Em sua segunda temporada, “Ruptura” dobra a aposta na intriga – com memoráveis resultados

“Ruptura” é, indiscutivelmente, uma das maiores maravilhas do entretenimento televisivo em muito tempo – quiçá, da era contemporânea como um todo.

Mar 31, 2025 - 15:34
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Em sua segunda temporada, “Ruptura” dobra a aposta na intriga – com memoráveis resultados

texto de Davi Caro

Aviso: o texto contém spoilers da primeira temporada de “Ruptura”

“Não acredite no hype”, já dizia a antológica canção de 1988 do Public Enemy. Analisando friamente, são poucas as produções audiovisuais capazes de gerar empolgação coletiva de maneira tão inescapável e orgânica hoje em dia. Especialmente em um momento no qual muito do que se produz para os cinemas e para as plataformas de streaming se ampara na reciclagem do já conhecido, mirando na segurança do “fan service” e, paradoxalmente, criando a sensação de saturação em espectadores cada vez mais exigentes. E talvez só esta exigência seja capaz de explicar o fenômeno que “Ruptura” (“Severance”, no original) despertou em audiências ao redor do globo desde seu lançamento original, em 2022, e o esmagador sucesso de público e de crítica angariado pela produção em sua segunda temporada, recentemente concluída e disponível via Apple TV+. Idealizada por Dan Erickson com produção executiva e direção de Ben Stiller, “Ruptura” é cativante desde o início de sua primeira temporada por, através de um filtro muito particular, centrar seu foco em dilemas existenciais comuns a quase todos, e faz perguntas para as quais poucos (ou ninguém) seria preparado para responder.

Os eventos da série ocorrem em uma realidade alternativa onde funcionários da empresa de tecnologia Lumon têm a possibilidade de dividirem sua própria existência entre os indivíduos que são dentro de seu espaço de trabalho (chamados aqui de “innies”) e suas personalidades de fora da empresa, incapazes de reter qualquer ideia ou memória do que é feito dentro do escritório (os “outies”). É neste dilema que vive Mark Scout (Adam Scott), um ex-professor traumatizado com a perda da esposa e que vê em seu alter-ego profissional, Mark S., um escape para o vazio existencial que vive em seu dia-a-dia. Tal vazio ecoa nas vidas dos colegas de escritório do personagem, o irreverente Dylan (Zach Cherry), o estoico Irving (John Turturro) e a novata Helly (Britt Lower), cada um com suas próprias questões e idiossincrasias – e todos sob a atenta supervisão da diretora Harmony Cobel (Patricia Arquette) e do gerente Seth Milchick (Tramell Tillman).

O primeiro grande acerto do enredo de “Ruptura” está em apresentar uma mitologia díspar em relação à nossa própria, apesar de muitos dos alicerces desta realidade espelharem aqueles da vida real: seja através da devoção quase religiosa por Kier, uma entidade diretamente ligada à fundação das indústrias Lumon, ou da instrumentalização da psicologia das pessoas inseridas dentro da empresa, por meio da psicóloga Srta. Casey (Dichen Lachman), mais tarde revelada como Gemma Scout – a esposa que Mark acredita haver perdido. É este tom conspiratório que permeia toda a primeira temporada, com um enredo que resvala na ficção científica distópica esquadrinhando contundentes críticas à cultura e ao mundo corporativos. O épico final da primeira leva de episódios, no qual é executado um arriscado plano para conectar as personalidades “internas” do quarteto de funcionários em um ambiente externo à empresa a fim de desvendarem enigmas sobre o quão longe os tentáculos da Lumon são capazes de chegar, lança os dados para os dilemas e obstáculos que serão enfrentados pelos quatro protagonistas – e muitos dos que os rodeiam – ao longo dos episódios que compõem esta segunda temporada.

