Minissérie 'Adolescência': no século XXI, o quarto é o lugar mais perigoso para o jovem ficar

Identidade, autoaceitação, inclusão, rejeição, amor etc. são questões atemporais da adolescência. No passado eram mal resolvidas em ritos de passagem para o mundo adulto. Hoje, ganham repercussão em tempo real nas redes sociais, fóruns e grupos de discussão. Que viraram caixa de ressonância para a frustração, cismogênese e supremacismo de raça e gênero como resposta. Enquanto professores e pais perplexos se perguntam: o que fazer com nossos alunos e filhos? Esse é o tema da minissérie Netflix “Adolescência” (Adolescence, 2015) sobre um garoto de 13 anos acusado de matar uma colega de classe. Nunca o próprio quarto passou a ser o lugar mais perigoso para um adolescente estar. Destilando ódio, baixa autoestima, à procura de um culpado nas telas. Enquanto as Big Techs turbinam e monetizam o mal-estar psíquico com a economia da atenção. No século XXI, o próprio quarto passou a ser o lugar mais perigoso que um adolescente pode estar. Aquilo que outrora representava perigo em cada esquina, beco, viela ou bar mal frequentado e pouco iluminado, parece ter se transferido para os recônditos da arquitetura da informação da Internet – grupos de discussão, fóruns exclusivos, comunidades de interesse acessíveis 24 horas através da telinha de um computador doméstico.Também parece que a tecnologia da informação realizou o sonho de pais aborrecidos com as baladas dos filhos: saber que ele está sempre em seu quarto, sozinho, em silêncio e a um passo dos pais parece ser um alento...Até assistir à minissérie Netflix Adolescência (Adolescence, 2025) para essas ilusões caírem por terra: é um conto de advertência sobre tirar os adolescentes das telas e se envolver com a vida real novamente. Um lembrete de que o contato humano e o tempo com a família podem ajudar a resolver os dramas arquetípicos da idade: identidade, autoaceitação, a existência de outro e da alteridade e a frustração de não ser aceito ou amado por alguém. Um apelo para apoio, conversa e escuta para não deixarem jovens cair e desaparecer na toca do coelho digital. Claro que esse tipo de crítica pode muito bem cair no argumento reacionário “bom mesmo era no meu tempo!”.Como colocamos, as questões adolescentes são arquetípicas, sempre à espera do ritual de passagem adulto para serem mal resolvidas. O problema, como revela a minissérie, é que a Internet virou uma espécie de caixa de ressonância das dores da adolescência. E o que é pior: com as Big Techs monetizando isso – o que significa que jamais matarão a galinha dos ovos de ouro. Amplificarão a dor, a frustração e a cismogênese (os conflitos entre gêneros, identidades, raças etc.) para manter a lucratividade do negócio.Adolescência é uma minissérie de quatro partes sobre um garoto de 13 anos acusado de matar uma colega de classe. Tudo começa com a polícia invadindo a casa da família Miller para prender o filho adolescente Jamie (Owen Cooper), enquanto seus pais Eddie Miller (Stephen Graham) e Manda Miller (Christine Tremarco) e irmã Lisa Miller (Amelie Pease) olham entre horrorizados e perplexos, chorando e implorando.Jamie nega o crime, enquanto o pai Eddie faz o que todo pai faria: acredita no filho. Até ver o vídeo de uma câmera de segurança na delegacia, provando o crime e a autoria. E o paraíso doméstico dos Miller virar o próprio inferno na Terra.Nem a escola (professores que tentam sobreviver a uma panela de pressão de bullying e intolerância) nem a família (classe média baixa britânica marcada pela incomunicabilidade e negação) conseguem entender a situação de Jamie imerso em um mundo online pernicioso de "Red Pills", "grupos de verdade" e a regra 80-20 (que postula que 80% das mulheres são atraídas para 20% dos homens). Uma esfera sombria povoada por alfas, “incels”, MRAs (ativistas dos direitos dos homens) e PUAs (Pickup Artists), cujos egos frágeis se transformam em fúria justificada. De emojis zombeteiros no Instagram à dark web e deepfakes, com significados esotéricos para quem tem mais de 40 anos. Turbinados pelos algoritmos das Big Techs, seja pela monetização, seja para impulsionar o extremismo político de direita.Mas essa história dos jovens e adolescentes serem a matéria-prima do impulso mercantil não é de agora. Sabemos que desde o fim da Segunda Guerra Mundial e o surgimento da sociedade de consumo, de forma inédita na História, o jovem passou a ser o modelo estético e moral para a sociedade: a juventude, o sex-appeal, o novo como moralmente bom, a revolução sexual, a pornografia, a erotização geral da publicidade e do design de produtos.Elvis Presley, Brigitte Bardot, Pin-ups, lolitas, Marilyn Monroe, a juventude rebelde da moda ready-to-wear de James Dean para se contrapor a alta costura, o rock and roll para embalar toda essa cultura nascente, tudo convergia para uma cultura em que o jovem era o modelo promocional para uma nascente sociedade de consumo.Criando um no tipo de frustração: não mais a da repressão sexual vitoriana, mas da angústia da escolha pela multiplicidade de opções. Levand

