Na Primavera do cinema(sobre Cartas Telepáticas e Ressaca Bailada)

Quando os filmes sabem arriscar nas linguagens, é o espectador que ganha com a experiência — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 março).Se é verdade que, pelo menos no cinema, todas as crises apelam à criatividade, não será menos verdade que a crise actual — com o triunfo do populismo “telenovelesco”, a dispersão dos espectadores por plataformas sem gosto cinéfilo e o esvaziamento da memória como fundamental raiz cultural — está longe de poder alimentar grandes optimismos. Em qualquer caso, para lá da mediocridade que passou a comandar o imaginário televisivo, e também da necessidade de mais e melhores ideias alternativas de difusão, convenhamos que continua a haver filmes que, mesmo com resultados desequilibrados, arriscam nas linguagens, convocando os espectadores para experiências singulares. Assim acontece com Cartas Telepáticas, de Edgar Pêra, e Ressaca Bailada, de Sebastião Varela — se quisermos atrair a candura de algum simbolismo, diremos que ambos chegaram às salas na quinta-feira, dia 20, primeiro dia de Primavera. Cartas Telepáticas prolonga o gosto (creio que posso dizer sem exagero: a obsessão) do seu realizador pelo universo multifacetado de Fernando Pessoa — recordo o exemplo do desconcertante e envolvente Não Sou Nada – The Nothingness Club (2023), vertigem audiovisual gerada a partir dos heterónimos do poeta. Ressaca Bailada tem como base o trabalho do Expresso Transatlântico, projecto musical que reúne o realizador, Gaspar Varela e Rafael Matos, numa revisitação da herança do fado que acaba por transcender fronteiras estéticas e géneros estabelecidos (é das “coisas” mais fascinantes que tenho escutado recentemente).A revisitação “pessoana” faz-se através de um dispositivo insólito, carregado de sugestões capazes de nos ajudarem a repensar as matérias, e também a vocação simbólica, das próprias heranças literárias. Assim, as “cartas" que o título refere pertencem a uma correspondência imaginária trocada entre Pessoa (1888-1935) e o escritor americano H. P. Lovecraft (1890-1937) — daí nasce uma textura narrativa em que dialogam a fragmentação identitária do primeiro e os monstros inventados pelo segundo. São ziguezagues pontuados por inusitadas cumplicidades, tudo encenado em imagens manipuladas através do recurso a mecanismos de Inteligência Artificial. Não é um tique “modernista”, mas uma forma de relançar uma pergunta primitiva: como transfigurar as palavras escritas em acontecimento audiovisual?No caso de Ressaca Bailada, e para lá das muitas diferenças, estamos perante uma interrogação em parte semelhante: como dar corpo (corpo cinematográfico, entenda-se) à riqueza musical do Expresso Transatlântico? A resposta pode começar por nos remeter para uma lógica de teledisco, mas rapidamente se assume como performance eminentemente teatral. Há, por isso, qualquer coisa de irónico no subtítulo “filme concerto”. Assim, por um lado, não existe um espaço fixo e delimitado à maneira clássica de um concerto; ao mesmo tempo, por outro lado, a música nasce da ambição de gerar o seu próprio território expressivo, numa paisagem dramática em que as águas do mar são matéria simbólica essencial — no limite, a herança fadista apela ao risco da experimentação.Dir-se-á que Cartas Telepáticas talvez pertencesse, antes de tudo o mais, a uma proposta esotérica mais adequada a um espaço museológico, enquanto Ressaca Bailada faria mais sentido como um “especial” vocacionado para o pequeno ecrã caseiro. Em boa verdade, creio que será muito bom que possam circular também por essas vias, mas importa não menosprezar o facto de ambos nascerem do desejo de um espectador que não se deixe encerrar numa visão banalmente mercantil do próprio cinema — repensar o uso e o valor dos ecrãs é, afinal, uma urgência do nosso presente.

