Neste Jardim, as flores nascem na pele
Depois da ilustração, Lelê redescobriu-se na arte de desenhar sobre a pele. Fomos conhecer o Jardim Ecotattoo, um estúdio onde tudo vem da natureza, dos materiais à inspiração.


O estúdio pode confundir-se com uma loja de plantas e a anfitriã é a primeira a admiti-lo. Vizinhos e transeuntes param, entram e perguntam se os espécimes envasados à entrada estão à venda. Outros já têm pedido ajuda para cuidar das plantas que têm em casa. Lelê, como se apresenta Letícia Heger, diverte-se com a situação. Até porque se for para ter um cartão de visita que seja a clorofila. “Quero que o Jardim seja uma referência, não só por ser um estúdio que utiliza materiais veganos e ecológicos, mas como um lugar onde alguém que queira tatuar algo relacionado com a natureza – aves, animais, plantas – pode vir e encontrar o seu tatuador entre diversos estilos, não apenas fine line, pontilhismo ou old school. Um espaço onde todos os artistas se encontram num mesmo motivo, a natureza”, começa por apresentar a proprietária.
Formada em design gráfico e fixada em Madrid, começou por ganhar notoriedade como ilustradora. O gosto pela botânica e pela natureza de um modo geral veio logo ao de cima. “Com o passar do tempo, muitas pessoas começaram a me encomendar desenhos para tatuarem com outros tatuadores. Eu achava incrível e um bocado maluco, porque elas queriam os meus desenhos para sempre na pele. Ou seja, comecei a trabalhar com tatuagem sem ser tatuadora. Até que tirei um curso e comecei a praticar na pele o que fazia no papel”, continua.
Lelê diz que demorou dois anos a gostar realmente das tatuagens que fazia. Tempo de aperfeiçoar o traço e a técnica, mas também para se dar a conhecer aos que já eram fãs do seu trabalho como ilustradora. Em 2019, mudou-se para Portugal. Instalar-se foi fácil. Profissionalmente, o percurso começou saltitante, entre estúdios, colectivos e a própria casa. Até que encontrou um pequeno espaço, no pacato bairro de Campo de Ourique. “Alguns dos estúdios por onde passei já usavam material vegano, mas ainda não estava tudo disponível no mercado. Fiquei sempre muito atenta, até que o último material que eu precisava para ter uma bancada mais sustentável veio para a Europa – as luvas. Tinha chegado o momento de abrir o meu estúdio.”
Embora o descarte e a incineração dos materiais continuem a ser obrigatórios por lei, na bancada de trabalho todos os plásticos são de origem vegetal e, logo, biodegradáveis. As tintas, tal como os cremes, sabões e produtos de limpeza, são também elas veganas, o que contribui para aumentar ainda mais a factura dos fornecedores. Um preço a pagar por barrar a entrada ao sucedâneo do petróleo, mas que continua a conquistar clientes um pouco por toda a cidade. A tabela começa nos 120€ (105€ se for uma mini tatuagem). Por esta altura, quem estiver inspirado pelo 25 de Abril, pode aproveitar a promoção e tatuar a Revolução a partir de 95€. “Há coisas que chegam a ser 40 vezes mais caras. Mas como sempre divulguei esta vertente do meu trabalho, há pessoas que falam que me escolheram também pelo material que eu uso. Me faz muita confusão quando vejo tatuadores a se inspirar na natureza e a usar materiais que hoje em dia já não é preciso usar. Usam a natureza como inspiração, mas no final não cuidam dela”, resume. Ainda no campo da ecologia, Lelê anseia pelo dia em que a legislação permita fazer a compostagem de todo o material biodegradável que usa. Nos dias que correm, apenas as agulhas continuam a ser feitas de metal.
O trabalho de linha continua a ser o favorito da tatuadora. Sem preenchimento, sempre que possível com incursões pelo território da tinta colorida. A botânica é o universo de eleição – como, aliás, se nota pela decoração do estúdio –, mas Lelê explora também animais e começa agora a aventurar-se a tatuar as primeiras figuras humanas. O espaço, esse, é partilhado com outra tatuadora e ainda vai recebendo artistas que estão de passagem por Lisboa. Isso e os workshops que vão tendo lugar aqui – começam por introduzir aprendizes e curiosos à técnica da tatuagem ecológica e podem acabar a formar novos profissionais.
Rua Saraiva de Carvalho, 163 (Campo de Ourique). Por marcação