Um centro sem carros, a puxar pela cultura (e pelos privados). Eis o novo Barreiro Velho

Nos próximos três anos, o núcleo antigo do Barreiro vai estar em obras, que custarão à Câmara 27 milhões de euros. Fomos conhecer o projecto.

Mar 31, 2025 - 12:07
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Um centro sem carros, a puxar pela cultura (e pelos privados). Eis o novo Barreiro Velho
Um centro sem carros, a puxar pela cultura (e pelos privados). Eis o novo Barreiro Velho

As ruas são estreitas, os passeios ainda mais e dos edifícios sente-se o ar vazio que tomou há mais de 20 anos o Barreiro Velho, outrora templo da vida nocturna, associativa e cultural, cheia de gente dentro. Hoje, das ocupações ilegais à insegurança e ao edificado em ruínas (mais de 90% propriedade privada), são vários os problemas deste núcleo histórico assente na faixa ribeirinha, mas também muitas as memórias. "As pessoas daqui, sobretudo a malta da minha geração, tem a lembrança do Barreiro Velho como uma zona muito activa, cheio de bares e associações. O perfil mudou. Todos nós íamos para o café e dizíamos: 'Eh pá, isto tem um potencial do caneco, está aqui mesmo em frente ao rio...' Mas nada foi feito. Barreiro Velho ficou parado no tempo. Então agora é preciso fazer o trabalho quase desde o início." O retrato é de Rui Braga, vice-presidente da autarquia, a propósito da visita da Time Out com o intuito de perceber onde e como serão aplicados os 27 milhões de euros pedidos à banca pela Câmara Municipal do Barreiro (CMB) para iniciar a reformulação de toda aquela zona

Sociedade de Instrução e Recreio Barreirense - Os Penicheiros, um dos espaços que resiste
DRSociedade de Instrução e Recreio Barreirense - Os Penicheiros, um dos espaços que resiste

Não é coisa pouca, mas o maior investimento autárquico da história recente do Barreiro  “provavelmente das decisões a solo mais importantes que o executivo tomou pós-1976”, na óptica do também vereador do Urbanismo. A maior parte do bolo, no entanto, não terá uma face visível. Passa por escavar o subsolo para restruturar as redes hídrica, de saneamento, pluviais, de telecomunicações e de iluminação pública. Já à superfície, vão alterar-se os pavimentos, haverá novo mobiliário urbano e iluminação pública e serão plantadas 38 árvores e 134 arbustos

Também a história do Barreiro ficará gravada no chão e haverá uma mudança fundamental no uso: o acesso, de carro, ao centro do Barreiro Velho será condicionado, numa tentativa de, a par do investimento em equipamentos culturais (a Câmara comprou o Teatro-Cine Barreirense e o edifício do antigo tribunal, para ali instalar o novo teatro municipal), trazer gente para a rua. "Vamos isolar o centro do Barreiro Velho ao trânsito. Não vamos ter passeios definidos, como os conhecemos agora. Vai ser tudo nivelado. A nossa preocupação é pedonalizar e criar praças, porque estamos desajustados em relação ao que tem de ser o novo espaço público. Este é o início de uma nova fase para o Barreiro, em que não só as ruas bonitas vão afastar as zonas escuras, como vamos levar pessoas a viver o espaço. É a melhor segurança que existe", garante o autarca. 

Maquete da Rua Almirante Reis
DR/CMBMaquete da Rua Almirante Reis

A intervenção já começou, com a requalificação da Rua Miguel Bombarda, morada da CMB, que tem o prazo de 300 dias. Mas a obra, na totalidade, vai demorar três anos a concretizar-se. "Vai ser duro", reconhece Rui Braga, prevendo um efeito claro da melhoria do espaço público: o aumento da atractividade da zona para os investidores privados. "Ninguém investe numa cidade feia. O espaço público tem esse efeito de contágio", garante o responsável, dando exemplos do passado, como as renovações da chamada pólis (zona ribeirinha) ou da estação Barreiro A. "Requalificámos, demos o exemplo e o investimento privado veio logo a seguir. Estamos convencidos de que no Barreiro Velho vai acontecer o mesmo. Vamos estimular os proprietários a reabilitar o edificado, porque, só com o nosso investimento, o problema do Barreiro Velho não fica resolvido", considera, admitindo que a mudança vai criar novas pressões sociais para a comunidade que o habita, marcada pelo envelhecimento e por carências socio-económicas. "Mas diria que isso é um bom problema. É preciso resolver e ajudar os proprietários a resolver as ocupações ilegais", defende o responsável.

