Queer, desviante e anárquico : a história do grupo de teatro Vivencial

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Mar 25, 2025 - 20:49
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Queer, desviante e anárquico : a história do grupo de teatro Vivencial

Olinda, década de 1970. No Sítio Histórico de uma das cidades mais antigas do Brasil, artistas de diferentes linguagens ocupavam casarões antigos, um tanto decadentes e muito espaçosos. Faziam daquele cenário idílico um pequeno oásis de cultura e contestação em meio à opressão da ditadura militar que, desde 1964, havia usurpado a democracia e a liberdade. Esse ambiente fértil gestou movimentos seminais para as artes em Pernambuco, entre eles o Vivencial, grupo de teatro que nasceu entre os muros da Igreja Católica, mas logo ocupou a cidade com seus trabalhos transgressores e inclusivos. Formado em sua maior parte por pobres, pessoas LGBTQIA+ e pretas, o coletivo abraçou a precariedade de recursos enquanto estética e abriu espaço para outras formas de ver o mundo, a partir de corpos dissidentes.

Pensar o Vivencial é, também, refletir sobre o Brasil de ontem e de hoje. A experiência do grupo é reflexo do contexto político e social do seu tempo, mas não se circunscreve apenas a ele, inclusive porque muitos dos elementos que pautavam os costumes e o pensamento da época permanecem fortes como parte das dinâmicas comportamentais do país. Concebido a partir das contradições, da pluralidade e do exercício criativo a partir da falta (de dinheiro, de oportunidade, de aceitação), o coletivo olindense era feito por excluídos e marginalizados. Era popular em sua essência, misturava referências de várias origens para criar não só peças de teatro, mas experiências sensíveis.

O furacão cultural provocado pelo grupo teve início sob a égide da Igreja. Os jovens integrantes da Associação de Rapazes e Moças do Amparo (Arma) tatearam as possibilidades do teatro e, ainda nesse princípio, já buscavam caminhos próprios. Com direção de Guilherme Coelho, então monge católico, o espetáculo Vivencial I (1974), que marcou a estreia e de onde sairia o nome do grupo, já reunia vários elementos que caracterizariam o coletivo. Feito a partir de colagens de poemas, notícias de jornais e textos de cunho político de Brecht e também Jean Genet (dramaturgo já considerado marginal por sua abordagem da homossexualidade), era permeado pelo humor e bebia em estéticas diversas. Tudo misturado, sem hierarquia.

Era uma apresentação essencialmente queer, desviante, anárquica, criada a partir da coletividade. Todos estavam em pé de igualdade, independente de sua condição financeira, formação ou orientação social. O trabalho era atravessado pelas experiências e visões de mundo daqueles corpos radicais, que queriam experimentar outras formas de estar no mundo e os integrantes participavam de várias etapas da produção, do desenvolvimento do cenário, iluminação, cenografia, maquiagem à encenação. Vivencial I, como era de se esperar, causou furor e não demorou até os padres proibirem sua apresentação no auditório do Colégio de São Bento. A decisão marcou o afastamento da Igreja e a consolidação do coletivo, que passou a se apresentar em outros espaços, reunindo um público cada vez maior.

“É preciso lembrar que a Igreja dos anos 1970 era formada por diferentes correntes, inclusive as que abrigavam a subversão, se posicionavam contra a ditadura e pensavam em reformas políticas e sociais. Mas, a experiência do Vivencial era radical e, portanto, rejeitada por alguns. Era um grupo de jovens com referências diversas, que iam se misturando. Na minha leitura, as principais influências do Vivencial são o Tropicalismo, a ideia de performance, que já pulsava nos Estados Unidos, as ideias de [Jerzy] Grotowski, o Teatro Oficina, a experimentação do corpo, o apreço do fragmento, a criação coletiva, todo o bê-a-bá do pós-moderno estava sendo aplicado ali. O Vivencial era um espaço de gente pobre, preta, de travestis, do ‘povo da lama’”, explica Rodrigo Dourado, dramaturgo, diretor e professor de Teatro da Universidade Federal de Pernambuco.

O pesquisador, que é autor da dissertação “Vivencial Diversiones: Por Uma Cena Transgressora”, vê no grupo a tradição brasileira do Teatro de Revista, com seus números musicais, de dança, esquetes políticas e cômicas, especialmente a influência do ator e empresário José do Rego Barreto Júnior. Assim como, as influências da sua época, como o movimento musical, cinematográfico, das artes visuais e teatral de Olinda, a disco music e referências de divas do cinema mundial. 

