'Rich Flu': e se surgisse uma pandemia que só matasse os super-ricos?
Lembramos de epidemias e pandemias como mazelas sanitárias que atingem principalmente os mais pobres e vulneráveis. Mas, e se surgisse um vírus mortal socioeconomicamente seletivo, matando algumas das pessoas mais ricas e influentes do planeta, começando com os bilionários, depois os multimilionários e assim por diante progressivamente. Depois, ameaçando atingir qualquer um com qualquer tipo de fortuna, e ninguém sabe onde isso pode acabar. Dirigido pelo espanhol Galder Gaztelu-Urrutia (“O Poço”), o filme “Rich Flu” (2024) é mais um exemplo da tendência da recente produção do cinema e audiovisual explorar o tema da luta de classes e desigualdade. Mas, claro, sem deixar a crítica resvalar para o esquerdismo. Para Rich Flu a pandemia é uma punição às obsessões materialistas que seduzem a sociedade. A visão moralista que confunde riqueza com luxo, e não com poder - a capacidade do capitalismo dispor dos meios de produção para uma minoria concentrar ainda mais riqueza. Por todos os aspectos que se estude, a pandemia global Covid-19 representou não só a maior concentração de riqueza da História moderna (para começar, com o socorro de liquidez com dinheiro público dos Estados ao sistema financeiro, sob a chantagem do “risco sistêmico”) como expôs à luz do dia o problema de desigualdade e vulnerabilidade social.Enquanto os mais ricos trabalhavam confortáveis em seus home offices durante o lockdown, os mais pobres arriscavam (ou perdiam) a vida, obrigados a trabalhar normalmente sob risco de ficar sem renda e meios de subsistência.Como já discutimos em postagem anterior (clique aqui), foi a partir daí que a produção cinematográfica e audiovisual descobriu o tema da luta de classes e desigualdade, produzindo verdadeiros thrillers sociológicos – Parasita, O Menu, Triângulo da Tristeza, a série Round 6, ou o último filme de Bong Jooh-ho Mickey 17.Arriscamos até a considerar que o fantasma de Karl Marx estaria rondando Hollywood. Mas, com a co-produção Espanha/Chile/EUA Rich Flu (2024), podemos considerar que o espectro marxista está rondando a produção fílmica global.Dirigido pelo diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia (que fez sua estreia em 2019 com o terror de ficção científica distópico da Netflix O Poço) e a partir de um roteiro de Pedro Rivero e Gaztelu-Urrutia, o filme parte de uma curiosa inversão das narrativas que envolvem pandemias e apocalipses virais: ao invés de vitimizar, como sempre, os mais pobres, o mundo enfrenta um misterioso vírus com uma intrigante seletividade: prefere o holocausto sanitário de bilionários e milionários.Rich Flu acompanha uma estranha pandemia que está matando algumas das pessoas mais ricas e influentes do planeta, começando com os bilionários, depois os multimilionários e assim por diante progressivamente. Depois, ameaça atingir qualquer um com qualquer tipo de fortuna, e ninguém sabe onde isso pode acabar. Com todo o planeta em pânico e o próprio modo de vida da humanidade indo para o colapso, as pessoas tentam inundar o mercado com ativos que o mundo não quer mais – para escapar da morte, os muito ricos começam a transferir seus ativos para a filantropia, “laranjas” etc. O thriller explora até onde alguém iria para salvar sua pele quando a riqueza que fez o mundo girar de repente se torna sua mercadoria mais perigosa. O problema é que os muito ricos nada podem fazer contra o vírus: investir vultosa quantias em pesquisas sobre a descoberta de vacinas, apenas confirmaria a riqueza do investidor. Tornando-se a próxima vítima.A questão discutível em Rich Flu é que o vírus não atingirá somente aquele 1% mais rico do planeta – fosse isso, seria até justiça poética. Está na mira do vírus também Executivos, Diretores ou gerentes corporativos com vultosos salários e bônus. Levando o pânico para a classe média alta e toda sorte de gananciosos e ambiciosos.O caos social e econômico que se instala nas grandes cidades europeias, confirmando a tese da de Marx na questão da herança como perpetuadora da burguesia e do Capitalismo – em Rich Flu, ninguém quer herdar aquilo que causará