Mar 24, 2025 - 14:57
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Minissérie 'Adolescência': no século XXI, o quarto é o lugar mais perigoso para o jovem ficar


Identidade, autoaceitação, inclusão, rejeição, amor etc. são questões atemporais da adolescência. No passado eram mal resolvidas em ritos de passagem para o mundo adulto. Hoje, ganham repercussão em tempo real nas redes sociais, fóruns e grupos de discussão. Que viraram caixa de ressonância para a frustração, cismogênese e supremacismo de raça e gênero como resposta. Enquanto professores e pais perplexos se perguntam: o que fazer com nossos alunos e filhos? Esse é o tema da minissérie Netflix “Adolescência” (Adolescence, 2015) sobre um garoto de 13 anos acusado de matar uma colega de classe. Nunca o próprio quarto passou a ser o lugar mais perigoso para um adolescente estar. Destilando ódio, baixa autoestima, à procura de um culpado nas telas. Enquanto as Big Techs turbinam e monetizam o mal-estar psíquico com a economia da atenção.

 

No século XXI, o próprio quarto passou a ser o lugar mais perigoso que um adolescente pode estar. Aquilo que outrora representava perigo em cada esquina, beco, viela ou bar mal frequentado e pouco iluminado, parece ter se transferido para os recônditos da arquitetura da informação da Internet – grupos de discussão, fóruns exclusivos, comunidades de interesse acessíveis 24 horas através da telinha de um computador doméstico.

Também parece que a tecnologia da informação realizou o sonho de pais aborrecidos com as baladas dos filhos: saber que ele está sempre em seu quarto, sozinho, em silêncio e a um passo dos pais parece ser um alento...

Até assistir à minissérie Netflix Adolescência (Adolescence, 2025) para essas ilusões caírem por terra: é um conto de advertência sobre tirar os adolescentes das telas e se envolver com a vida real novamente. Um lembrete de que o contato humano e o tempo com a família podem ajudar a resolver os dramas arquetípicos da idade: identidade, autoaceitação, a existência de outro e da alteridade e a frustração de não ser aceito ou amado por alguém. Um apelo para apoio, conversa e escuta para não deixarem jovens cair e desaparecer na toca do coelho digital. 

Claro que esse tipo de crítica pode muito bem cair no argumento reacionário “bom mesmo era no meu tempo!”.

Como colocamos, as questões adolescentes são arquetípicas, sempre à espera do ritual de passagem adulto para serem mal resolvidas. O problema, como revela a minissérie, é que a Internet virou uma espécie de caixa de ressonância das dores da adolescência. E o que é pior: com as Big Techs monetizando isso – o que significa que jamais matarão a galinha dos ovos de ouro. Amplificarão a dor, a frustração e a cismogênese (os conflitos entre gêneros, identidades, raças etc.) para manter a lucratividade do negócio.




Adolescência é uma minissérie de quatro partes sobre um garoto de 13 anos acusado de matar uma colega de classe. 

Tudo começa com a polícia invadindo a casa da família Miller para prender o filho adolescente Jamie (Owen Cooper), enquanto seus pais Eddie Miller (Stephen Graham) e Manda Miller (Christine Tremarco) e irmã Lisa Miller (Amelie Pease) olham entre horrorizados e perplexos, chorando e implorando.

Jamie nega o crime, enquanto o pai Eddie faz o que todo pai faria: acredita no filho. Até ver o vídeo de uma câmera de segurança na delegacia, provando o crime e a autoria. E o paraíso doméstico dos Miller virar o próprio inferno na Terra.

Nem a escola (professores que tentam sobreviver a uma panela de pressão de bullying e intolerância) nem a família (classe média baixa britânica marcada pela incomunicabilidade e negação) conseguem entender a situação de Jamie imerso em um mundo online pernicioso de "Red Pills", "grupos de verdade" e a regra 80-20 (que postula que 80% das mulheres são atraídas para 20% dos homens). Uma esfera sombria povoada por alfas, “incels”, MRAs (ativistas dos direitos dos homens) e PUAs (Pickup Artists), cujos egos frágeis se transformam em fúria justificada. 

De emojis zombeteiros no Instagram à dark web e deepfakes, com significados esotéricos para quem tem mais de 40 anos. Turbinados pelos algoritmos das Big Techs, seja pela monetização, seja para impulsionar o extremismo político de direita.



Mas essa história dos jovens e adolescentes serem a matéria-prima do impulso mercantil não é de agora. Sabemos que desde o fim da Segunda Guerra Mundial e o surgimento da sociedade de consumo, de forma inédita na História, o jovem passou a ser o modelo estético e moral para a sociedade: a juventude, o sex-appeal, o novo como moralmente bom, a revolução sexual, a pornografia, a erotização geral da publicidade e do design de produtos.

Elvis Presley, Brigitte Bardot, Pin-ups, lolitas, Marilyn Monroe, a juventude rebelde da moda ready-to-wear de James Dean para se contrapor a alta costura, o rock and roll para embalar toda essa cultura nascente, tudo convergia para uma cultura em que o jovem era o modelo promocional para uma nascente sociedade de consumo.

