com firmeza as barras e o seu corpo voa, até aterrar hirto no chão. Parada, ainda a recuperar o fôlego, aguarda pelo seu resultado. E, finalmente, o placar mostra um 1,00. Não será possível, não será mesmo esta a sua pontuação, pensará ela incrédula. Na verdade, como nunca tinha acontecido antes, o computador não é capaz de processar o 10, redondo e perfeito, que o júri atribui ao exercício da rapariga que está a representar a Roménia. O espanto não é para menos, porque além de ser algo inédito, a ginasta tem apenas 14 anos. Chama-se Nadia Comăneci

É nestes Jogos Olímpicos que a romena recebe sete vezes dez pontos e é galardoada com três medalhas de ouro nas barras assimétricas, na trave e no all-around. Vem assim a tornar-se um símbolo da ginástica mundial e da perfeição, fortemente ligado ao comunismo de Nicolae Ceaușescu, passando a ser um objecto de obsessão. “Quando comecei a minha pesquisa, o que me interessou foi o facto de ela ser amada e de ser uma obsessão para ambos, para o Oeste e o Leste. Havia uma espécie de guerra fria em torno dela”, começa por nos dizer a francesa Lola Lafon, autora de La Petite Communiste Qui Ne Souriait Jamais, que foi publicada em 2014 e que chegou ao mercado português em Novembro de 2024.

Dar voz a Nadia Comăneci 

Traduzido por Luís Leitão, A Pequena Comunista que Nunca Sorria faz parte do projecto Sementes de Dissidência, que se iniciou no ano passado de forma a celebrar os 45 anos da editora Antígona. O romance, que não pretende ser uma biografia, relata-nos a infância e adolescência de Nadia Comăneci, baseando-se em factos verídicos para construir uma história sobre o que a ex-ginasta viveu desde os seus primeiros Jogos Olímpicos até 1989, ano em que foge da Roménia, poucos meses antes da revolução que depõe Ceaușescu. “O que é interessante, para mim, é que ela não é uma vítima. Não é a história de uma criança que é treinada por um treinador terrível, não é esse tipo de relação. O que realmente me fascinou foi a sua vontade e o seu desejo de ser diferente, de ser uma mulher diferente da mãe ou de todas as pessoas que estavam à sua volta na altura”, conta a autora.

Antes ainda de começar a escrever, Lola Lafon falou com Comăneci para lhe pedir permissão para fazer esta obra. Depois de ela aceitar, seguiram-se cerca de oito meses a ler e documentar tudo o que Lafon encontrasse sobre a ginástica e a política daquela altura. Até porque, apesar de vários dos seus trabalhos partirem da pesquisa, este teve uma grande diferença – o facto de ser baseado numa pessoa real. “É um livro sobre a infância e sobre a impossibilidade de fazer uma biografia, porque o narrador é, constantemente, confrontado com diferentes versões, como eu. Quando estive em Montreal, vi uma versão da história, quando estive em Bucareste, vi outra, e em França, também foi diferente. É uma forma de ver como, para cada vida, há um conjunto de narrativas”, diz. 

Ao longo dos capítulos, deparamo-nos com passagens fictícias entre o narrador e a ex-ginasta, em que há uma troca de impressões acerca dos acontecimentos relatados na obra e que pretendem servir como uma porta para os pensamentos de Nadia Comăneci. “Quando escrevo, faço muitas versões e reescrevo muito, e quando estava a cerca de dois terços do livro, não havia esse intercâmbio. E achei que estava a fazer o mesmo que todo o mundo e as câmaras à sua volta faziam – eu estava a olhar para ela, mas ela não tinha uma voz, não estava a ser ouvida”, reconhece. “De certa forma, ao longo de toda a sua vida, e também nos meios de comunicação, ela aparecia silenciosa. Ela não se expressava, não ouvias a voz dela, porque ela era tão jovem que ninguém lhe perguntava a sua opinião.” Daí, a Nadia que lemos se apresentar resistente, distante ou com uma postura defensiva, ainda que em momentos se abra ligeiramente ao narrador.

Crescer com a perfeição no corpo 

É então desenhado o retrato de uma rapariga que, tida como uma espécie de figura mítica, se confronta internamente com a liberdade que deseja e a pressão que lhe é imposta, tanto pelo regime comunista romeno como por si mesma ou pelo treinador, Béla Károlyi, conhecido pelo seu regime de treino intenso que descurava o bem-estar tanto psicológico como físico das atletas. De apenas Nadia Comăneci, a ginasta passa a ser, aos 14 anos, um ideal de perfeição. Não pode crescer, nem engordar, nem falhar, não pode ser mais do que um corpo pronto a ser escrutinado. Num discurso que é repetido vezes sem conta, é-lhe pedido que sorria, que se mantenha bonita e jovem, como só assim ela o sabia ser.

Lola Lafon
© Lynn S. KLola Lafon

“Nos anos 70, elas começavam [na ginástica] com 13, 14 anos, e o que descobri, na imprensa americana e francesa, foi ódio ao corpo da mulher. Não lhe era permitido crescer e havia um ideal à volta das raparigas que é realmente assustador e para o qual senti que era importante olhar.” E também por isso, durante o processo, a visão que Lola tinha de Comăneci se tenha transformado e dado lugar a uma visão protectora para com a criança sobre a qual estava a escrever. “Eu sinto-me como a advogada desta criança e tinha a sensação de que lhe estava a segurar a mão. E depois isso misturou-se com a sensação do que é crescer no corpo de uma mulher, em que tens a consciência de que te estás a tornar uma presa”, sente.

Uma Europa dividida

Ideias estas que aqui estão intimamente ligadas ao contexto político da época retratada, que vai de meados dos anos 70 ao final dos anos 80. Sob uma Guerra Fria, em que o mundo se dividia em dois, encontramo-nos na Roménia, marcada pela opressão, o controlo e a censura. Apesar disso, tanto a personagem de Nadia como a própria Lola Lafon encarregam-se de tentar combater os estereótipos associados à história da ginasta e mesmo do país. “Já não há um muro, já não há comunismo, etc., mas ainda há duas Europas e isso sente-se. Há a Europa rica, a Europa Ocidental, e depois há a Europa do Leste e ainda há uma separação. Ainda há questões relacionadas com classe e raça”, acredita a autora, que nasceu em França, mas cresceu em Bucareste. “Quando vim para França, lembro-me da percepção que as pessoas tinham da Roménia e dos países de Leste, e por isso quis complexificar a visão do narrador, que é tipicamente ocidental.”

Quando o livro foi lançado em 2014, Lola Lafon recorda como foi tão bem recebido e como se apercebeu, nessa altura, que Nadia Comăneci era realmente amada por muitas mulheres, mesmo pelas mais jovens que lhe confessaram de que forma esta figura as “libertou” – “Porque, naquela altura, ela usava calças de ganga, ela era forte, era rápida. E eu percebi o seu poder, muito para além do desporto ou das medalhas.”

A Pequena Comunista que nunca Sorria, de Lola Lafon. Antígona. 265 pp. 17,50€