“O poder do cinema e da arte é criar empatia”, diz Marco Pigossi sobre ‘Maré Alta’
Marco Pigossi e Marco Calvani se conheceram em 2020, apresentados por amigos em comum. Na época, o ator morava em Los Angeles e havia recém saído do armário como um homem gay, após anos interpretando galãs na Globo. O diretor italiano escrevia um roteiro sobre um imigrante gay latino-americano tentando encontrar seu espaço nos Estados […] O post “O poder do cinema e da arte é criar empatia”, diz Marco Pigossi sobre ‘Maré Alta’ apareceu primeiro em Harper's Bazaar » Moda, beleza e estilo de vida em um só site.


Foto: Gerson Lopes
Marco Pigossi e Marco Calvani se conheceram em 2020, apresentados por amigos em comum. Na época, o ator morava em Los Angeles e havia recém saído do armário como um homem gay, após anos interpretando galãs na Globo. O diretor italiano escrevia um roteiro sobre um imigrante gay latino-americano tentando encontrar seu espaço nos Estados Unidos. Eles se entenderam, se casaram, e dessa conexão nasceu Maré Alta, que estreia nesta semana nos cinemas brasileiros. O casal, fora dos EUA há três meses, recebeu a Bazaar no Café Fellini, na Rua Augusta — um lugar que, por si só, simboliza resistência.
Pigossi interpreta Lourenço, um jovem de Itu, no interior de São Paulo, tentando se adaptar a Provincetown, pequena cidade litorânea de Massachusetts, conhecida por sua grande comunidade gay. Para ele, o longa é uma jornada interna. “É um filme pessoal, porém não autobiográfico”. O roteiro, que aborda a imigração, chega aos cinemas em um momento politicamente delicado para a comunidade LGBTQIA+ e os imigrantes nos EUA, com a possível volta de Donald Trump à presidência. Segundo Calvani, está ficando cada vez mais difícil morar lá. “Mas queremos voltar, resistir através da nossa arte e ajudar nossas comunidades.”
Pigossi já tem pelo menos dois novos projetos finalizados no Brasil. No remake de Quatro do Pânico, estrelado por Isis Valverde e dirigido por Gabriela Amaral Almeida, ele elogia: “É uma das diretoras mais incríveis com quem já trabalhei”. Já no terror gore Privadas de Suas Vidas, de Gustavo Vinagre, sobre privadas assassinas, interpreta um influenciador de extrema direita. Nos Estados Unidos, após atuar na série Gen V — spin-off de The Boys —, Pigossi poderá ser visto na comédia romântica You’re Dating a Narcissist!, ao lado de Marisa Tomei (que também está em Maré Alta), e no thriller Bone Lake, que mistura sexo, mentiras e luta pela sobrevivência. Para Pigossi, Maré Alta representa um renascimento em sua carreira. A seguir, leia a entrevista completa com ele e Calvani.