“O Vivencial tinha uma dramaturgia cheia de ambiguidades sexuais. Era do povão e mesmo quando trabalhava com autores ditos sérios, como Nelson Rodrigues, Hermilo Borba Filho e Jean Genet, faziam a partir dos seus próprios termos. Por isso que, quando vão para o Sudeste, causam um espanto, pois contrastavam com o que se entendia como teatro pernambucano, que eram os temas sociais de João Cabral de Melo Neto, o Movimento Armorial, Ariano Suassuna. Eles faziam, inclusive por mais tempo, algo que também foi visto no Dzi Croquettes, que apesar de ser um grupo que durou menos tempo, teve muito mais repercussão, justamente por estar ali no eixo Rio-São Paulo”, aponta.

Entre as obras do grupo estão Bonecas Falando Para o Mundo (1979), Nos Abismos da Pernambucália (1975), Repúblicas Independentes, Darling (1978), A Loja da Democracia (1979), Notícias Tropicais (1980), All Stars Tapuias (1980) e Rolla Skate (1981). 

Imaginário e imaginados

Rodrigo pontua ainda que o impacto do grupo na cena pernambucana foi além de questões estéticas, mas permeou também ideias de comportamento. Para ele, a partir dos anos 2000, o Vivencial passa a ganhar novamente espaço no imaginário cultural pernambucano e nacional, ainda que por vezes a partir de uma perspectiva idealizada. Pesquisas acadêmicas e publicações como “Devassos no Paraíso”, de João Silvério Trevisan, considerada seminal nos estudos da comunidade LGBTQIA+ no Brasil e que resgata a reportagem “Frangos falando para o mundo”, que o autor escreveu em 1979 para o jornal Lampião da Esquina, relatando como era a dinâmica do grupo, reacenderam o interesse pelo Vivencial.

A conceituação intelectual do projeto do Vivencial, segundo Dourado, foi sendo moldada por acadêmicos e pensadores mais do que pelo próprio grupo, que era dado às experimentações na prática. Nesse processo, foram importantes o cineasta e escritor Jomard Muniz de Britto e o professor e diretor teatral Antonio Cadengue, que chegou ao Vivencial através de Beto Diniz, importante cenógrafo e figurinista, que colaborou com o coletivo. Além deles, trabalhos artísticos, inclusive no audiovisual, como o filme Tatuagem (2013) e a série Chão de Estrelas (2021), ambos dirigidos por Hilton Lacerda, também ajudaram a reforçar o mito da experiência olindense. 

Além dos espetáculos que desenvolveu, o coletivo reverberou sua perspectiva artística com a inauguração de sua sede, o Vivencial Diversiones, em 1978. O espaço ficava localizado na comunidade da Ponte Preta, em Salgadinho, divisa entre Olinda e Recife, em uma área de mangue, e se tornou um fenômeno local, sem que, para isso, precisasse comprometer os ideais da contracultura.

Sua aquisição foi possível graças a algumas verbas, como as ganhas para montagens de peças como Sobrados e Mocambos, escrita por Hermilo Borba Filho, e Viúva, Porém Honesta, que foram selecionadas pelo Serviço Nacional de Teatro (SNT) para receber incentivos financeiros e circulações nacionais. Mesmo com dinheiro, o grupo manteve seus procedimentos criativos de trabalhar com o improviso, a reciclagem de materiais e a coletividade, como apontam Alexandre Figueirôa, Cláudio Bezerra e Stella Maris Saldanha no livro Transgressão em 3 Atos: nos abismos do Vivencial (2011).

Aquele espaço atraía os olhares de muitos, entre eles o de uma jovem Sharlene Esse, que diariamente se encantava com a alegria que aqueles artistas levavam para a rua, em uma espécie de cartão de visitas para o universo lúdico que estava dentro das paredes (que, no começo, eram de pano) do Vivencial Diversiones.

“Eu passava para ir ao colégio e ficava encantada com aqueles panos coloridos, com o auê que elas faziam na frente do espaço. Morria de curiosidade para descer e entrar, até que um dia fiz isso, mas não me deixaram assistir ao espetáculo porque eu era menor de idade. Um dia, vi Pernalonga [Roberto de Lira França], [Silvia] Sereia e mais algumas pessoas do outro lado da rua. ‘Perna’ gritou e disse: ‘Mona, tás fazendo o que aí sozinha na pista? Vem pra cá!”. Expliquei que queria entrar no Diversiones, mas que não podia, e Pernalonga me colocou para frente, dizendo que eu era sua irmã. Aquele espaço mudou minha visão de mundo”, explica Sharlene.