Nos últimos anos, o Barreiro, que ficou anos à margem da explosão provocada pelo turismo em Lisboa, tem visto crescer edifícios no segmento do luxo, condomínios de alta gama e alojamentos turísticos. Os mais críticos apontam o dedo a um processo acelerado de gentrificação na cidade que tem a maior faixa ribeirinha da Área Metropolitana de Lisboa, mas também uma das maiores pujanças da região em termos de criação cultural e associativismo. 

A "Lisboa B"

A empreitada em curso no Barreiro Velho vem na sequência de outras movimentações recentes da autarquia focadas no núcleo histórico da cidade, como a inauguração de uma nova esquadra da PSP na zona, em 2023, ou a compra do Teatro Cine do Barreiro, há um ano, depois de ter passado para as mãos da Igreja em 1992. "Queremos levar mais segurança, novas dinâmicas e uma vivência que o espaço agora não tem", explica o vice-presidente da CMB. Mas também mudar a reputação do Barreiro, "o patinho feio da Margem Sul", objectivo que Rui Braga acredita estar a ser cumprido. "Se [há sete anos, ano em que o executivo do PS substituiu a liderança histórica da CDU no município] disséssemos a palavra Barreiro, as três palavras que ouviríamos a seguir não eram boas. E isso mudou. O Barreiro passou a ser equacionado."

Teatro Cine do Barreiro
DR/CMBTeatro Cine do Barreiro

Por outro lado, a saturação de Lisboa e os planos da Terceira Travessia do Tejo e da construção do novo aeroporto colocam a cidade no radar dos investidores. Hoje, "quando se olha para a Margem Sul não se vê um deserto", brinca o autarca, recuperando o adjectivo utilizado por um antigo ministro das Obras Públicas para qualificar o território, em 2007. "Há muito para aproveitar e a oportunidade de fazer uma Lisboa B. Lisboa tem de ser uma capital europeia com as duas margens, até porque é aqui que temos capacidade de crescer em emprego, em habitação e resposta ao turismo", continua o vice-presidente.

Casa da Cultura, antigo Cinema da CUF
DRCasa da Cultura, antigo Cinema da CUF

Nessa Lisboa B, há ainda espaço para um novo teatro municipal, que será instalado no edifício do antigo tribunal da Rua Alfredo da Silva. "Ainda não temos projecto, mas julgo que vai ser uma obra para cima de um milhão de euros" (está fora dos 27 milhões de investimento no espaço público), estima o autarca. Nas instalações, geridas pela CMB, ficará a ArteViva – Companhia de Teatro do Barreiro, que cria há anos num centro comercial da cidade. Por fim, a Câmara espera conseguir resolver um caso antigo, "que anda sempre aos trambolhões": a passagem para a sua gestão da antiga Casa de Cultura da Quimigal, na Baía do Tejo. "Tem 1000 lugares e está fechada há uma década [acolhe, pontualmente, concertos de festivais como o Out.Fest, por exemplo]. O edifício é do Governo, temos tentado por várias vezes negociar e a resposta é sempre positiva, mas nunca se efectivou."

A "Barreiro Factory"

Se o novo teatro municipal ainda está em projecto e o Teatro Cine está prestes a ver o lançamento do concurso de empreitada, possivelmente para este ano espera-se um grande acontecimento para o Barreiro: a abertura de uma espécie de Lx Factory, pelo grupo Mainside, na antiga Estação Sul e Sueste, junto ao rio

Estação Sul e Sueste ou Barreiro-Mar
DREstação Sul e Sueste ou Barreiro-Mar

A empresa anunciou o investimento no Verão do ano passado e começa por descrever o projecto, na sua página, como "um enorme parque verde aberto à cidade", capaz de criar "novas dinâmicas e percursos". Mas vai também haver "espaço para passear, comer algo, ouvir um concerto, ver uma exposição ou mesmo ter um atelier/casa". A Câmara já analisou e comentou o projecto, que está agora sujeito à aprovação da Infraestruturas de Portugal. Para Rui Braga, "vai ser um game changer no Barreiro" e "a cena do momento, onde a malta vai querer ir à noite e trabalhar, tal como aconteceu na Lx Factory, em Lisboa". "Eles explodindo, explodimos nós também."