Criando um no tipo de frustração: não mais a da repressão sexual vitoriana, mas da angústia da escolha pela multiplicidade de opções. Levando à frustração generalizada e antagonismos entre gêneros.

Adolescência mostra o paroxismo desse movimento histórico-cultural na caixa de ressonância da Internet.

A Minissérie

Cada episódio é filmado no mesmo estilo: em um único plano-sequência. Estilo narrativo raro no cinema, somente encontrado em filmes de grandes mestres como Hitchcock, Orson Welles ou Martin Scorsese, com a melhorias da tecnologia das câmeras (e principalmente a utilização de drones) tornou-se um processo mais comum

Mas em Adolescência, a combinação e câmeras steadicam com drones leva a um show técnico – um enquadramento em guindaste mergulha em um plano close-up no interior de um     carro, para depois se elevar numa panorâmica de um estacionamento, sem que consigamos perceber cortes ou junções. Se é que existem.

Mas nada busca o fascínio pelo diletantismo técnico ou estratégia narrativa imersiva. Tudo serve para comunicar um clima de urgência e perplexidade diante de eventos que avançam em tempo real como um tsunami.



 Adolescência segue a família Miller, cujas vidas são destruídas quando o estudante Jamie, de 13 anos, é preso em uma invasão policial em sua residência de madrugada por matar uma colega de classe chamada Katie.

Ficamos com Jamie quando ele chega à delegacia, enquanto ele é identificado e interrogado, enquanto a polícia tira fotos de seu corpo enquanto seu pai fica parado em horror, indefeso.

No segundo episódio, acompanhamos o investigador DI Luke buscando informações e evidências na escola. Não demora muito para percebermos o quanto a instituição é disfuncional e antiquada para entender as obscuras cifras e simbolismos do mundo digital.

O melhor episódio da minissérie é o terceiro no qual encontramos Jamie sete meses após a prisão. Ele está em um centro de detenção juvenil, e uma psicóloga (Erin Doherty) está completando sua avaliação independente para fornecer ao juiz antes de fechar a sentença. O episódio provoca uma série de respostas emocionais ao ritmo da respiração audível de Jamie.  Superestimulação, confusão, um desejo cada vez mais poderoso de dizer a todos para se sentarem e ficarem quietos por cinco segundos.  E também tristeza, descrença, um rasgo em mundo ao qual no qual estamos rendidos. 

O que é favorecido pela escolha do ator para fazer Jamie. Normalmente, adolescentes são representados por atores em torno dos 20 anos. Mas aqui, a estreia do ator Owen Cooper - de apenas 15 anos - é fenomenal: ele passa de simpático a assustador, de um garotinho perdido para um jovem furioso e manipulador, muitas vezes dentro da mesma respiração, revelando um grande talento.

E no quarto episódio, acompanhamos um plano-sequência na família Miller no dia em que o patriarca está comemorando 50 anos. Todos tentam manter o roteiro do dia como se nada estivesse acontecendo, até Eddie Miller encontrar a sua van parada em frente de casa, pichada com a palavra “pervertido”. Para toda aparência de normalidade desmoronar.

Lembram de Jamie como um jovem externamente normal, mas internamente, auto condescendente e suscetível, podendo ser radicalizado sem que ninguém perceba. Seus pais se lembram de Jamie voltando da escola para casa, subindo direto pelas escadarias para o quarto, batendo a porta e passando horas em seu computador. Eles pensaram que ele estava seguro. Eles pensaram que estavam fazendo a coisa certa. 



Letramento digital

É um cenário comum que vai tocar o sinal de alerta em muitos pais.

O fato é que ensinamos aos nossos filhos como atravessar uma rua. Como não falar com estranhos. O perigo das drogas e como é importante estudar num mundo regido pelo mérito. Mas raramente os ensinamos a navegar na internet ou noções de letramento digital. Muitas vezes, há uma lacuna gritante entre a imagem alegremente ignorante dos pais e a vida de seus filhos e a verdade do que eles fazem online. Achamos que eles estão jogando algum game, mas na verdade estão no Reddit. Achamos que eles estão fazendo lição de casa ou enviando mensagens de texto inocentes para amigos. Eles estão assistindo pornografia.

Red Pills e Incels e outros movimentos supremacistas de masculinidade ressentida, não inventaram as incertezas da adolescência. Turbinado por Big Techs, apenas exponenciam as incertezas psíquicas da idade. O que era antigamente resolvido individualmente ou em grupos, agora ganham publicidade em fóruns e grupos de discussão, ganhando inesperada dimensão pública.

O resultado é a cismogênese monetizável tanto financeiramente e/ou politicamente.


 

 

  Ficha Técnica

Título: Adolescência

Criação:  Stephen Graham e Jack Thorne

Roteiro: Stephern Graham e Jack Thorne

Elenco:  Owen Cooper, Stephen Graham, Ashley Walters, Christine Tremarco

Produção: It’s All Made Up Productions

Distribuição: Netflix

Ano: 2025

País: Reino Unido

 

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