10 Considerações sobre Vidas Secas, de Graciliano Ramos ou está certo isso?
O Blog Listas Literárias leu Vidas Secas, de Gracilianos Ramos, edição publicada pela Clássicos Zahar com apresentação de Itamar Vieira Júnior; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:1 - Clássico da literatura regionalista de 30, que com a entrada em domínio público ano passado recebeu muitas novas edições, Vidas Secas, de Graciliano Ramos é destas leituras que nos identifica enquanto nação, obra de leitura necessária e constituída de tantas camadas sobre o que somos, que por isso não apenas deve ser estudado, mas compreendido. Uma obra indispensável, certamente;2 - O romance narra com uma voz em terceira pessoa bastante onisciente, que por vezes parece existir simbioticamente aos personagens, a trajetória de Fabiano, Sinhá Vitória e seus filhos numa constante peregrinação contra a seca, a fome, mas essencialmente uma luta de resistência e persistência de pobres diabos que a despeito das opressões e do mundo opressor em que vivem, teimam em existir. A obra principia com a primeira fuga, quando acompanhamos a família em plena aridez do sertão, quase mortos, o papagaio que lhes acompanha virado jantar, farrapos humanos em pele e osso, à beira da morte num primeiro capítulo que é certamente um dos grandes primeiros capítulos da literatura brasileira;3 - Aliás, falando em narração, importante dizer que os treze capítulos que constituem o romance são episódicos, ou seja, são praticamente unidades isoladas e que em muitos casos podem ser lidos isoladamente, o que põe em xeque a genealogia da narrativa, de certo modo. Não que sejam propriamente contos, mas muitos capítulos quase assim podem ser entendidos, uma espécie de mosaico construidor da narrativa completa. Entre eles, diferentes passagens do tempo, contudo, sempre de forma linear. Os capítulos até o de Baleia, em especial, carregam maior independência da sequência, sendo os últimos algo mais aproximado do que poderíamos dizer sequência natural de capítulos. Quanto ao narrador, em muitos momentos funde-se aos diferentes personagens, já que nos capítulos acompanha diferentes membros dessa família sertaneja. É como se o narrador buscasse projetar os anseios mais íntimos, complexos e ambíguos dos personagens a que narra [No vídeo abaixo nossa série no YouTube analisando capítulo por capítulo de Vidas Secas]; 4 - Mas retomando o conjunto da narrativa, Vidas Secas, portanto, acompanha a saga desta família que está à beira da morte no primeiro capítulo, mas que graças à sombra dos juazeiros, resiste e então todos acabam trabalhando na fazenda do proprietário daquelas terras, o homem branco que sempre ganha as negociações com Fabiano. É a vida do vaqueiro Fabiano, então, nesse novo território capaz de lhe trazer melhoras, melhoras um tanto quanto questionáveis, é claro, que passamos a acompanhar na leitura. Fabiano, a quem a narração acompanha em número maior de capítulos, contudo, sem deixar de reservar espaço para os outros entes familiares protagonizarem seus próprios capítulos e também momentos em que toda a família está em cena, como no caso de Festa, quando a cidade se apresenta especialmente aos meninos e nos capítulos em que a diáspora da miséria entra em ação;5 - Mas não engane-se, embora comece e termine com a seca anunciada pelas arribações, o livro não é sobre a seca, ao menos, não numa única e maior medida. Mais do que retirantes climáticos, Fabiano e sua família são criaturas atiradas a um sistema opressor voraz e nada empático. Homem de muitos projetos e poucas ações, Fabiano mais do que um pobre miserável, um pobre diabo cuja culpa é sua, ao contrário, é uma "alma" relegada ao purgatório do tecido social marcado pela absurda desigualdade, seja econômica, seja ética. Mais que um romance sobre a seca, a narrativa é uma reflexão tenaz sobre o poder, suas teias e estruturas, pois como o próprio Fabiano recorda, "governo é governo";6 - Nesse sentido, dois capítulos em especial darão conta das estruturas as quais Fabiano, embora bruto e ignorante, parece ter consciência: os episódios Cadeia e O Soldado Amarelo. O primeiro narra a ida de Fabiano à cidade, negociar, fazer compras, até o momento que entra em uma jogatina e junto ao Soldado Amarelo perdem dinheiro. Chucro, Fabiano "desrespeita" a necessidade de atenção do Soldado, que junto de um Cabo aprisionam Fabiano e ainda golpeiam-no com facão. O sentimento de injustiça, de desrazão toma Fabiano, impotente de qualquer ação. O episódio configura-se nele como uma de suas grandes vergonhas, volta e meia veremos o episódio ressurgir em suas lembranças, até o dia em que no meio da caatinga reencontra O Soldado Amarelo no capítulo/episódio que talvez mais revele a consciência atroz de oprimido de Fabiano, momento em que sua fraqueza, sua incapacidade de dar cabo à vida do mirrado e mofina soldado lhe seja a vitória e a sua virtude;7 - Por que penso em revelação de uma consciência atroz da cruel condição de oprimido por parte de Fabiano? O capítulo em questão narra o encon

