A pauta desmobilizadora e bestializante do julgamento de Bolsonaro no STF

 "O Brasil não tem povo", observou admirado o biólogo francês Louis Conty quando a República foi proclamada no Brasil. Para ele, a população assistiu a tudo "bestializado" - sem entender um acontecimento aparentemente longe da diária luta pela sobrevivência. Esse foi o imaginário fundador da República. No século XIX, iniciado como tragédia. Agora, no século XXI, como farsa, ardil. O julgamento pelo STF dos indiciados pela PGR por tentativa de golpe de Estado no 8/1, e o principal deles, o líder Bolsonaro, foi acompanhado na TV pela esquerda como uma final de Copa do Mundo: a derradeira "defesa da Democracia". Nem a grande mídia ou a esquerda se esforçam em mostrar o que essa agenda tem a ver com o dia a dia do brasileiro onde precarização e financeirização dominam na luta cotidiana. Ardil da extrema direita: abduzir a esquerda com a judicialização numa agenda sem aderência popular. Enquanto grande mídia cria personagens como a "Débora do Batom" para contaminar as eleições de 2026. Sinal dos tempos... Quando entrei na Universidade em 1980, em pleno processo de abertura política em uma ditadura militar renitente, devorava livros de economia política, sociologia e filosofia. Se você buscava algum caminho para a revolução ou a reforma da sociedade, somente poderia ser encontrado naquelas ciências que estudavam a sociedade e em como fazer uma crítica ideológica que tirasse o véu diante da realidade. Hoje parece que o caminho mudou. Esqueça Marx, Durkheim e Weber e prefira os clássicos do universo do Direito como Grotius, Jean Bodin, Norberto Bobbio ou Scott Turow para entender o necessário para o aluno no primeiro ano do curso. É a conclusão que podemos chegar ao vermos a atual centralidade do Judiciário na resposta a uma tentativa de golpe de Estado, comandado por militares recalcitrantes e a extrema-direita sempre no cio. E como a palavra “histórico” é inserida em nove entre dez frases que a cobertura midiática faz do julgamento dos denunciados pelo 8/1. E o principal deles: o supostamente líder de toda conspiração, o ex-presidente Jair Bolsonaro. Não importa se é jornalismo hegemônico ou alternativo: tudo está sendo colocado como um importante capítulo da construção republicana brasileira – até recentemente o ex-presidente José Sarney fez um périplo de entrevistas celebrizando os 40 anos da Nova República. E mais uma vez os ministros do STF são colocados como protagonistas em longas transmissões ao vivo pela TV e Internet. Lá no Mensalão e Lava Jato, tratava-se de “passar o País a limpo”. O mesmo mote estava presente quando foi negado o habeas corpus no qual a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentava impedir eventual prisão após o fim dos recursos na segunda instância da Justiça Federal em 2018, abrindo o caminho para o atual réu, Bolsonaro, ganhar a eleição em 2018. Ministro Fux Pop: shows para a grande mídiaIronicamente, a esquerda mesmerizada assiste pela TV ao "Julgamento de Bolsonaro", em sua luta pela defesa da Democracia e anistia dos indiciados pelo 8/1. Colocando suas esperanças no mesmo STF que pavimentou o caminho para o golpe militar híbrido em 2018: mandou o favorito nas pesquisas eleitorais, Lula, para a cadeia. Deixando aberta a vitória de Bolsonaro, a ocupação militar da máquina do Estado e a implementação a toque de caixa das políticas neoliberais – que hoje toma como refém o governo de coalizão de Lula. STF que tem um indiscutível protagonismo: indo contra a própria Constituição (sob o argumento falacioso de que a Constituição Cidadã foi aprovada antes da queda do Muro de Berlin) contribui com o desmonte dos direitos dos trabalhadores ao assumir um protagonismo em reforma extremamente profundas das relações do direito do trabalho. O cientista político Roberto Amaral sintetiza muito bem essa paradoxal paisagem midiática e como a esquerda está sendo enredada nessa verdadeira operação psicológica:  O país assiste a um dos momentos mais importantes da construção republicana, mas dele parece ausente a nação, mal-informada pela grande imprensa — que reduz o fato político essencial a questiúnculas jurídicas — e pelos partidos, desmobilizados e desmobilizantes, perigosamente desafeitos à ação. Enquanto o dever coletivo seria esclarecer a opinião pública, carente de debate e presa das milícias digitais, a esquerda — estranho destino! — conforma-se como plateia cansada. Cruzamos os braços e nos quedamos em cômoda tranquilidade, porque delegamos nossos destinos de nação e país ao STF. AMARAL, Roberto, "O julgamento dos golpistas é uma página virada" - clique aqui. "Quedamos em cômoda tranquilidade". Assim como na noite do Oscar e a torcida pelo filme Ainda Estou Aqui", o julgamento do STF foi cercado com um clima de final de Copa de Mundo e uma enxurrada de memes que, numa síntese, a ideia geral era Bozo vendo o porvir através de grades ou muros altos. A crítica de Amaral relembra os relatos historiográficos do século XIX de que a população do Rio de Janeiro assistiu "bestializada" à p

