Literatura: “A Fábrica”, de Hiroko Oyamada, olha para o absurdo da vida numa narrativa deliciosamente inventiva
De aspecto kafkiano, pinceladas de um surrealismo sutil, por vezes nas entrelinhas, trazem novos tons, novas possibilidades para uma narrativa hilariamente crítica

texto de Gabriel Pinheiro
A Fábrica tem tudo. Locais de entretenimento como bares, karaokês e diversos tipos de restaurantes, com todas as culinárias que você imaginar. Lagos artificiais para pesca, hotéis, bancos, agências de viagem e cabeleireiros também estão incluídos. Um longo rio corta o espaço ao meio. Mas uma longa ponte liga uma região a outra e uma série de linhas de ônibus permitem a circulação por todo o seu amplo — a perder de vista — espaço.
A Fábrica parece uma cidade. Mas não é. Trabalhadores, diariamente, entram e saem de sua estrutura, com crachás pendurados no pescoço, para o início e o término de mais uma jornada de trabalho. Mas, com tantos atrativos dentro desta grande “cidade”, por que sair? Por que voltar para casa? “A Fábrica” é o primeiro romance da japonesa Hiroko Oyamada publicado no Brasil com tradução de Jefferson José Teixeira pela Todavia Livros.
A Fábrica não tem nome e não sabemos exatamente o que ela produz, ainda que um sem fim de pessoas constem em seu quadro de funcionários, alocados em inúmeros prédios e setores. Se conta com funcionários efetivos, boa parte de sua força de trabalho é composta tanto por temporários quanto por terceirizados. Quanto menos efetivos, ligeiramente ou consideravelmente piores as condições do contrato trabalhista. Mas todos que estão ali parecem agradecer a oportunidade. Trabalhar n’A Fábrica é motivo de orgulho.
Hiroko Oyamada faz aqui um breve estudo sobre o trabalho, olhando tanto para a precarização quanto para um modelo de trabalho fabril e repetitivo que persiste através dos tempos. Também para um processo de simbiose contemporâneo que parece se dar entre os terrenos do pessoal e do profissional. Mas a autora japonesa ainda vai além.
De aspecto kafkiano, pinceladas de um surrealismo sutil, por vezes nas entrelinhas, trazem novos tons, novas possibilidades para uma narrativa hilariamente crítica. Dividida entre três personagens, intercalamos entre diferentes pontos de vista e atuações dentro desta fábrica. Em comum, cada um deles parece não entender bem o sentido do trabalho que realiza ali. Seja, por exemplo, na pesquisa e coleta de musgos ou em um setor responsável pela fragmentação de papéis e documentos.
“A Fábrica” olha para o absurdo da vida e do trabalho moderno numa narrativa deliciosamente inventiva. Quanto mais adentramos as engrenagens que movimentam esta estrutura complexa, menos parecemos entender o sentido de tudo aquilo. Aliás, você nunca se pegou questionando o real sentido do trabalho que realiza?
– Gabriel Pinheiro é jornalista. Escreve sobre suas leituras também no Instagram: @tgpgabriel.