O Blog Listas Literárias leu Vidas Secas, de Gracilianos Ramos, edição publicada pela Clássicos Zahar com apresentação de Itamar Vieira Júnior; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, confira:
1 - Clássico da literatura regionalista de 30, que com a entrada em domínio público ano passado recebeu muitas novas edições, Vidas Secas, de Graciliano Ramos é destas leituras que nos identifica enquanto nação, obra de leitura necessária e constituída de tantas camadas sobre o que somos, que por isso não apenas deve ser estudado, mas compreendido. Uma obra indispensável, certamente;
2 - O romance narra com uma voz em terceira pessoa bastante onisciente, que por vezes parece existir simbioticamente aos personagens, a trajetória de Fabiano, Sinhá Vitória e seus filhos numa constante peregrinação contra a seca, a fome, mas essencialmente uma luta de resistência e persistência de pobres diabos que a despeito das opressões e do mundo opressor em que vivem, teimam em existir. A obra principia com a primeira fuga, quando acompanhamos a família em plena aridez do sertão, quase mortos, o papagaio que lhes acompanha virado jantar, farrapos humanos em pele e osso, à beira da morte num primeiro capítulo que é certamente um dos grandes primeiros capítulos da literatura brasileira;
3 - Aliás, falando em narração, importante dizer que os treze capítulos que constituem o romance são episódicos, ou seja, são praticamente unidades isoladas e que em muitos casos podem ser lidos isoladamente, o que põe em xeque a genealogia da narrativa, de certo modo. Não que sejam propriamente contos, mas muitos capítulos quase assim podem ser entendidos, uma espécie de mosaico construidor da narrativa completa. Entre eles, diferentes passagens do tempo, contudo, sempre de forma linear. Os capítulos até o de Baleia, em especial, carregam maior independência da sequência, sendo os últimos algo mais aproximado do que poderíamos dizer sequência natural de capítulos. Quanto ao narrador, em muitos momentos funde-se aos diferentes personagens, já que nos capítulos acompanha diferentes membros dessa família sertaneja. É como se o narrador buscasse projetar os anseios mais íntimos, complexos e ambíguos dos personagens a que narra [No vídeo abaixo nossa série no YouTube analisando capítulo por capítulo de Vidas Secas];
4 - Mas retomando o conjunto da narrativa, Vidas Secas, portanto, acompanha a saga desta família que está à beira da morte no primeiro capítulo, mas que graças à sombra dos juazeiros, resiste e então todos acabam trabalhando na fazenda do proprietário daquelas terras, o homem branco que sempre ganha as negociações com Fabiano. É a vida do vaqueiro Fabiano, então, nesse novo território capaz de lhe trazer melhoras, melhoras um tanto quanto questionáveis, é claro, que passamos a acompanhar na leitura. Fabiano, a quem a narração acompanha em número maior de capítulos, contudo, sem deixar de reservar espaço para os outros entes familiares protagonizarem seus próprios capítulos e também momentos em que toda a família está em cena, como no caso de Festa, quando a cidade se apresenta especialmente aos meninos e nos capítulos em que a diáspora da miséria entra em ação;
5 - Mas não engane-se, embora comece e termine com a seca anunciada pelas arribações, o livro não é sobre a seca, ao menos, não numa única e maior medida. Mais do que retirantes climáticos, Fabiano e sua família são criaturas atiradas a um sistema opressor voraz e nada empático. Homem de muitos projetos e poucas ações, Fabiano mais do que um pobre miserável, um pobre diabo cuja culpa é sua, ao contrário, é uma "alma" relegada ao purgatório do tecido social marcado pela absurda desigualdade, seja econômica, seja ética. Mais que um romance sobre a seca, a narrativa é uma reflexão tenaz sobre o poder, suas teias e estruturas, pois como o próprio Fabiano recorda, "governo é governo";
