30° Festival É Tudo Verdade: “Lan – O Caricaturista”, “Um Olhar Inquieto”, “Sob as Bandeiras, o Sol”

“Lan – O Caricaturista” é sobre um artista diante da proximidade da morte; “Um Olhar Inquieto” foca na trajetória de Jorge Bodanzky; “Sob as Bandeiras, o Sol” deixa um dolorido tom de interrogação...

Apr 12, 2025 - 12:46
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30° Festival É Tudo Verdade: “Lan – O Caricaturista”, “Um Olhar Inquieto”, “Sob as Bandeiras, o Sol”

textos de Leandro Luz

“Lan – O Caricaturista”, de Pedro Vinícius (2025)
“Meu futuro é o meu passado”, afirma Lanfranco Vaselli, italiano que cruzou o atlântico nos anos 1920 e se tornou um dos caricaturistas e chargistas mais importantes da América Latina. Lan, nome artístico cunhado por uma namorada da juventude – muito mais interessante, segundo o próprio, do que Franco, nome do ditador espanhol – está com mais de 90 anos de idade e passa a limpo as suas memórias diante de Pedro Vinícius, diretor do documentário. Com passagens marcantes na imprensa uruguaia e argentina, frequentemente associadas ao universo do esporte e do futebol, Lan acabou plantando as suas raízes no Brasil após conhecer Olívia, sua companheira de vida até os dias de hoje. A presença de Olivia no filme é muito característica de um entendimento de que um artista não se faz sozinho no mundo. Ela foi a grande responsável por apresentar Lan ao universo da cultura popular brasileira – a carioca, sobretudo. Foi com ela que Lan aprendeu o que é o samba, para citar um exemplo fundamental para a sua trajetória profissional, deixando transparecer em seu trabalho um universo cultural e político que foi muito além da crítica aos costumes por meio da “paixão nacional”. O filme opera em um registro típico do documentário observacional, confiando não apenas nas palavras de Lan, mas também em seus gestos e modos de habitar a casa no interior do Rio de Janeiro (ele mora em um sítio com Olivia e seu cachorro Che). A câmera o registra bem de perto, quase como se quisesse engolir as ideias do artista. A profundidade de campo, frequentemente reduzida, destaca um rosto envelhecido, mas sempre vivaz. Lan está aposentado da prancha em virtude da perda da visão, evento típico de alguém que viveu quase um século dedicado ao ofício do desenho. “Lan – O Caricaturista” (2025) é um filme sobre um artista diante da proximidade da morte, como afirma o próprio diretor, e a maneira como ele observa a sua personagem é interessante o suficiente para que queiramos ficar mais de uma hora ouvindo as suas histórias e percebendo o seu modo de se relacionar com a vida. Causos envolvendo o flerte com a Revolução Cubana e a atuação no JB (Jornal do Brasil, editado na cidade do Rio de Janeiro, um dos periódicos mais importantes da história do país) são dignos de nota. Evitando grandes saudosismos e sem cair na perversidade da nostalgia barata, o filme se recusa a definir Lan de maneira simplificada, trazendo à tona características de alguém com os seus orgulhos e medos, as suas glórias e inseguranças, enfim, dando conta de revelar aos espectadores uma pessoa de verdade, lúcida e consciente de sua existência no mundo.


