Cinema: “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz” recria teatralmente as reflexões do escritor
O que “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz” tem de melhor é sua relação com o teatro e com as demais linguagens artísticas, sobretudo pelo trabalho com a cenografia, os figurinos, os objetos de cena...

texto de Leandro Luz
Em “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz” (2024), Murilo Salles circunscreve as inúmeras curiosidades que permeiam a vida e a obra do grande polímata brasileiro durante a sua viagem pelo rio Amazonas em 1927. Mário de Andrade, na ocasião, havia acabado de conceber a sua obra-prima modernista, “Macunaíma”, mas só a publicaria no ano seguinte. O filme, baseado nas próprias memórias escritas por Andrade em formato de diário de viagem intitulado “O Turista Aprendiz” – publicado em coluna do jornal O Diario Nacional e postumamente editado em livro -, retrata justamente esse auspicioso episódio que antecede o lançamento de um dos maiores trabalhos literários da história do Brasil.
Uma viagem fitzcarraldiana, alguns poderiam observar. Ou talvez um tratado thomasmanniano, a julgar pelas referências à versão de Luchino Visconti para “Morte em Veneza” (1971). O calor, a solidão internalizada e a homossexualidade latente são elementos que habitam a figura deste Mário de Andrade, que ganha vida a partir da interpretação ativa de Rodrigo Mercadante, ator com uma carreira de quase três décadas no teatro, e que nos últimos anos vem se arriscando no cinema.
Dá para entender a razão pela qual Salles escolheu Mercadante para o papel. Ao interpretar uma personagem tão magnânima como essa, o ator é inteligente ao não engessar as possibilidades e adotar uma postura bem aberta, construindo uma personalidade rica e extemporânea. O Andrade de Mercadante nunca se permite ser encurralado em um beco sem saída. O físico do ator se molda às necessidades ora burguesas e intelectuais, ora radicais e até mesmo queer da personagem. O tom adotado também acompanha as diversas necessidades impostas pelo roteiro: se em determinada cena Andrade é pintado como um um homem de seu tempo e lugar, cortês e arguto, sobretudo no trato com as artes, em outras ele representa o que há de mais revolucionário. Um exemplo disso são os momentos em que ele, praticamente nu, resolve discorrer sobre o guaraná ou precisa interpretar diversas “miss” em um delirante e fantasioso concurso de beleza (miss jeitinho, miss falta de caráter, miss malandra etc.).
O Mário de Andrade lido por Murilo Salles é aquele que toma para si a curiosidade como elemento norteador da vida. É também aquele que sonha lasciva e febrilmente com vaqueiros e seringueiros. É, ainda, aquele que exclama bem alto um “puta fome, meu” e recebe um monumental tapa na cara. Mercadante dá vida a todas essas facetas a partir da bagagem que traz da própria personagem em suas montagens teatrais anteriores. Dá para se dizer, e isso pode afastar boa parte dos espectadores que estiverem esperando uma biopic tradicional, que o ator, apoiado pelas ideias e concepções visuais de Salles, recria teatralmente as reflexões do escritor.
O que “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz” tem de melhor é justamente essa relação que o filme estabelece com o teatro e com as demais linguagens artísticas, sobretudo pelo trabalho caprichado com a cenografia, os figurinos, os objetos de cena e o maquinário envolvido para conceber essa espécie de grande instalação que está contida no filme – ou que de fato é o filme, pois é praticamente o que viabiliza a sua existência artística. A própria postura dos atores e das atrizes coadjuvantes – o trabalho de Dora de Assis e de Dora Freind são um exemplo bem interessante disso – reforçam essa ideia, lançando mão de recursos próprios do teatro e da performance para recusar quaisquer intenções naturalistas.
Toda a aventura artística passa por desavergonhados manifestos declamatórios e delírios modernistas. Podemos observar a intenção desse gesto em diversos momentos, como por exemplo quando Mário está sentado em uma cadeira, com o rosto e o corpo suados (afinal de contas, estamos no meio da floresta amazônica), e o que vemos em segundo plano é uma tempestade de luzes que mudam de cor e temperatura para expressar de maneira poética o instante emocional da personagem.
Apesar de todos esses esforços que fazem de “Mário de Andrade, o Turista Aprendiz” um “must see” do circuito exibidor desta semana, Salles peca justamente onde não poderia: a presença de personagens indígenas – ou mesmo a importância dos povos originários para essa história – é ínfima, algo que soa no mínimo estranho para os dias de hoje, sobretudo diante do território sobre o qual passeia a narrativa.
Estamos em plena floresta amazônica e pouco somos informados da maneira como a cultura indígena afeta aqueles brasileiros e europeus que navegam pelos rios do norte. Independentemente do texto original, com tantas fabulações e tomadas de liberdade aplicadas pelo seu diretor, cultiva-se a ideia de que algo poderia ser feito na direção de garantir essa representatividade. Inclusive, as poucas vezes nas quais Salles aponta minimamente para uma tentativa de retirar o manto da invisibilidade desta questão, há uma barreira idiomática que interrompe qualquer possibilidade de aproximação: estranhamente, quando as pessoas tagarelam em francês, há uma mediação por meio de legendas em português; no entanto, nas raras vezes em que ouvimos palavras sendo proferidas em alguma língua indígena, o mesmo recurso da legenda não é empregado, impedindo o espectador de se aproximar, ainda que parcamente, de uma outra realidade senão a eurocêntrica.
– Leandro Luz (@leandro_luz) pesquisa e escreve sobre cinema. Coordena a área de audiovisual do Sesc RJ, atuando na curadoria, programação e gestão de projetos em todo o estado do Rio de Janeiro. Exerce atividades de crítica no Scream & Yell e nos podcasts Tudo É Brasil, Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.