Apr 1, 2025 - 16:28
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A pauta desmobilizadora e bestializante do julgamento de Bolsonaro no STF


 

"O Brasil não tem povo", observou admirado o biólogo francês Louis Conty quando a República foi proclamada no Brasil. Para ele, a população assistiu a tudo "bestializado" - sem entender um acontecimento aparentemente longe da diária luta pela sobrevivência. Esse foi o imaginário fundador da República. No século XIX, iniciado como tragédia. Agora, no século XXI, como farsa, ardil. O julgamento pelo STF dos indiciados pela PGR por tentativa de golpe de Estado no 8/1, e o principal deles, o líder Bolsonaro, foi acompanhado na TV pela esquerda como uma final de Copa do Mundo: a derradeira "defesa da Democracia". Nem a grande mídia ou a esquerda se esforçam em mostrar o que essa agenda tem a ver com o dia a dia do brasileiro onde precarização e financeirização dominam na luta cotidiana. Ardil da extrema direita: abduzir a esquerda com a judicialização numa agenda sem aderência popular. Enquanto grande mídia cria personagens como a "Débora do Batom" para contaminar as eleições de 2026. 

Sinal dos tempos... Quando entrei na Universidade em 1980, em pleno processo de abertura política em uma ditadura militar renitente, devorava livros de economia política, sociologia e filosofia. Se você buscava algum caminho para a revolução ou a reforma da sociedade, somente poderia ser encontrado naquelas ciências que estudavam a sociedade e em como fazer uma crítica ideológica que tirasse o véu diante da realidade. 

Hoje parece que o caminho mudou. Esqueça Marx, Durkheim e Weber e prefira os clássicos do universo do Direito como Grotius, Jean Bodin, Norberto Bobbio ou Scott Turow para entender o necessário para o aluno no primeiro ano do curso. 

É a conclusão que podemos chegar ao vermos a atual centralidade do Judiciário na resposta a uma tentativa de golpe de Estado, comandado por militares recalcitrantes e a extrema-direita sempre no cio. E como a palavra “histórico” é inserida em nove entre dez frases que a cobertura midiática faz do julgamento dos denunciados pelo 8/1. E o principal deles: o supostamente líder de toda conspiração, o ex-presidente Jair Bolsonaro. 

Não importa se é jornalismo hegemônico ou alternativo: tudo está sendo colocado como um importante capítulo da construção republicana brasileira – até recentemente o ex-presidente José Sarney fez um périplo de entrevistas celebrizando os 40 anos da Nova República. 

