Quando a experiência não funciona, pessoas da realidade sofrem
Entre tempestades na Costa Rica, lembrei de outra tormenta: a de confiar em produtos que esquecem das pessoas.(foto: Business Empresarial)Era novembro de 2023, após uma semana de trekking na montanha Aconcágua, voltei a Mendoza na Argentina, exausta e com 3 objetivos: tomar banho, comer e dormir.Após o banho, escuto meu namorado, Romain, gritar do chuveiro: “Quero comer comida venezuelana!”.Instantaneamente, desejei arepas recheadas com feijão e queijo. Abri o app PedidosYa, adicionei nosso novo endereço e iniciei a busca por um restaurante. Ao olhar a listagem algo me incomodou:Não havia nenhuma indicação da cidade, província e distância dos restaurantes em relação à nossa localização.As heurísticas (Nielsen, J. 1994): Visibilidade do status do sistema e Prevenção de erros, não foram respeitadas.Parece um detalhe menor, mas como product designer, sei que a ausência de uma informação importante gera insegurança no usuário e se torna uma falha grave, especialmente ao realizar ações importantes, como efetuar uma compra. E foi isso o que me ocorreu, acabei refazendo o fluxo de busca de novo, para ter certeza de que o endereço estava correto.Quando a fome encontra a negligênciaA interface do checkout era visualmente adequada, porém mais uma vez a heurística 1 (Visibilidade do Status do sistema) foi ignorada.O app seguia não identificando o município e a província ao apresentar o endereço de entrega no resumo do pedido.Em um país onde “Suipacha” é nome de rua em múltiplas cidades, a ausência dessas informações deveria ser uma bandeira vermelha e a exibição do endereço deveria ser repensada pelo time responsável.Então agora além de insegura passei a me sentir desconfiada, revisei o endereço diversas vezes e mais uma vez ignorei minha intuição pensando:“Eles operam na América Latina inteira, devem ter APIs robustas de geolocalização. Estou exagerando na desconfiança!”Heurísticas ignoradas: Correspondência entre o sistema e o mundo real e Prevenção de erros.Ao finalizar o pagamento, outro tropeço: cartões estrangeiros não eram aceitos.A copy de erro da interface não sinalizou isso ao processar os dados do cartão apenas apresentou um erro genérico “tente novamente”. Obtive clareza da limitação entrando em contato com o suporte.Frustrada me dei conta que fazia 20 minutos que estava tentando concluir o pedido, e veio à mente aquele ditado: “tá no inferno? Abraça o capeta” e foi o que fiz, aceitei pagar em dinheiro (como faziam os Incas).As heurísticas: Visibilidade do Status do sistema e Ajuda e documentação foram ignoradas.A falha atravessa cidadesCerca de 40 minutos depois, o entregador envia a mensagem: “Estou no endereço, mas ninguém responde à campainha.”Depois de trocar algumas mensagens a verdade: O entregador estava em Buenos Aires em vez de Mendoza.*Minha reação em tempo real.* (Tenor)Cansado, ele disse ser a segunda vez naquele dia que passava por esse problema: pedidos foram realizados em localizações diferentes e não era essa a intenção do comprador.Ambos não conseguiram suporte do app.Ele já acumulava 30 mil pesos argentinos de prejuízo, e não conseguiria continuar trabalhando naquela noite…Precisávamos pagar o entregador, mas excluímos a possibilidade de transferir dinheiro devido às barreiras internacionais e à taxa absurda de um app que realiza esse tipo de transferência. Por fim acionamos nosso amigo argentino, Rodri, que fez uma transferência ao entregador.Já diria Jeito Moleque: A AMIZADE É TUDO! (GIPHY)Após o pagamento o entregador cancelou o pedido e pediu desculpas. Fomos dormir com fome e convictos de nunca mais usar esse app!“A heurísticas de 9 — Ajuda e documentação mandou lembranças e um beijo PedidosYa!”Mais tarde, pesquisando sobre as dificuldades dos usuários com o app para embasar melhor esse artigo confirmei que minha experiência não foi um caso isolado:Avaliações da Apple Store.Como evitar que isso se repita?Longe de mim querer ensinar sobre como algo deve ser feito, mas, como profissional de produto, é inevitável pensar: se as primeiras avaliações negativas começaram a surgir (e o suporte se mostrou ineficiente), o caminho natural seria reunir todos os stakeholders: Produto, Design, Tecnologia, Suporte e CX para entender o que está acontecendo.E a partir do diagnóstico coletivo, seria possível redesenhar o fluxo de busca de forma responsável e centrada em quem mais importa: as pessoas que dependem do app para trabalhar e fazer a compra de uma refeição ou outras compras essenciais.Problemas identificadosAPI de busca e geolocalização: falha estrutural na identificação correta do endereço cadastrado na busca e na apresentação de restaurantes na listagem.Quebra de heurísticas e falhas de microcopy: ausência de informações essenciais, feedback inadequado de erro e falta de compatibilidade com o mundo real.Suporte automatizado ineficiente: incapaz de detectar, escalar ou resolver situações graves, prejudicando compradores e entregadores.(Tenor)Como podemos chegar a uma solução?Pensando

Entre tempestades na Costa Rica, lembrei de outra tormenta: a de confiar em produtos que esquecem das pessoas.

Era novembro de 2023, após uma semana de trekking na montanha Aconcágua, voltei a Mendoza na Argentina, exausta e com 3 objetivos: tomar banho, comer e dormir.
Após o banho, escuto meu namorado, Romain, gritar do chuveiro: “Quero comer comida venezuelana!”.
Instantaneamente, desejei arepas recheadas com feijão e queijo. Abri o app PedidosYa, adicionei nosso novo endereço e iniciei a busca por um restaurante. Ao olhar a listagem algo me incomodou:
Não havia nenhuma indicação da cidade, província e distância dos restaurantes em relação à nossa localização.

Parece um detalhe menor, mas como product designer, sei que a ausência de uma informação importante gera insegurança no usuário e se torna uma falha grave, especialmente ao realizar ações importantes, como efetuar uma compra. E foi isso o que me ocorreu, acabei refazendo o fluxo de busca de novo, para ter certeza de que o endereço estava correto.
Quando a fome encontra a negligência
A interface do checkout era visualmente adequada, porém mais uma vez a heurística 1 (Visibilidade do Status do sistema) foi ignorada.
O app seguia não identificando o município e a província ao apresentar o endereço de entrega no resumo do pedido.
Em um país onde “Suipacha” é nome de rua em múltiplas cidades, a ausência dessas informações deveria ser uma bandeira vermelha e a exibição do endereço deveria ser repensada pelo time responsável.
Então agora além de insegura passei a me sentir desconfiada, revisei o endereço diversas vezes e mais uma vez ignorei minha intuição pensando:
“Eles operam na América Latina inteira, devem ter APIs robustas de geolocalização. Estou exagerando na desconfiança!”

Ao finalizar o pagamento, outro tropeço: cartões estrangeiros não eram aceitos.
A copy de erro da interface não sinalizou isso ao processar os dados do cartão apenas apresentou um erro genérico “tente novamente”. Obtive clareza da limitação entrando em contato com o suporte.
Frustrada me dei conta que fazia 20 minutos que estava tentando concluir o pedido, e veio à mente aquele ditado: “tá no inferno? Abraça o capeta” e foi o que fiz, aceitei pagar em dinheiro (como faziam os Incas).
A falha atravessa cidades
Cerca de 40 minutos depois, o entregador envia a mensagem: “Estou no endereço, mas ninguém responde à campainha.”
Depois de trocar algumas mensagens a verdade: O entregador estava em Buenos Aires em vez de Mendoza.
Cansado, ele disse ser a segunda vez naquele dia que passava por esse problema: pedidos foram realizados em localizações diferentes e não era essa a intenção do comprador.
Ambos não conseguiram suporte do app.
Ele já acumulava 30 mil pesos argentinos de prejuízo, e não conseguiria continuar trabalhando naquela noite…
Precisávamos pagar o entregador, mas excluímos a possibilidade de transferir dinheiro devido às barreiras internacionais e à taxa absurda de um app que realiza esse tipo de transferência. Por fim acionamos nosso amigo argentino, Rodri, que fez uma transferência ao entregador.
Após o pagamento o entregador cancelou o pedido e pediu desculpas. Fomos dormir com fome e convictos de nunca mais usar esse app!
Mais tarde, pesquisando sobre as dificuldades dos usuários com o app para embasar melhor esse artigo confirmei que minha experiência não foi um caso isolado:
Como evitar que isso se repita?
Longe de mim querer ensinar sobre como algo deve ser feito, mas, como profissional de produto, é inevitável pensar: se as primeiras avaliações negativas começaram a surgir (e o suporte se mostrou ineficiente), o caminho natural seria reunir todos os stakeholders: Produto, Design, Tecnologia, Suporte e CX para entender o que está acontecendo.
E a partir do diagnóstico coletivo, seria possível redesenhar o fluxo de busca de forma responsável e centrada em quem mais importa: as pessoas que dependem do app para trabalhar e fazer a compra de uma refeição ou outras compras essenciais.
Problemas identificados
- API de busca e geolocalização: falha estrutural na identificação correta do endereço cadastrado na busca e na apresentação de restaurantes na listagem.
- Quebra de heurísticas e falhas de microcopy: ausência de informações essenciais, feedback inadequado de erro e falta de compatibilidade com o mundo real.
- Suporte automatizado ineficiente: incapaz de detectar, escalar ou resolver situações graves, prejudicando compradores e entregadores.