A mais chocante das revelações mostradas anteriormente também funciona como ponto de partida para a carga dramática exposta aqui: a de que Helly R. é, para o mundo exterior, melhor conhecida como Helena Eagan – filha de Jame Egan (Michael Siberry), atual CEO da empresa, e o provável próximo nome na sucessão de comando da corporação. Ao mesmo tempo em que vê no envolvimento afetivo de sua personalidade interna com Mark S. uma possibilidade de desmantelar quaisquer conspirações que possam estar sendo tecidas por dentro das entranhas da Lumon, a herdeira dos Egan passa por um processo de autoconhecimento onde o desprezo antes nada velado por sua innie dá lugar a sentimentos que podem indicar desadequação com a doutrina pregada por sua família, ou mesmo inveja do ingênuo, porém puro relacionamento que se desenha com o igualmente ingênuo colega. Mark, inclusive, também passa por severas provações ao longo dos episódios. A consciência de que sua esposa ainda vive, parelhada com sua nova conexão romântica, é fonte de turbulentos questionamentos pessoais e éticos frente à busca por respostas que o motivava, e que leva, por sua vez, à drásticos passos que podem levar a riscos muito maiores do que se pensa. Em seus respectivos papéis duplos, Britt Lower e Adam Scott reafirmam seu apelo como protagonistas fortes e carismáticos, não apesar de suas desafiadas moralidades, mas sim por causa delas, e as inevitáveis descobertas sobre o status de Gemma Scout (brilhantemente interpretada mais uma vez por Dichen Lachman) só fazem aprofundar e dinamizar ainda mais a química entre os dois.

A outra dupla de personagens principais também não se livra de seus próprios dilemas: o Dylan G. de Zach Cherry, um dos grandes arquitetos do plano que desencadeou toda a narrativa dramática que encerrou a primeira temporada, agora é confrontado com possibilidades que desafiam sua lealdade para com os companheiros, e acabam se entrepondo mesmo na amizade com Irving B. Por falar neste, a aproximação do estoico funcionário interpretado por John Turturro, cuja devoção à empresa onde trabalha se quebrou frente aos sentimentos recíprocos estabelecidos antes com o misterioso empregado veterano Burt (Christopher Walken) representa o mais drástico e bem trabalhado desenvolvimento de personagens visto aqui, repleto de sutileza e, a cada uma de suas cenas – mais reduzidas em relação ao visto no início – são agraciadas de uma esperançosa e comovente melancolia. O que não esconde por completo os segredos aparentemente guardados por Burt, que pode (ou não) saber muito mais sobre a Lumon do que deixa transparecer. Segredos são, inclusive, revelados – e em outros casos apenas aludidos – no que tange a Harmony Cobel vivida por Patricia Arquette. Antes uma antagonista cheia de dubiedades, sua figura agora é vista por um prisma muito mais incerto, através do qual os sentimentos de revolta e de injustiça longeva criam um apelo muito mais tridimensional para sua figura. E Seth Milchick é, mais uma vez, a “arma secreta” do bem trabalhado enredo (muito graças ao inegável carisma e boas interpretações de Tramell Tillman) que abre portas para intrigantes e irresistíveis desdobramentos em seu personagem.

Não é simples falar da segunda temporada de “Ruptura” sem envolver informações que poderiam ser tomadas como spoilers. Basta dizer que as novas adições ao elenco, que incluem Gwendoline Christie, Darri Ólafsson e Sarah Bock, são mais do que bem-vindas, e ajudam a expandir um universo muito maior do que a primeira parte desta história pode ter deixado transparecer – em especial esta última, cuja Eustice Huang suscita questionamentos que devem, quando revelados, desvendar ramificações ainda mais cruéis por trás da devocional cultura que rege as indústrias Lumon. O uso mais amplo de tomadas abertas, além de propiciarem um escape da esterilidade calculada dos escritórios vistos anteriormente, também são vitais para o andamento do roteiro – e lançam mão de ainda mais enigmas, todos excelentemente costurados por um time de roteiristas que inclui oito profissionais, além de Dan Erickson. Tudo sob a supervisão de Ben Stiller, que assina a direção da maioria dos capítulos.

Desde a intricada cena de abertura do primeiro capítulo – cujo complicado processo de realização foi comentado abertamente pelo elenco – até o impacto surdo e as arrepiantes implicações da conclusão do décimo capítulo (que vem recebendo comparações com produções de David Lynch e Quentin Tarantino, entre muitos outros), “Ruptura” é, indiscutivelmente, uma das maiores maravilhas do entretenimento televisivo em muito tempo – quiçá, da era contemporânea como um todo. Mesmo que fosse cancelada (algo refutado pela confirmação de uma terceira temporada logo após a conclusão desta pela Apple) tão logo terminados estes últimos 10 episódios, esta série já seria responsável por alguns dos momentos mais icônicos do mainstream audiovisual das últimas décadas. Entre respostas surpreendentes, complexos enigmas e (muitas) teorias levantadas, “Ruptura” é, sem meias palavras, simplesmente brilhante. Chuck D que me perdoe – mas aqui, sim, o hype é real, e completamente merecido.

– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia mais textos dele aqui.