E mais uma vez os ministros do STF são colocados como protagonistas em longas transmissões ao vivo pela TV e Internet. Lá no Mensalão e Lava Jato, tratava-se de “passar o País a limpo”. O mesmo mote estava presente quando foi negado o habeas corpus no qual a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentava impedir eventual prisão após o fim dos recursos na segunda instância da Justiça Federal em 2018, abrindo o caminho para o atual réu, Bolsonaro, ganhar a eleição em 2018. 

Ministro Fux Pop: shows para a grande mídia


Ironicamente, a esquerda mesmerizada assiste pela TV ao "Julgamento de Bolsonaro", em sua luta pela defesa da Democracia e anistia dos indiciados pelo 8/1. Colocando suas esperanças no mesmo STF que pavimentou o caminho para o golpe militar híbrido em 2018: mandou o favorito nas pesquisas eleitorais, Lula, para a cadeia. Deixando aberta a vitória de Bolsonaro, a ocupação militar da máquina do Estado e a implementação a toque de caixa das políticas neoliberaisque hoje toma como refém o governo de coalizão de Lula. 

STF que tem um indiscutível protagonismo: indo contra a própria Constituição (sob o argumento falacioso de que a Constituição Cidadã foi aprovada antes da queda do Muro de Berlin) contribui com o desmonte dos direitos dos trabalhadores ao assumir um protagonismo em reforma extremamente profundas das relações do direito do trabalho. 

O cientista político Roberto Amaral sintetiza muito bem essa paradoxal paisagem midiática e como a esquerda está sendo enredada nessa verdadeira operação psicológica:  

O país assiste a um dos momentos mais importantes da construção republicana, mas dele parece ausente a nação, mal-informada pela grande imprensa — que reduz o fato político essencial a questiúnculas jurídicas — e pelos partidos, desmobilizados e desmobilizantes, perigosamente desafeitos à ação. Enquanto o dever coletivo seria esclarecer a opinião pública, carente de debate e presa das milícias digitais, a esquerda — estranho destino! — conforma-se como plateia cansada. Cruzamos os braços e nos quedamos em cômoda tranquilidade, porque delegamos nossos destinos de nação e país ao STF. AMARAL, Roberto, "O julgamento dos golpistas é uma página virada" - clique aqui. 

"Quedamos em cômoda tranquilidade". Assim como na noite do Oscar e a torcida pelo filme Ainda Estou Aqui", o julgamento do STF foi cercado com um clima de final de Copa de Mundo e uma enxurrada de memes que, numa síntese, a ideia geral era Bozo vendo o porvir através de grades ou muros altos. 




A crítica de Amaral relembra os relatos historiográficos do século XIX de que a população do Rio de Janeiro assistiu "bestializada" à proclamação da República brasileira. O início do imaginário da República: um acontecimento imposto de cima para baixo do qual o povo não foi convidado a participar ou compreender.  Na época, o francês Louis Couty resumiu em uma frase a situação sociopolítica do Brasil: “O Brasil não tem povo” - CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados - O Rio de Janeiro e a república que não foi, Companhia das Letras, 2019. 

A grande mídia pouco importa explicar o significado de expressões como "golpe de Estado", "defesa da Democracia" ou "ditadura militar". Ou repercute o esoterismo das "questiúnculas jurídicas" (de "pescas comprobatórias" a "dosimetrias"), ou dá visibilidade a personagens como a "Débora do Batom" (aquela que pichou a estátua da Justiça no 8/1) para sugerir que tudo é uma bagunça e que tem mesmo é que anistiar todo mundo diante dos exageros do STF. 

Síndrome de Pavlov

Quanto a esquerda, é o momento de agir com o fígado e cobrar daqueles que mandaram Lula para a masmorra, que façam o mesmo com Bolsonaro e seus asseclas milicos. Veem as campanhas da extrema-direita (como malicioso apoio semiótico da grande mídia) como uma extensão de um novo golpe de Estado. 