A atriz, que é uma mulher trans e referência na cena artística LGBTQIA+ do Recife, assistiu ao espetáculo Bonecas Falando Para o Mundo (1979) e se tornou frequentadora do espaço, participando também dos shows de calouros que aconteciam sempre à meia-noite. A programação era assim: de quinta a domingo, o Vivencial tinha um espetáculo teatral às 21h, show musical às 23h, apresentação de calouros às 0h e o “desbunde”, com conteúdo mais ousado, como strip-tease, a partir da 1h. Sharlene dublava Donna Summer, personagem com a qual faria história na noite recifense, se apresentando em boates.

“O show de calouros era um espaço onde acontecia tudo o que você pudesse imaginar, de peruca puxada por anzol a policial que fazia strip-tease (risos). O Vivencial me ensinou muita coisa, inclusive a querer ser artista e ser atrevida. Ainda vivíamos na ditadura e não era fácil ser travesti naquela época, havia hora para sair de casa porque, se saísse de dia, apanhava, recebia ovo na rua, era presa sem motivo. O Vivencial era um espaço de liberdade”, reforça a atriz.

O Vivencial Diversiones acabou desafiando todas as expectativas e se tornou um sucesso, com a casa (que, mesmo no auge, sempre manteve um ar underground) lotada por pessoas de diferentes classes sociais. Travestis, jovens gays e lésbicas, políticos, intelectuais, artistas, pobres, gente de classe média, dondocas e playboys da alta sociedade, todos queriam assistir àqueles “frangos” (gíria pernambucana para designar gays) fazendo arruaça, brilhando e desafiando a sisudez do período com seu humor e desbunde.

A relação com a polícia, lembra Sharlene, era relativamente amistosa. Se nas ruas os corpos LGTBQIA+ viviam em grande vulnerabilidade, as autoridades mantinham uma certa permissividade com o Vivencial Diversiones, inclusive porque alguns policiais frequentavam o local e se relacionavam com integrantes do grupo, segundo conta a atriz. Com muito malabarismo, o coletivo conseguiu driblar quase sempre a censura, ainda que não tenha passado incólume às represálias da ditadura. 

A música e a dança atravessavam as criações do Vivencial, que era um grupo brasileiro e pop por excelência. Tudo se misturava no repertório criativo dos artistas, que montaram espetáculos divertidos e contestadores — inclusive por seu conteúdo de nudez, linguajar ousado e celebração da sensibilidade queer. A possibilidade de pessoas trans não só frequentarem o espaço, mas também estarem em cena, brilhando, em meio aos olhares da alta sociedade recifense, era revolucionário. 

Os multiartistas Fábio Costa e Américo Barreto, um dos fundadores do grupo quando este ainda estava sob as asas da Igreja, sentiram por completo a experiência radical de respirar a arte e a coletividade 24 horas por dia. Eles começaram a namorar em São Paulo, quando o Vivencial rodava algumas cidades do Sudeste e, quando voltaram para Olinda, mergulharam cada vez mais na dinâmica das “vivecas”, como eram conhecidos os artistas do coletivo. 

“Tudo lá dentro acontecia de forma natural. O próprio caráter dos espetáculos contrastava com o fazer teatral dos grupos ditos ‘normais’. Tínhamos a vontade de soltar nossos corpos, de contestar a hipocrisia da sociedade. Sempre trabalhamos com a miséria, o lixo, e disso fazíamos nosso luxo. Pegávamos restos de cenários de outros grupos, doações e, a partir dali, desses restos, criávamos o nosso mundo. Mesmo com casa lotada, nunca tínhamos dinheiro porque metade da renda era para manter o espaço e, a outra, dividida entre todo mundo. E tudo isso aconteceu em um momento histórico para se fazer arte em Pernambuco, em Olinda, com muita gente querendo mudar as coisas e criar junta”, lembra Fábio.

Esse intercâmbio artístico é uma das marcas do período e aproximou o Vivencial de outros criadores, tanto enquanto frequentadores do Diversiones quanto em criações diversas. A fotógrafa Ana Farache foi uma das que teve seu caminho atravessado pelo coletivo, desenvolvendo uma relação de amizade e de parceria com os integrantes. São dela os principais registros imagéticos do período, imortalizados no livro “Vivencial: imagens do afeto em tempos de ousadia”.

