Cinema: “Meu nome é Maria” revisita a história de Maria Schneider e os traumas causados por “Último Tango em Paris”

“Meu nome é Maria” é correto e consegue nos apresentar as complexidades dessa história e dessas vidas que são narradas na tela ao remexer um momento espinhoso da indústria cinematográfica

Mar 29, 2025 - 12:40
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Cinema: “Meu nome é Maria” revisita a história de Maria Schneider e os traumas causados por “Último Tango em Paris”

texto de Renan Guerra

Até o início dos anos 2000 era clássico: toda lista de filmes sexys, sensuais e/ou ousados trazia em seu top 10 “Último Tango em Paris” (1972), de Bernardo Bertolucci, e quase sempre era mencionado em tom de galhofa a “cena da manteiga”, passagem do filme que virou um marco do cinema do século XX por diferentes motivos, dos que a celebravam aos que a achincalhavam. Porém seu impacto ganharia outros contornos em tempos de #MeToo e a cena clássica passou a virar um marco da violência sexual no cinema. No filme de Bertolucci, a atriz Maria Schneider, com 19 anos no início das filmagens, vive uma tórrida paixão com um viúvo americano de passagem por Paris, interpretado por Marlon Brando. Entre diferentes encontros sexuais, o relacionamento do casal chega ao seu ápice em uma cena de sexo não consensual, com um tablete de manteiga sendo utilizado como lubrificante.

Em termos práticos, essa é uma cena de sexo simulada, mas sob a qual a atriz Maria Schneider não tinha conhecimento. “Eu me senti humilhada e, para ser sincera, tive um pouco a impressão de ser violentada por Marlon e Bertolucci. No fim da cena, Marlon não veio me consolar, ou se desculpar. Felizmente, uma gravação foi suficiente”, disse Maria Schneider em entrevista ao Daily Mail, em 2007. Em 2013, Bertolucci afirmou: “a sequência da manteiga é uma ideia que eu tive com Marlon na véspera da filmagem. Eu queria que Maria reagisse, que ela fosse humilhada. Eu não queria que ela interpretasse a raiva, eu queria que ela sentisse raiva e humilhação”. Essas falas voltaram no furacão do movimento #MeToo em 2017 e escancaram as nuances de um filme que durante anos foi celebrado dentro da obra de Bertolucci e Brando, mas que ao mesmo tempo se transformou em uma chaga para a jovem atriz Maria Schneider, eternamente marcada por sua personagem.

Essa história ganha outras camadas quando volta a ser revisitada, agora observando a perspectiva de Maria Schneider, no longa-metragem “Meu nome é Maria” (“Maria”, 2024), dirigido pela francesa Jessica Palud, livremente inspirado no livro “My Cousin Maria: A Memoir” (2023), de Vanessa Schneider, jornalista e prima da atriz. A cinebiografia acompanha o início da carreira de Maria, ainda na adolescência, e sua relação conturbada com sua mãe e seu pai – o também ator Daniel Gélin, nome importante do cinema francês que participou de longas como “O Homem Que Sabia Demais” (1956), de Alfred Hitchcock, e “O sopro no coração” (1971), de Louis Malle. Passamos pela produção de “Último Tango em Paris” e acompanhamos o impacto que o filme teve/tem sobre a vida da atriz. E na sequência acompanhamos os altos e baixos da carreira de Schneider e sua relação com o vício em heroína, num fluxo que impacta sua vida profissional e pessoal.

Nas telas, Maria Schneider ganha vida pela atriz Anamaria Vartolomei, conhecida por ter protagonizado o premiado “O Acontecimento” (2022), de Audrey Diwan, baseado no livro de mesmo nome de Annie Ernaux. Vartolomei é o grande charme do filme dirigido por Jessica Palud, pois é ela que nos conduz pela história e enche sua personagem de humanidade, dando nuances que não aliviam as falhas da protagonista, mas que sim ajudam a construir uma personagem extremamente real. Para o papel de Marlon Brando, o desafio fica na mão de Matt Dillon, que se sai muito bem nos trejeitos do ator hollywoodiano – e olha que seria bem fácil cair em clichês caricaturais de Brando, pois ele é um desses atores que muita gente acha que sabe imitar. Já Bertolucci, se por um lado tem sua história e suas glórias revisitadas pelo lado mais negativo, por outro ganha um “upgrade” de fisionomia nas mãos do ator Giuseppe Maggio, bem mais belo do que jamais Bertolucci foi algum dia.

“Meu nome é Maria” tem um recorte bem definido e se concentra em uma parte importante da vida de Maria Schneider e isso é uma escolha importante para que o filme não se torne afobado ou exagerado demais. É uma obra correta, que consegue nos apresentar as complexidades dessa história e dessas vidas que são narradas na tela. E talvez o mais interessante da trama seja remexer nesses espinhos da indústria cinematográfica: o que fazemos com grandes obras e todos os erros humanos que estão envoltos nela? Como lidar com o passado da arte com os olhos de hoje? São questões latentes de nosso tempo e poder repensar isso a partir da própria arte é uma possibilidade extremamente rica.

Este pode não ser o grande filme do ano, mas é um importante filme para revisitarmos a história de Maria Schneider, bem como a história de tantas outras mulheres que construíram o nosso cinema no século XX e enfrentaram coisas absurdas. Ainda precisamos revisitar muitos dos esqueletos em nossos armários.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava