No surrealismo, um sofá não é apenas um sofá em 'Mother, Couch'

Esse filme é para cinéfilos aventureiros. “Mother, Couch” (2023) é uma co-produção Suécia, Dinamarca e EUA, cuja estreia no cinema do diretor e roteirista Niclas Larsson segue a trilha de Charlie Kaufman de filmes como “Sínedoque, Nova York” (2011) e “Estou Pensando em Acabar com Tudo” (2020). Três meio-irmãos são forçados a ficar juntos quando sua mãe que se recusa a sair de um sofá em uma grande loja de móveis à beira da falência. Ela decide largar a sua casa e a própria família para viver num show room vintage dos anos 1980. O filme constrói uma ambiguidade entre o surrealismo e o realismo - Com muitos simbolismos, alegorias e o desenvolvimento dos personagens e de tramas abertas a diversas interpretações, percebemos que sofá não é apenas um sofá. A loja não é apenas uma loja. Pessoas não são apenas pessoas. Incomunicabilidade das relações humanas é o tema geral: quando uma instituição como a família deixa de funcionar, podemos trocá-la como fosse um móvel velho? Surrealistas são aquele tipo de filme nos quais as metáforas e alegorias sacrificam as leis da física ou a estética de verossimilhança com as quais estamos acostumados com a estética e narrativa realista: histórias realistas com cenografia e cenas verossímeis. Por mais que saibamos que os filmes sejam ficcionais, a verossimilhança é como se a narrativa fizesse um pacto com o espectador: eu sei que você sabe que é tudo mentira, mas vamos fazer de conta que é realidade. É a chamada “suspensão da incredulidade”. Os filmes surrealistas (como os de David Lynch) já partem de um princípio: tudo que o espectador verá daqui para frente são cenas simbólicas, alegóricas, metafóricas, elipses violentas etc. Mas há um tipo de filme que transita entre essas duas tipologias, entre o surrealista e o verossímil. O diretor e roteirista Charlie Kaufman foi nesse século o precursor desses filmes ambíguos como Quero ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999), Adaptação (Adaptation, 2002) e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), Sínedoque, Nova York (2011) e Estou Pensando em Acabar com Tudo (2020). Charlie Kaufman dizia que não pretendia fazer filmes que tentavam transpor para a tela as imagens dos sonhos, mas, ao contrário, explorar a vida interior dos protagonistas por meio de narrativas oníricas.  Em outras palavras, ele pretende transpor a narrativa onírica composta por metáforas e metonímias (condensações e deslocamentos, como dizia Freud) para a narrativa fílmica. Para a sua estreia no cinema, o diretor e roteirista Niclas Larsson resolveu seguir as pegadas de Charlie Kaufman ao escolher adaptar o romance sueco “Mamma i Soffa”, de Jerker Virdborg. E entregou o filme Mother, Couch (2023) – um filme que começa como um aparentemente despretensioso filme sobre humor de costumes: um homem está apressado atravessando o estacionamento de uma loja de móveis. Ele veio buscar a sua mãe que está à procura de um móvel para adquirir. Esbaforido, ele entra na loja. Seu irmão está à sua espera. “Onde está a mamãe, estou apressado”. Sua mãe parece ter escolhido um móvel, um sofá esverdeado. Mas surge um problema: ela recusa-se terminantemente a abandonar o local. Prefere ficar sentada naquele velho sofá e esquecer dos filhos e da própria vida! Ela está agarrado àquele sofá como fosse a sua própria vida. Larsson preenche sua adaptação com ambiguidade, simbolismo, metáforas e temas complexos explorados por meio de humor negro, questões existenciais e, principalmente, dinâmicas familiares. Tudo dentro da própria loja de móveis decadente, um pântano de negócios que é a própria metáfora de relações familiares fragmentadas e em crise: um estabelecimento com plantas baixas desajeitadas e pilhas empoeiradas de caixas que combinam com a desordem emocional de uma família. Mother, Couch é para cinéfilos corajosos: à medida que a situação aperta, mais parentes e outros personagens entram no círculo, esperando ajudá-lo a resolver a situação. Mas tudo o que trazem são alguns lembretes indesejados de próprio sentimento de alienação ao longo da vida. E mais desordem e caos. A cada entrada de um novo personagem na tragicomédia, cada vez mais o filme vai tornando-se inverossímil, até alcançar o total surrealismo. Como sempre, a incomunicabilidade é o grande tema que atravessa cada cena do filme. “Passei a minha vida inteira sangrando”, confessa a certa altura a mãe, depois de se machucar num gesto agressivo de um dos filhos tentando arrancá-la do sofá. “É melhor chamar a Emergência 911”, limita-se a dizer o filho diante de uma confissão pessoal tão dramática.  É o tipo de filme que faz o público em geral desistir em minutos, pois é forçado a interpretar todas as interações entre personagens e pontos da trama ao longo da duração sem uma ajuda direta ou palpável. Mother, Couch é inacessível nesse sentido – exige reflexão e ponderação constantes sobre o que está acontecendo e o significado de cada momento – mas, pessoalmente, os t