E, numa síndrome de Pavlov, responde as manifestações de Bolsonaro em Copacabana com outra na Avenida Paulista, em SP, nesse domingo (30/03) com as palavras de ordem da "Defesa da Democracia" e "Sem Anistia". E toca a guerra dos números nos jornalões e redes sociais sobre a contagem dos participantes (a esquerda venceu ou perdeu?) com a costumeira incongruência entre a metodologia da USP, Polícia Militar, influencer de direita e esquerda etc. 




Como aponta Amaral, são manifestações de partidos "desmobilizados e desmobilizantes". Sem qualquer preocupação pedagógica em massificar a questão, preferindo circunscrever a batalha aos advogados e juristas.  

O que nos conduz a máxima do Brasil como o "País dos Bacharéis", como bem lembrou Pedro Augusto Pinho (do Conselho Editorial do Pátria Latina), no qual juízes, desembargadores e sumidades do Direito " ficaram muito mais conhecidos do que os engenheiros que construíram as estradas de ferro e de rodagem, os portos e estaleiros, as fábricas que deram emprego, produtos e tecnologia, e fizeram o Brasil crescer". 

Daí ter sido o Brasil chamado de “país dos bacharéis”.   

No momento em que o Brasil se desindustrializa, o capital financeiro domina a vida de todos, o País para, as redes de televisão concentram-se na transmissão de um julgamento que não resolverá qualquer problema que nos aflige como o emprego, a distribuição de renda, a habitação, que não mais nos faça conhecido como o país dos sem-teto e sem comida. Perdemos já há muito, o sentido do nacional, do trabalhismo, da instrução e da organização nacional. - PINHO, Pedro Augusto. " Julgamento de um ex-presidente no país dos bacharéis" - clique aqui. 

Certamente está aqui o ardil do "não-acontecimento" do 8/1 (sobre esse conceito, clique aqui) e todos os seus spin-offs decorrentes nos últimos anos. Sendo agora o spin-off decisivo: o julgamento dos indiciados do PGR, projetado para se arrastar até 2026, contaminando o ano eleitoral – sendo que o episódio da "Débora do Batom" é um pequeno exemplo bem didático: com toda repercussão midiática, Debora Rodrigues dos Santospensa na candidatura em 2026 pelo PL. 

O ardil do 8/1 (alterar a práxis política da esquerda com a judicialização pelo medo de um suposto golpe que poderá vir de qualquer lugar) é uma operação psicológica que visa cooptar a esquerda pelo pânico de crises ou ameaças, cuja agenda está distante do cotidiano do brasileiro. Mais preocupado em enfrentar o dia a dia de um País cujo PIB cresce ao custo da precarização, abertura de empregos de baixa qualidade do setor de serviços e baixa remuneração.

Ou se tornar um empreendedor para viver ainda mais na corda bamba. Em condições de luta pela sobrevivência cujas condições materiais precárias o aliena ainda mais das preocupações da "Defesa da Democracia". 

Sob a doutrinação diária dos Aparelhos Ideológicos de Estado (mídia, Igreja etc.), bem distante da agenda da luta contra os golpistas na qual a esquerda investe tempo e energia – basta uma rápida troca de canais de TV em uma simples manhã e verá programas cujos conteúdos ou fazem um misto de elogios a liberdade de empreender, ou transmitem cultos que mostram como a fé em Jesus ajuda nos seus negócios e o protege do Mal... 

Em síntese: é o cenário de uma esquerda abduzida por uma pauta extremamente desmobilizadora e bestializante.  


PS.: É sintomática a nota de Lula nas redes sociais sobre os 61 anos do golpe militar de 1964. Sem assertividade ou referência direta ao golpe de Estado militar, para Lula, o 31 de março é um dia para recordar a "importância da democracia, dos direitos humanos e da soberania do povo para escolher nas urnas seus líderes e traçar o seu futuro". Repete a abstrata pauta de "Defesa da Democracia" num governo que parece ser mais do que uma simples "coalizão".  Está mais para abdução. Como revela o "crédito consignado para o trabalhador CLT" que deixou a Febraban com uma sorriso de orelha a orelha: oferece o FGTS como garantia para a Banca financeira.