Mar 31, 2025 - 22:47
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Na Primavera do cinema(sobre Cartas Telepáticas e Ressaca Bailada)
Quando os filmes sabem arriscar nas linguagens, é o espectador que ganha com a experiência — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 março).

Se é verdade que, pelo menos no cinema, todas as crises apelam à criatividade, não será menos verdade que a crise actual — com o triunfo do populismo “telenovelesco”, a dispersão dos espectadores por plataformas sem gosto cinéfilo e o esvaziamento da memória como fundamental raiz cultural — está longe de poder alimentar grandes optimismos. Em qualquer caso, para lá da mediocridade que passou a comandar o imaginário televisivo, e também da necessidade de mais e melhores ideias alternativas de difusão, convenhamos que continua a haver filmes que, mesmo com resultados desequilibrados, arriscam nas linguagens, convocando os espectadores para experiências singulares. Assim acontece com Cartas Telepáticas, de Edgar Pêra, e Ressaca Bailada, de Sebastião Varela — se quisermos atrair a candura de algum simbolismo, diremos que ambos chegaram às salas na quinta-feira, dia 20, primeiro dia de Primavera.
Cartas Telepáticas prolonga o gosto (creio que posso dizer sem exagero: a obsessão) do seu realizador pelo universo multifacetado de Fernando Pessoa — recordo o exemplo do desconcertante e envolvente Não Sou Nada – The Nothingness Club (2023), vertigem audiovisual gerada a partir dos heterónimos do poeta. Ressaca Bailada tem como base o trabalho do Expresso Transatlântico, projecto musical que reúne o realizador, Gaspar Varela e Rafael Matos, numa revisitação da herança do fado que acaba por transcender fronteiras estéticas e géneros estabelecidos (é das “coisas” mais fascinantes que tenho escutado recentemente).
A revisitação “pessoana” faz-se através de um dispositivo insólito, carregado de sugestões capazes de nos ajudarem a repensar as matérias, e também a vocação simbólica, das próprias heranças literárias. Assim, as “cartas" que o título refere pertencem a uma correspondência imaginária trocada entre Pessoa (1888-1935) e o escritor americano H. P. Lovecraft (1890-1937) — daí nasce uma textura narrativa em que dialogam a fragmentação identitária do primeiro e os monstros inventados pelo segundo. São ziguezagues pontuados por inusitadas cumplicidades, tudo encenado em imagens manipuladas através do recurso a mecanismos de Inteligência Artificial. Não é um tique “modernista”, mas uma forma de relançar uma pergunta primitiva: como transfigurar as palavras escritas em acontecimento audiovisual?
No caso de Ressaca Bailada, e para lá das muitas diferenças, estamos perante uma interrogação em parte semelhante: como dar corpo (corpo cinematográfico, entenda-se) à riqueza musical do Expresso Transatlântico? A resposta pode começar por nos remeter para uma lógica de teledisco, mas rapidamente se assume como performance eminentemente teatral. Há, por isso, qualquer coisa de irónico no subtítulo “filme concerto”. Assim, por um lado, não existe um espaço fixo e delimitado à maneira clássica de um concerto; ao mesmo tempo, por outro lado, a música nasce da ambição de gerar o seu próprio território expressivo, numa paisagem dramática em que as águas do mar são matéria simbólica essencial — no limite, a herança fadista apela ao risco da experimentação.
Dir-se-á que Cartas Telepáticas talvez pertencesse, antes de tudo o mais, a uma proposta esotérica mais adequada a um espaço museológico, enquanto Ressaca Bailada faria mais sentido como um “especial” vocacionado para o pequeno ecrã caseiro. Em boa verdade, creio que será muito bom que possam circular também por essas vias, mas importa não menosprezar o facto de ambos nascerem do desejo de um espectador que não se deixe encerrar numa visão banalmente mercantil do próprio cinema — repensar o uso e o valor dos ecrãs é, afinal, uma urgência do nosso presente.