“Minha convivência com o Vivencial começou em 1976, 1977, quando fui morar em Olinda. Me aproximei de Pernalonga, Fábio, Américo, Henrique Celibi e de outros integrantes, que se tornaram amigos. Os fotografei no Diversiones, como também em cenas montadas na rua. Olinda tinha uma energia artística muito rica, estávamos todos no mesmo caminho de buscar a transformação através do riso, da irreverência e da poesia. Todo mundo dialogava: o pessoal da música, como Lenine e Flaviola, do audiovisual, com o movimento do Super-8, como Geneton Moraes Neto e Paulo Cunha, do teatro. Todo mundo se ajudava e participava do projeto do outro. Não separamos o pessoal do profissional e o Vivencial era a corporificação dessa alegria, quebrando muitos tabus”, enfatiza Ana Farache.

Vivencial, presente

A partir do início dos anos 1980, cisões internas do grupo começam a mudar os rumos do Vivencial, com a saída de alguns membros. Fábio e Américo chegaram a passar um período no Rio Grande do Norte e no Pará, onde abriram casas com uma proposta semelhante ao Vivencial, de apresentações artísticas e acolhimento dos corpos dissidentes. Voltaram ao Recife em 1982, tentaram reabrir o Vivencial Diversiones, mas o projeto acabou encerrado em 1983, ano em que o grupo é dado como finalizado.

Fábio e Américo ressaltam, também, que o Vivencial era uma comunidade na qual todos se ajudavam, fosse nos ensinamentos aprendidos na prática ou mesmo no acolhimento. A maior parte dos integrantes não tinha contato prévio com o circuito tradicional das artes, não tinha formação clássica e vinha de realidades periféricas. Eram pessoas às quais era negado o acesso a muitos espaços e bens materiais e simbólicos, mas que encontraram naquela família meios para desenvolver sua paixão pela arte.

“Henrique Celibi, por exemplo, era uma bichinha da [comunidade] Ilha do Maruim, de origem muito pobre, que recebia um batom, uma peruca, uma roupa dos outros integrantes e, assim, ia se montando, aprendendo a ser artista. Anos depois, continuou trabalhando com teatro e também nas escolas de samba do Rio de Janeiro. Esse tipo de terreno criativo, essa marca do Vivencial, ficou com todos nós. Eu e Américo até hoje aplicamos essa filosofia no nosso trabalho, seja no audiovisual, no teatro ou nos folguedos juninos. Sentimos como se nada tivesse envelhecido; o Vivencial contaminou a cena pernambucana”, aponta Fábio.

Rodrigo Dourado acredita que entre os principais herdeiros do Vivencial estão a Trupe do Barulho, fenômeno nos anos 1990 e que continua angariando público nos teatros do Recife, e os shows de drag queens e travestis nas boates e saunas da capital pernambucana. “A noite mais marginal da cidade é o mais próximo que temos daquele tempo”, acredita o pesquisador, que também enxerga o caráter aberto, contestador e aglutinador do Manguebeat como um eco das experimentações que artistas como o Vivencial propuseram décadas antes.

Dourado reforça, por exemplo, que muito se fala que não houve um “teatro mangue”, ao contrário de outras linguagens, como música, artes visuais e cinema, que teriam absorvido as propostas do movimento de forma mais intensa. E é por isso que, para ele, herdeiros do Vivencial, como a Trupe do Barulho, representariam essa vertente, pois uniam referências do universo pop, como Xuxa, TV Pirata, ícones do cinema comercial, entre outros, a figuras da cultura popular, como Reginaldo Rossi e Roberto Carlos.

Para Américo Barreto, que esteve com o grupo de sua gestação ao crepúsculo, o Vivencial permanece vivo não só nos trabalhos daqueles que foram atravessados pela experiência, mas também pelas portas abertas pelo coletivo.

“Vivo exclusivamente dos ecos dessa experiência. Escolho trabalhar com o que quero, segundo aquela visão libertária, de fazer tudo do jeito mais ousado, Nunca vamos pelo caminho correto. Gostamos do trash, da gambiarra, de desmoralizar. Tudo o que é o mais popular e sincero nos atrai muito. O grande legado do Vivencial é ter sido inclusivo. Os ditos feios, tronchos, pobres, desajustados — todos tinham espaço lá e, ao mesmo tempo, eram quem faziam aquela experiência acontecer”, destaca.

Esta matéria foi publicada originalmente na edição #140 da Revista Noize que acompanhava o vinil “Te Amo Lá Fora”, de Duda Beat, lançado em 2022.

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