Foto: Gerson Lopes
Harper’s Bazaar – O filme traz várias imagens religiosas: Maurice (James Bland), namorado de Lourenço, se veste de Jesus em uma balada; o próprio Lourenço tem uma imagem de Jesus na cabeceira; e sua família é evangélica. Qual a importância desses signos no filme?
Marco Calvani – Esse é um dos temas centrais para Lourenço. Ele busca se libertar da família evangélica e, ao mesmo tempo, como homem gay. Pessoalmente, cresci na Itália, um país conservador, tradicional e católico, então essa questão sempre esteve presente na minha vida, assim como a homofobia introjetada. Era algo próximo tanto do personagem quanto da minha própria trajetória, e quis trazer isso de forma orgânica para o filme. Maré Alta tem várias camadas, além da busca do protagonista por liberdade — de espírito, coração e corpo. Religiões, como a católica e a evangélica, costumam separar o corpo do espírito, e meu objetivo era justamente resgatar a divindade do corpo, algo que a sociedade teme. Todos crescemos em um sistema patriarcal, onde esse assunto raramente é abordado, e eu queria provocar essa reflexão.
HB – Como foi para você tratar desta questão da religiosidade no filme?
Marco Pigossi – Tanto o Brasil quanto a Itália são países fortemente católicos e, no caso do Brasil, também evangélicos. Entender seu lugar no mundo como homem gay é um processo pelo qual passei — e acredito que toda a comunidade LGBTQIA+ também, de alguma forma. Desde pequenos, somos formatados a ver a homossexualidade como um grande pecado, algo condenado. Libertar-se desse pensamento é difícil porque crescemos dentro dele. Essa é a jornada do meu personagem. Lourenço vem de uma religião que opera na culpa e na opressão, e Maré Alta trata do seu encontro com a liberdade. Em determinado momento, Maurice pergunta a ele: “Do que você tem mais medo?”. E ele responde: “Deus”. Para quem cresce nesse meio, é um beco sem saída. Lourenço precisa mentir para sobreviver, ser aceito e se encaixar na sociedade, mas mentir também é pecado — um ciclo de culpa que o aprisiona.
Acredito que essa seja a realidade de 99% da comunidade LGBTQIA+ que vem de um país religioso, de uma família conservadora ou que carrega esse peso. É uma jornada de autodescoberta até entender que ser quem você é não é pecado, que você não será condenado nem vai para o Inferno. Essas questões são centrais para o personagem. Investigar isso foi essencial. Cresci em uma família católica. Minha mãe continua religiosa, mas tive sorte: sempre fui acolhido. Minha história foi privilegiada e bem diferente da de Lourenço. Mas existe uma contradição no que a Igreja prega e no que escolhe silenciar.
HB – Pigossi, você declarou que este filme é um renascimento artístico para você. Quais características você tem em comum com o Lourenço?
MP – Pude trazer muito de mim para o personagem. A vivência como imigrante, a busca por entender-se como homem gay em um novo lugar, o processo de saída do armário. O filme é pessoal, mas não autobiográfico. Nós migramos em situações completamente diferentes, mas há pontos em comum. Já morei em cidades diferentes ao redor do mundo, como Espanha e Austrália, e essa bagagem me deu mais ferramentas para lidar com desafios, medos, amores e dores. Lourenço, por outro lado, não tem essa vivência. Meu maior desafio como ator foi interpretar essa interiorização. Ele é uma implosão.
No Brasil, devido à linguagem da telenovela, estamos acostumados a expor emoções. Somos latinos, e a novela reflete isso: choramos, gritamos, dançamos sozinhos na sala. Mas Lourenço está tentando se encaixar em uma sociedade mais contida, como a americana. Ele não encontra espaço para extravasar. A lágrima vem, mas ele segura. É uma atuação mais sutil, contida e sensível, o que foi um grande desafio para mim. Fui entendendo a escola americana de atuação e como ela se diferencia da brasileira. Foi um aprendizado muito interessante.

James Bland, Marco Pigossi e Marco Calvani (Foto: Divulgação/LD Entertainment)
A PARTIR DAQUI, CONTÉM SPOILERS
HB – O Lourenço sofre muito no filme. Por que ele resolve ficar nos Estados Unidos? E poderia falar mais sobre o personagem do Scott (Bill Irwin)?
MC – Ele é apenas alguém que precisa de companhia. Se há algo sexual entre Scott e Lourenço, é de forma platônica. Nunca quis criar essa tensão. Mas Scott é um homem solitário, assim como Lourenço. No final do filme, Lourenço até diz a ele: “Eu não sou menos solitário do que você”. Não acho que Lourenço fique nos Estados Unidos. Vou dar um spoiler do spoiler: o final é aberto. Quando ele caminha pela praia e fala ao telefone com a mãe, diz: “Eu não vou voltar para casa. Você sabia que existem lugares no planeta com mais ovelhas do que pessoas?”.
Essa é uma referência a algo que Maurice contou sobre Angola, mas que, no fundo, vale para todos nós: estamos sempre em movimento. Lourenço pode não saber exatamente para onde vai, mas sabe onde não quer estar. Sugiro no filme que ele seguirá buscando a si mesmo, não necessariamente nos EUA. Se tivesse feito esse filme agora, em 2025, talvez deixasse isso ainda mais evidente.
MP – O filme é uma jornada interna de descoberta. Fala sobre pertencimento — a um grupo, a uma cidade, a outra pessoa —, mas, acima de tudo, a si mesmo. Para mim, é um filme super otimista, porque Lourenço entende isso. E quando você percebe que pertence a si, tudo se torna possível. Ele pode ir para Angola, ficar nos EUA, voltar para o Brasil… Não importa. Em certo momento, diz: “Eu não vou voltar, mas também não sei para onde vou”. Mas agora ele sabe como seguir no mundo.
HB – Como foi sua experiência no remake de Quarto do Pânico, dirigido pela Gabriela Amaral Almeida?
MP – Eu já terminei as filmagens. É uma releitura, nossa versão brasileira. A Gabriela é uma das diretoras mais incríveis com quem eu já trabalhei na vida. Sou apaixonado pelo trabalho dela. É um elenco incrível, com a Ísis Valverde, Caco Ciocler, foi uma experiência incrível.
HB – Vocês pretendem continuar morando nos Estados Unidos na atual conjuntura?
MC – A verdade é que não sabemos. Estamos fora dos EUA há três meses e vamos voltar em breve, mas não sei por quanto tempo. Está cada vez mais difícil viver lá. Queremos resistir através da nossa arte e dentro das nossas comunidades, ajudando quem precisa. Esse é o primeiro passo: nos apoiarmos. Mas, provavelmente, iremos embora antes que seja tarde demais. As coisas estão se deteriorando rápido.
MP – Nossa relação com os Estados Unidos é estritamente profissional. Nunca foi um sonho viver lá. Maré Alta escancara como o sonho americano está quebrado, uma ilusão vendida. Mas isso nunca foi uma questão para nós. Profissionalmente, as coisas estão acontecendo, e o país segue sendo um lugar interessante. Acho que o filme também responde a isso. Em um governo que opera pelo medo e pela opressão, essa história é um grito de liberdade e amor. O oposto do medo é o amor, e o oposto da opressão, a liberdade. É assim que tentamos combxter esse regime fascista e horroroso que se instala. Nunca pensei em morar lá. Nossa jornada segue aberta.