6 - Nesse sentido, dois capítulos em especial darão conta das estruturas as quais Fabiano, embora bruto e ignorante, parece ter consciência: os episódios Cadeia e O Soldado Amarelo. O primeiro narra a ida de Fabiano à cidade, negociar, fazer compras, até o momento que entra em uma jogatina e junto ao Soldado Amarelo perdem dinheiro. Chucro, Fabiano "desrespeita" a necessidade de atenção do Soldado, que junto de um Cabo aprisionam Fabiano e ainda golpeiam-no com facão. O sentimento de injustiça, de desrazão toma Fabiano, impotente de qualquer ação. O episódio configura-se nele como uma de suas grandes vergonhas, volta e meia veremos o episódio ressurgir em suas lembranças, até o dia em que no meio da caatinga reencontra O Soldado Amarelo no capítulo/episódio que talvez mais revele a consciência atroz de oprimido de Fabiano, momento em que sua fraqueza, sua incapacidade de dar cabo à vida do mirrado e mofina soldado lhe seja a vitória e a sua virtude;
7 - Por que penso em revelação de uma consciência atroz da cruel condição de oprimido por parte de Fabiano? O capítulo em questão narra o encontro solitário dos dois, ali no meio da caatinga o sujeito cheio das arrogâncias no episódio da prisão tem a postura de um rato acoado, com o facão em riste por pouco Fabiano não lhe corta ao meio, uma fração de segundos... Contudo, Fabiano martiriza-se, por que não liquidar o sujeito desgraçado, ali, todo tremente, covarde que apenas a farda e a posição e o espaço geográfico lhe dão vida. No meio da caatinga estava a mercê da escolha de Fabiano, criatura vil, o soldado arrasta-se, Fabiano conflitua-se. O que fazer? E aí a ignorância, ou suposta ignorância de Fabiano desfaz-se. No fundo tem a tomada de uma consciência: diante dele não está o soldado amedrontado. "Governo é governo" diz Fabiano, que embora recrimine-se, veja-se como covarde ao não dar cabo do homem, ali, no meio da caatinga demonstra mais que uma simples sabedoria, de certo modo, consciência de classe. Não é por falta de coragem ou desejo bruto que Fabiano não mata o homem, é pela tomada de consciência, ali está não apenas O Soldado Amarelo, mas sim o poder, a estrutura de poder que chancela tipos como ele. No meio da caatiga há a negação de Fabiano ao poder. Ao não jogar o vil jogo, ele mesmo trará lembranças de que bem poderia ter escolhido o cangaço, mas não o fez, Fabiano supera-o. Nega-o. Não jogará aquilo que está programado para lhe derrotar, de modo que, embora bruto, um simples resistente, restistência no sentido de insistir sobrevivendo entre as explorações que a sociedade lhe opera;
8 - E não são poucas as explorações sociais acometidas sobre Fabiano e a família. Ainda que numa vida melhor que a que inicia o primeiro capítulo, Fabiano passará os demais lastimando-se das tantas explorações, dos comerciantes que lhe sovinam preços, do patrão, o homem branco que lhe apresenta os juros e a impossibilidade de prosperar. Fabiano percebe-se preso a um mundo cujas amarras são postas para não desatarem nunca. Aliás, a questão racial e étnica é emblemática na narrativa e por si só demandaria análise específica. Em sua, Fabiano e família compreendem-se em meio a um sistema que tudo lhes tira, uúnica solução é seguir em movimento, resistindo...
9 - O que se amplia com os prenúncios finais e principalmente o último, Fuga, que com a chegada das arribações traz nova e voraz seca colocando a família novamente na estrada. É a circularidade da tragédia, mal tiveram um suspiro na fazenda, um suspiro que lhe dera coisas e lhes tirara outra (nem comentarei o destino de Baleia). Contudo, se o livro termina e começa com a diáspora da miséria daquela família de pobres diabos, ao cabo o que se têm são os sopros de uma esperança que apenas os resistentes talvez conservem, pois que a despeito da nova jornada no sertão, o sol que torra, as carnes que murcham, a narrativa encerra-se com o Fabiano visionário de sempre, com o homem que mesmo diante da possível morte vislumbra seus novos destinos;
10 - Enfim, Vidas Secas é um clássico não à toa. Embrenha-se pelos sertões de nossos problemas, de nossas tragédias. Fabiano, Sinhá Vitória e os Meninos representam um tipo de gente que a despeito do ódio com que o sistema lhes trata e considera, persiste, isso numa resistência lenta e por vezes pouco discernível, como a consciência de um Fabiano que nega-se a entrar nas lutas e disputas do poder, ficando à margem, mas ali, presente!