May 8, 2025 - 12:11
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No surrealismo, um sofá não é apenas um sofá em 'Mother, Couch'


Esse filme é para cinéfilos aventureiros. “Mother, Couch” (2023) é uma co-produção Suécia, Dinamarca e EUA, cuja estreia no cinema do diretor e roteirista Niclas Larsson segue a trilha de Charlie Kaufman de filmes como “Sínedoque, Nova York” (2011) e “Estou Pensando em Acabar com Tudo” (2020). Três meio-irmãos são forçados a ficar juntos quando sua mãe que se recusa a sair de um sofá em uma grande loja de móveis à beira da falência. Ela decide largar a sua casa e a própria família para viver num show room vintage dos anos 1980. O filme constrói uma ambiguidade entre o surrealismo e o realismo - Com muitos simbolismos, alegorias e o desenvolvimento dos personagens e de tramas abertas a diversas interpretações, percebemos que sofá não é apenas um sofá. A loja não é apenas uma loja. Pessoas não são apenas pessoas. Incomunicabilidade das relações humanas é o tema geral: quando uma instituição como a família deixa de funcionar, podemos trocá-la como fosse um móvel velho?

Surrealistas são aquele tipo de filme nos quais as metáforas e alegorias sacrificam as leis da física ou a estética de verossimilhança com as quais estamos acostumados com a estética e narrativa realista: histórias realistas com cenografia e cenas verossímeis.

Por mais que saibamos que os filmes sejam ficcionais, a verossimilhança é como se a narrativa fizesse um pacto com o espectador: eu sei que você sabe que é tudo mentira, mas vamos fazer de conta que é realidade. É a chamada “suspensão da incredulidade”.

Os filmes surrealistas (como os de David Lynch) já partem de um princípio: tudo que o espectador verá daqui para frente são cenas simbólicas, alegóricas, metafóricas, elipses violentas etc.

Mas há um tipo de filme que transita entre essas duas tipologias, entre o surrealista e o verossímil. O diretor e roteirista Charlie Kaufman foi nesse século o precursor desses filmes ambíguos como Quero ser John Malkovich (Being John Malkovich, 1999), Adaptação (Adaptation, 2002) e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004), Sínedoque, Nova York (2011) e Estou Pensando em Acabar com Tudo (2020).

Charlie Kaufman dizia que não pretendia fazer filmes que tentavam transpor para a tela as imagens dos sonhos, mas, ao contrário, explorar a vida interior dos protagonistas por meio de narrativas oníricas.  Em outras palavras, ele pretende transpor a narrativa onírica composta por metáforas e metonímias (condensações e deslocamentos, como dizia Freud) para a narrativa fílmica.



Para a sua estreia no cinema, o diretor e roteirista Niclas Larsson resolveu seguir as pegadas de Charlie Kaufman ao escolher adaptar o romance sueco “Mamma i Soffa”, de Jerker Virdborg. E entregou o filme Mother, Couch (2023) – um filme que começa como um aparentemente despretensioso filme sobre humor de costumes: um homem está apressado atravessando o estacionamento de uma loja de móveis. Ele veio buscar a sua mãe que está à procura de um móvel para adquirir. Esbaforido, ele entra na loja. Seu irmão está à sua espera. “Onde está a mamãe, estou apressado”.

Sua mãe parece ter escolhido um móvel, um sofá esverdeado. Mas surge um problema: ela recusa-se terminantemente a abandonar o local. Prefere ficar sentada naquele velho sofá e esquecer dos filhos e da própria vida! Ela está agarrado àquele sofá como fosse a sua própria vida.

Larsson preenche sua adaptação com ambiguidade, simbolismo, metáforas e temas complexos explorados por meio de humor negro, questões existenciais e, principalmente, dinâmicas familiares. Tudo dentro da própria loja de móveis decadente, um pântano de negócios que é a própria metáfora de relações familiares fragmentadas e em crise: um estabelecimento com plantas baixas desajeitadas e pilhas empoeiradas de caixas que combinam com a desordem emocional de uma família.

Mother, Couch é para cinéfilos corajosos: à medida que a situação aperta, mais parentes e outros personagens entram no círculo, esperando ajudá-lo a resolver a situação. Mas tudo o que trazem são alguns lembretes indesejados de próprio sentimento de alienação ao longo da vida. E mais desordem e caos. A cada entrada de um novo personagem na tragicomédia, cada vez mais o filme vai tornando-se inverossímil, até alcançar o total surrealismo.

Como sempre, a incomunicabilidade é o grande tema que atravessa cada cena do filme. “Passei a minha vida inteira sangrando”, confessa a certa altura a mãe, depois de se machucar num gesto agressivo de um dos filhos tentando arrancá-la do sofá. “É melhor chamar a Emergência 911”, limita-se a dizer o filho diante de uma confissão pessoal tão dramática.


 

É o tipo de filme que faz o público em geral desistir em minutos, pois é forçado a interpretar todas as interações entre personagens e pontos da trama ao longo da duração sem uma ajuda direta ou palpável. Mother, Couch é inacessível nesse sentido – exige reflexão e ponderação constantes sobre o que está acontecendo e o significado de cada momento – mas, pessoalmente, os tópicos estudados e as circunstâncias narrativas foram surpreendentemente bastante identificáveis.

Além da incomunicabilidade (e a loja Oakbed Furnitures é a metáfora disso – tudo ocorre numa loja decadente e mercadologicamente incomunicável com o público: apesar do letreiro gigantesco, o imenso estacionamento está deserto) está também a fragmentação moderna da família.

Apesar do humor negro e a tragicomédia, o filme é amargo: passamos a existência machucando uns aos outros. Passamos a vida levando essas feridas em frente à base de racionalizações oferecidas por instituições como a família. Que tenta oferecer racionalizações como o amor, o afeto, a sensação de pertencimento, camaradagem etc.

Mas e se as instituições deixam de funcionar? E se elas não conseguirem mais oferecer as racionalizações necessárias que por séculos deram certo? Mas agora não funcionam. Então as trocamos, como móveis velhos.

E sobre as inesperadas interações entre móveis e humanos que o filme Mother, Couch trata.

O Filme

Três meio-irmãos (Ewan McGregor, Rhys Ifans e Lara Flynn Boyle) são forçados a ficar juntos quando sua mãe (Ellen Burstyn) se recusa a sair de um sofá em uma grande loja de móveis ‘a beira da falência. A filha (Taylor Russell) do dono da loja parece não se importar com o dilema. Ela até os convida para passar a noite lá, se for útil.

 Esta é essencialmente uma narrativa que ocorre em um único local, com exceção de uma viagem a uma praia, e à casa que a mãe deixou para trás. McGregor lidera como David, o inseguro e mais sensível dos três filhos. Enquanto ele negocia com a mãe para sair do sofá, sua esposa exasperada (Lake Bell) o incentiva a colocar parte da responsabilidade nos irmãos e voltar para sua própria família.