a sua morte. O que provoca uma desordem econômica de cima para baixo na sociedade.Apenas pela pequena lista de filmes acima, dá para notar que a vida dos muito ricos não está nada fácil no cinema e audiovisual dos últimos anos. Mas isso não significa que diretores e roteiristas de repente passaram a incorporar Karl Marx e defender o fim da luta de classes para as massas.Como dá para perceber na maneira como o diretor Gaztelu-Urrutia descreve seu próprio filme: “Rich Flu é uma imensa saga física, cheia de reviravoltas, obstáculos e surpresas. Mas, acima de tudo, é uma jornada emocional complexa e provocativa para as profundezas da alma humana e os pináculos de nossa gloriosa autoindulgência”.A chave interpretativa do filme está na maneira como como o diretor mistura riqueza no capitalismo com “a nossa gloriosa autoindulgência”. Em outras palavras, para o diretor a concentração da riqueza não é um problema da estr

Lembramos de epidemias e pandemias como mazelas sanitárias que atingem principalmente os mais pobres e vulneráveis. Mas, e se surgisse um vírus mortal socioeconomicamente seletivo, matando algumas das pessoas mais ricas e influentes do planeta, começando com os bilionários, depois os multimilionários e assim por diante progressivamente. Depois, ameaçando atingir qualquer um com qualquer tipo de fortuna, e ninguém sabe onde isso pode acabar. Dirigido pelo espanhol Galder Gaztelu-Urrutia (“O Poço”), o filme “Rich Flu” (2024) é mais um exemplo da tendência da recente produção do cinema e audiovisual explorar o tema da luta de classes e desigualdade. Mas, claro, sem deixar a crítica resvalar para o esquerdismo. Para Rich Flu a pandemia é uma punição às obsessões materialistas que seduzem a sociedade. A visão moralista que confunde riqueza com luxo, e não com poder - a capacidade do capitalismo dispor dos meios de produção para uma minoria concentrar ainda mais riqueza.
Por todos os aspectos que se estude, a pandemia global Covid-19 representou não só a maior concentração de riqueza da História moderna (para começar, com o socorro de liquidez com dinheiro público dos Estados ao sistema financeiro, sob a chantagem do “risco sistêmico”) como expôs à luz do dia o problema de desigualdade e vulnerabilidade social.
Enquanto os mais ricos trabalhavam confortáveis em seus home offices durante o lockdown, os mais pobres arriscavam (ou perdiam) a vida, obrigados a trabalhar normalmente sob risco de ficar sem renda e meios de subsistência.
Como já discutimos em postagem anterior (clique aqui), foi a partir daí que a produção cinematográfica e audiovisual descobriu o tema da luta de classes e desigualdade, produzindo verdadeiros thrillers sociológicos – Parasita, O Menu, Triângulo da Tristeza, a série Round 6, ou o último filme de Bong Jooh-ho Mickey 17.
Arriscamos até a considerar que o fantasma de Karl Marx estaria rondando Hollywood. Mas, com a co-produção Espanha/Chile/EUA Rich Flu (2024), podemos considerar que o espectro marxista está rondando a produção fílmica global.
Dirigido pelo diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia (que fez sua estreia em 2019 com o terror de ficção científica distópico da Netflix O Poço) e a partir de um roteiro de Pedro Rivero e Gaztelu-Urrutia, o filme parte de uma curiosa inversão das narrativas que envolvem pandemias e apocalipses virais: ao invés de vitimizar, como sempre, os mais pobres, o mundo enfrenta um misterioso vírus com uma intrigante seletividade: prefere o holocausto sanitário de bilionários e milionários.
Rich Flu acompanha uma estranha pandemia que está matando algumas das pessoas mais ricas e influentes do planeta, começando com os bilionários, depois os multimilionários e assim por diante progressivamente. Depois, ameaça atingir qualquer um com qualquer tipo de fortuna, e ninguém sabe onde isso pode acabar.
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Com todo o planeta em pânico e o próprio modo de vida da humanidade indo para o colapso, as pessoas tentam inundar o mercado com ativos que o mundo não quer mais – para escapar da morte, os muito ricos começam a transferir seus ativos para a filantropia, “laranjas” etc.