Como podemos chegar a uma solução?
Pensando no contexto de UX, aplicaria as seguintes metodologias com os stakeholders antes de propor qualquer fluxo ou desenho de solução:
- Análise Heurística do fluxo de busca;
- Jobs to Be Done;
- How Might We;
- Matriz CSD;
- MoSCoW.
Análise heurística para compradores:

Jobs To Be Done para compradores:

Se esses jobs não são atendidos, o comprador não apenas tem uma experiência ruim. Ele perde dinheiro, desiste da plataforma e pode espalhar uma reputação negativa, afetando o crescimento do app.
Análise heurística para entregador:

Observações:
- Esses problemas de heurística para o entregador são muito mais graves, porque não impactam apenas a experiência de uso, mas também o ganho financeiro e o bem-estar de quem depende do app para viver.
- Falhas nesse nível tendem a gerar churn oculto entre entregadores (abandono da plataforma sem feedback formal).
- Também impactam o nível de serviço para clientes (entregas não concluídas, atrasadas ou canceladas).
Jobs To Be Done para entregador:

A história contada é um exemplo prático de como falhas de usabilidade desencadeiam impactos desproporcionais na realidade de compradores e entregadores que dependem do app como fonte de renda.
Do ponto de vista técnico, as falhas apresentadas violam princípios básicos de design de interação (heurísticas de Nielsen) e refletem ausência de validações de jornada centradas no usuário.
Esses problemas não comprometem apenas a experiência individual do usuário, como também ampliam desigualdades estruturais: trabalhadores precarizados assumem prejuízos financeiros por erros que deveriam ter sido evitados por um sistema mais robusto. Compradores, por sua vez, perdem confiança, abandonam a plataforma (churn) e amplificam uma percepção negativa que compromete o crescimento de negócio.
A reflexão para nós, profissionais PMs e PDs é simples e profunda:
- Cada decisão de design tem impacto social, econômico e emocional.
- Validar fluxos críticos através de pesquisas, testes de usabilidade e análises heurísticas não é opcional é uma responsabilidade ética.
- Trabalhar com frameworks como Jobs To Be Done, How Might We e Matriz CSD permite antecipar falhas graves e construir experiências que respeitam o usuário e o ecossistema do produto como um todo.
- O suporte ao usuário deve ser projetado como parte da experiência, não como contingência.
Construímos produtos digitais, mas tocamos vidas reais.
E, no fim, é essa responsabilidade que deve guiar cada decisão de design, produto e tecnologia.
Referências e leituras complementares
- Jakob Nielsen — 1994, “A teoria por trás das avaliações heurísticas”.
- Tony Ulwick — 2003, “Jobs to be done: o que é e qual abordagem utilizar?”.
- Interaction Design Foundation: “O que é How Might We?”.
- Livework, “Matriz CSD: o que é e como construir junto ao time de Produto”.
- MoSCoW, “Ferramentas de priorização para designers”.
Quando a experiência não funciona, pessoas da realidade sofrem was originally published in UX Collective