Foto: Divulgação/LD Entertainment
HB – Marisa Tomei, vencedora do Oscar por Meu Primo Vinny (1993), está incrível no filme. Como ela entrou nesse projeto?
MC – Temos colaborado bastante nos últimos anos. Nos conhecemos em 2018, trabalhando em uma peça na Broadway. Quando escrevia o filme, sempre pensei nela para esse papel. Fui direto até ela com o convite, sem muita esperança de que aceitaria, já que não era a protagonista. Mas, para minha surpresa, ela aceitou na hora e abraçou o projeto, o que facilitou a produção e atraiu outros colaboradores. Foi maravilhoso trabalhar com ela.
MP – No cinema, em inglês, atuar é to play. E não dá para jogar sozinho, você precisa do outro. Marisa traz frescor, inteligência. Foi incrível contracenar com ela. Eu tinha que estar sempre alerta, porque ela nunca fazia uma cena da mesma forma. Odeia cair na repetição e está sempre trazendo algo novo. Isso, como ator, te mantém vivo em cena, te faz estar presente e torna tudo mais natural. Foi uma experiência maravilhosa trabalhar com ela, um enorme prazer tê-la no filme. E ter um nome como o dela ajuda a abrir portas para o projeto.
HB – O poder transformador do cinema e da arte tem ganhado destaque, especialmente após o sucesso de Ainda Estou Aqui. Vocês acreditam nessa força? Maré Alta é uma forma de resistência?
MC – Sem dúvida! Estou muito feliz que o filme exista neste momento. Ele me ajudou a atravessar transformações importantes. Comecei a escrever o roteiro em 2020, durante a presidência de Trump, em meio à pandemia, ao movimento Black Lives Matter e ao assassinato de George Floyd. Tudo isso, de alguma forma, está refletido em Maré Alta. Foi minha maneira de lidar com essas questões. Fico feliz que o filme esteja chegando a tantas pessoas ao redor do mundo. Na próxima semana, teremos a estreia europeia no British Film Institute — e não poderia ser em um momento melhor. Não espero mudar a forma de pensar de Trump (presidente dos EUA), mas, se conseguir tocar o coração de algumas pessoas, já é um passo. É assim que a mudança acontece.
MP – A arte tem, sim, o poder de transformar. Quando lemos que pelo menos 5 mil pessoas desapareceram na ditadura ou que 5 mil imigrantes foram expulsos dos EUA, isso nos choca. Mas o cinema e a arte criam empatia, fazem a gente sentir o que essas pessoas viveram. Ao entrar na história da família de Ainda Estou Aqui, sentimos aquela perda. E é nesse momento que entendemos o que passaram, gerando empatia. O mesmo acontece com Lourenço: o público sente sua dor, suas dificuldades, e, a partir disso, pode olhar para o outro com mais compaixão — inclusive para o imigrante ao seu lado. Então, sim, a arte transforma. E o cinema tem esse poder.
MC – Na base do medo, está a ignorância. Algo que você não conhece. Este pode não ser exatamente um filme sobre imigrantes, mas ao mesmo tempo, dá para entender exatamente como eles se sentem. Você se aproxima das suas experiências. E é só assim que podemos mudar o mundo, nos conhecendo uns aos outros. Seja na rua, seja nas telas.

Foto: Divulgação/LD Entertainment
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