O thriller explora até onde alguém iria para salvar sua pele quando a riqueza que fez o mundo girar de repente se torna sua mercadoria mais perigosa. O problema é que os muito ricos nada podem fazer contra o vírus: investir vultosa quantias em pesquisas sobre a descoberta de vacinas, apenas confirmaria a riqueza do investidor. Tornando-se a próxima vítima.
A questão discutível em Rich Flu é que o vírus não atingirá somente aquele 1% mais rico do planeta – fosse isso, seria até justiça poética. Está na mira do vírus também Executivos, Diretores ou gerentes corporativos com vultosos salários e bônus. Levando o pânico para a classe média alta e toda sorte de gananciosos e ambiciosos.
O caos social e econômico que se instala nas grandes cidades europeias, confirmando a tese da de Marx na questão da herança como perpetuadora da burguesia e do Capitalismo – em Rich Flu, ninguém quer herdar aquilo que causará a sua morte. O que provoca uma desordem econômica de cima para baixo na sociedade.
Apenas pela pequena lista de filmes acima, dá para notar que a vida dos muito ricos não está nada fácil no cinema e audiovisual dos últimos anos. Mas isso não significa que diretores e roteiristas de repente passaram a incorporar Karl Marx e defender o fim da luta de classes para as massas.
Como dá para perceber na maneira como o diretor Gaztelu-Urrutia descreve seu próprio filme: “Rich Flu é uma imensa saga física, cheia de reviravoltas, obstáculos e surpresas. Mas, acima de tudo, é uma jornada emocional complexa e provocativa para as profundezas da alma humana e os pináculos de nossa gloriosa autoindulgência”.
A chave interpretativa do filme está na maneira como como o diretor mistura riqueza no capitalismo com “a nossa gloriosa autoindulgência”. Em outras palavras, para o diretor a concentração da riqueza não é um problema da estrutura econômica (lutas de classes, exploração etc.), mas uma falha moral e de caráter (a ambição, o egoísmo etc.) – por isso os roteiristas têm que estender a pandemia para a classe média alta.
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A questão é que no sentido estrito da economia política, rico é quele que se constitui como classe dominante, ou seja, é o dono dos meios de produção (capital industrial ou financeiro), e não os altamente remunerados Executivos e Diretores – ricos vivem do lucro, e não de altos salários.
Essa confusão conceitual vai determinar o próprio final melancólico e despolitizado do filme, que exorciza a realidade da luta de classes. Desperdiçando o ótimo ponto de partida do argumento de Rich Flu.
O Filme
Rich Flu acompanha Laura Palmer (Mary Elizabeth Winstead), uma executiva com uma alta remuneração e bônus. Ela tem um relacionamento tenso com seu marido Toni (Rafe Spall) e sua filha Anna (Dixie Egerickx).
O filme começa com um tom satírico mostrando as relações pessoais cínicas entre milionários, semelhante à série da plataforma MAX, Sucession. O filme começa abordando a irreverência de Laura sobre coisas que não a afetam diretamente. Ela participa de uma iniciativa cultural da sua empresa: financiar filmes. Então, ela ouve roteiros temáticos entrevistando escritores e executivos com o olhar entre a ironia e o desprezo - ela tem consciência do seu poder e tira proveito disso. Embora conheça muito pouco sobre cinema, sabe que a última palavra é a dela.
Mas o que Laura não sabe é que um estranho vírus está começando a dizimar bilionários, que começam a se mobilizar para se livrar de seus ativos. E o seu novo departamento para financiar filmes faz parte disso.
E assim que ela despejou o dinheiro a esses pobres indivíduos, tornando-os seus bodes expiatórios, seu bilionário patrão passa a enviar seus CEOs para diferentes partes do mundo para gastar seu dinheiro.
Então, envia Laura para um leilão no Palácio de Buckingham e pede que ela faça um lance o mais alto possível. No início, Laura realmente não entendia a intenção, mas uma vez que testemunha a morte do rei Charles numa espécie de enfarto ou ataque e o caos em andamento em Londres, ela rapidamente começa a entender a sinistra realidade por trás da caridade dos homens mais ricos do planeta.