David, no entanto, é obrigado a passar a noite na loja com sua mãe, que revela estar escondendo uma pequena faca para proteção. Ela prossegue e acidentalmente (?) esfaqueia o filho. Um David surpreso olha para seu ferimento, depois para a velha malvada que o deu à luz. Então, de volta para o ferimento. "Bem, eu não vou esfaquear você de novo ", ela diz incrédula.

“É melhor chamar a Emergência 911”, diz David a cada ação errática da mãe, sem conseguir entender o que ela tenta expressar com aquela situação bizarra.

A partir daí, a situação só fica mais estranha. Em certo momento, ela observa David: "Nenhum de vocês se parece". David, com uma ponta de tristeza nos olhos, explica que todos eles tiveram pais diferentes. A cada momento que passa, a atuação de McGregor se alarga, seu comportamento tragicômico se suaviza e a emoção parece transbordar dele de uma forma que não acontecia há muitos anos antes na sua filmografia. Comprovando que ele é dos melhores atores na atualidade.

É fascinante assistir a uma história tão ambígua, mas com temas tão identificáveis. Enquanto algo bastante surreal está acontecendo, encontramos uma estranha familiaridade. Sejam os relacionamentos vastamente diferentes entre a mãe e cada filho, os mal-entendidos não resolvidos do passado que persistem por décadas, ou as comparações invejosas entre os membros da família, Mother, Couch tem muito a dizer sobre a família em geral.

A ideia e a mensagem que se destacam giram em torno da análise do conflito. A perspectiva de que o conflito faz parte de todas as famílias e de que alguns problemas simplesmente não devem ser resolvidos, mas sim reconhecidos e compreendidos como parte da vida e dos laços familiares.



Perdemos muito tempo sentindo raiva, tristeza, aborrecimento e ressentimento por situações que muitas vezes aconteceram há tantos anos que ninguém se lembra exatamente como ocorreram ou como começaram. No entanto, as emoções negativas permanecem em vez de simplesmente seguir em frente e aceitar que a vida é mais do que mal-entendidos ou ações espontâneas incompreensíveis.

Como seguir em frente? A mãe decide a pior opção: abandonar a própria casa para viver num show room vintage dos anos 1980. Por isso, agarra-se ao sofá.

Quanto mais avançamos no filme, mais a metáfora da loja Oakbed Furnitures (a falência comercial e das relações familiares) vai se transformando numa alegoria, ou seja, numa metáfora em movimento. Levando a narrativa para o surrealismo e o inverossímil – quando, por ex., o sofá vira um barco salva-vidas em uma enchente que surge do nada.

Também Mother, Couch é uma exploração do abandono e do luto. O diretor e roteirista Niclas Larsson explora o abandono familiar e as diversas maneiras pelas quais as pessoas lidam com o luto.

Mas por que Mother, Couch é tão ambíguo? Com muito simbolismo material, e o desenvolvimento dos personagens e da trama aberto a diversas interpretações, percebemos que sofá não é apenas um sofá. A loja não é apenas uma loja. Pessoas não são apenas pessoas. Essa imprecisão avassaladora está presente ao longo do filme até o último segundo.

O filme reúne tantas teorias que é fácil sair do cinema ou do seu streaming sem que seu cérebro solte fumaça por superaquecimento. O que assistimos é uma narrativa sobre um mundo onde tudo e todos podem não ser reais, levando tempo para juntar todas as peças do quebra-cabeça.


 

 

 

  Ficha Técnica

Título: Mother, Coach

Diretor: Niclas Larsson

Roteiro: Niclas Larsson, Jerker Virdborg

 Elenco: Ewan McGregor, Rys Ifans, Taylor Russel, Ellen Burstyn

Produção: Fat City, Film i Väst

Distribuição: Film Movement

Ano: 2023

País: Dinamarca, Suécia, EUA

 

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