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Assim que a pandemia se espalhou pelo mundo e todas as cidades metropolitanas dos países do primeiro mundo começaram a mergulhar no caos, o amor maternal de Laura por sua filha, Anna, aparece de repente. No passado, Laura foi exatamente a mesma mulher que esqueceu o aniversário de sua filha e depois o ignorou apenas para participar de uma reunião de negócios.
Arrependida, agora imagina como ela poderia ter salvado sua própria vida por não ficar rica se tivesse decidido escolher sua filha em vez de suas próprias obsessões materialistas. Mas ela não o fez.
Simbolicamente, a primeira manifestação da infecção mortal é os dentes ficarem extremamente brancos e reluzentes. Uma irônica associação com a lente de contato dental, uma película fina que é aplicada sobre os dentes para corrigir imperfeições e melhorar a aparência do sorriso. Muito usada por gente abastada como novos ricos, jogadores de futebol e celebridades.
Laura vai a Barcelona, resgata sua filha e inicia uma jornada como refugiada, rumando para Tanzânia com outros milionários que tentam abandonar tudo.
Só que, ironicamente, enfrentarão a mesma perseguição e preconceito dos antigos refugiados africanos que rumavam para o sonho de uma vida melhor na Europa.
Enfrentam a “Plutofobia”: a classe baixa e média desenvolve ódio contra os ricos, exigindo que deixem a comunidade ou se coloquem em quarentena para não espalhar o vírus.
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A ideologia moralizante da riqueza – Alerta de Spoilers à frente
Rich Flu revela mais uma estratégia semiótica para exorcizar o fantasma do marxismo na produção fílmica recente sobre a interpretação do porquê da distribuição exorbitantemente desigual da riqueza: o viés do excesso de riqueza concentrada no mundo como decorrente das obsessões materialistas como a ambição por dinheiro e poder.
Um viés moralista e despolitizado, porque reduz a luta de classes e a perversa estrutura econômica de concentração de riqueza numa simples falha de caráter. Ricos poderiam se arrepender, e num sacrifício altruísta distribuir seu dinheiro pela sociedade. E todos viveriam felizes para sempre...
Não é por menos que uma citação do escritor Henry David Thoreau - “Um homem é rico em proporção ao número de coisas que ele poderia se dar ao luxo de abandonar”. De acordo com isso, o filme é uma tentativa de abordar a redistribuição de riqueza como uma maneira reformista de melhorar o capitalismo.
O grande problema ideológico em Rich Flu é exatamente essa definição moralista de ser rico. Confunde riqueza com luxo. Riqueza tem uma relação direta com o poder: a capacidade de dispor dos meios de produção para amealhar e concentrar mais riqueza.
Nesse sentido, os ricos de verdade corresponderiam àqueles 1% do planeta. Por isso, a redistribuição, até aqui, chama-se filantropia (modernizada pelas ONGs) que, como sabemos, nada altera. Pelo contrário, costuma politicamente reproduzir a estrutura concentradora de riqueza.
Obsessão materialista refletida na protagonista Laura na cena final: depois de fugir com sua filha e se isolar numa ilha na costa africana em uma comunidade com orientação socialista e igualitária, a obsessão pela riqueza individualista se revela mais forte: na ânsia de recuperar o seu relógio de pulso, Laura reinventa o fascínio pelo dinheiro para destruir por dentro a comunidade socialista - Laura pega uma lixa de unha, limpa algumas conchas até torna-las brilhantes e atraentes como pedras preciosas. Para depois oferecer à mulher que ficou com seu relógio na redistribuição.
Enquanto Laura estampa no rosto um sorriso neurótico.
Realmente, o filósofo Mark Fisher tem razão: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do próprio capitalismo.
Ficha Técnica |
Título: Rich Flu |
Direção: Galder Gaztelu-Urrutia |
Roteiro: Galder Gaztelu-Urrutia, Pedro Rivero, Sam Steiner |
Elenco: Mary Elizabeth Winstead, Rafe Spall, Lorraine Bracco |
Produção: Nostromo Pictures, Basque Films |
Distribuição: CAA Media Finance |
Ano: 2024 |
País: Espanha, Chile, EUA |