“Um Olhar Inquieto: o Cinema de Jorge Bodanzky”, de Liliane Maia e Jorge Bodanzky (2025)
A partir da restauração do acervo analógico de Jorge Bodanzky, contendo diversos dos seus registros cinematográficos pessoais e profissionais feitos Brasil afora, foram descobertas imagens realizadas em 1973, a convite de uma TV alemã, nas quais documentou-se um evento importante em determinada região no estado de Mato Grosso, em plena ditadura militar. Na imagem mais impressionante desse conjunto de registros, um grupo de indígenas tenta atingir o avião com flechas. A câmera de Bodanzky aponta para baixo e mira com urgência e curiosidade a aldeia. É uma pena que um gesto tão forte como esse passe ao largo das discussões de “Um Olhar Inquieto: o Cinema de Jorge Bodanzky” (Liliane Maia e Jorge Bodanzky, 2025), espécie de documentário memorialista a respeito da trajetória do próprio cineasta. Apesar de toda essa abstração quase imperdoável, Bodanzky fica intrigado e encantado com o poder desse registro. Ele decide, portanto, procurar aquelas pessoas e os seus descendentes, dispositivo que adiciona um tempero diferente à proposta documental original. Um fato curioso, sutilmente explorado na parte final do filme, é que a aldeia retratada nunca havia tido contato com pessoas não-indígenas àquela altura. Hoje, as pessoas que presenciaram o acontecimento, ou mesmo aquelas que ouviram histórias a respeito, lembram vagamente da situação, e vivem de maneira completamente diferente do que viviam há cinco décadas. Por si só, o cinema de Bodanzky, cineasta brasileiro veterano com formação no exterior e dono de uma carreira longeva possui um interesse genuíno: para além de sua trajetória como diretor, incluindo a realização do clássico “Iracema – Uma Transa Amazônica” (1975), em que realizou em parceria com Orlando Senna, a sua atuação como diretor de fotografia também merece destaque, tendo sido o principal responsável pelas imagens dos emblemáticos “O Profeta da Fome” (Maurice Capovila, 1969) e “Compasso de Espera” (Antunes Filhos, 1973). No fim das contas, a impressão que fica é a de que o documentário se dispersa entre as suas duas principais ideias, não sendo capaz de garantir a atenção exclusiva que a dimensão artística do cinema de Bodanzky exige, nem de dar conta da investigação quase antropológica na qual ele se lança. A forte ligação do cineasta com a América do Sul é um ponto alto, principalmente a parte na qual o documentário ressalta a presença de Bodanszky e de seu parceiro Karl Brugger no Chile às vésperas do golpe de Pinochet. Um olhar inquieto, de fato, de um cineasta que mesmo aos 82 anos, incansável, conduz com beleza e segurança as rédeas da própria vida.


“Sob as Bandeiras, o Sol / Bajo las Banderas, el Sol”, de Juanjo Pereira (2025)
“Sob as Bandeiras, o Sol” é uma investigação em torno da figura do ditador paraguaio Alfredo Stroessner e da maneira como a sua imagem foi manipulada midiaticamente, sobretudo pelos canais jornalísticos do Paraguai. O diretor Juanjo Pereira realizou a tarefa hercúlea de reunir um caminhão de imagens de arquivo nunca antes vistas pelo grande público, atribuindo definitivamente uma cara à uma situação absolutamente grotesca na história política mundial. Stroessner tomou a frente de um governo autoritário por cerca de trinta e cinco anos – desde 15 de agosto de 1954 até que uma insurreição militar o tirou em 3 de fevereiro de 1989. Ainda que seja de notório conhecimento, a sua capacidade de controlar as memórias de uma sociedade por meio da propaganda nunca ficou tão evidente. O filme revela, por meio de arquivos de diversas fontes e formatos – película, vídeo, reportagens televisivas, filmes amadores – como o ditador construiu um lego de medo e silêncio que perdura até hoje. O Partido Colorado – oficialmente, Asociación Nacional Republicana – Partido Colorado (ANR-PC) – é um partido político paraguaio majoritariamente conservador, fundado ainda no século XIX, cuja máquina pública fora fundamental para a manutenção de Stroessner no poder. Santiago Peña, atual presidente do Paraguai, é o oitavo presidente do PC após a derrocada de Stroessner – nesse meio tempo, apenas dois presidentes não compartilharam da mesma sigla: Fernando Lugo, do Partido Demócrata Cristiano (PDC), e Federico Franco, do Partido Liberal Radical Auténtico (PLRA), interrompendo a dominação por breves cinco anos, de 2008 a 2013. A montagem do documentário joga nos peitos do espectador uma avalanche exaustiva de filmagens que registraram reuniões oficiais, encontros privados, manifestações públicas e todo o tipo de evento encabeçado pelos apoiadores da Ditadura Militar. Um tipo de filme de difícil digestão, que nos confronta diretamente com o horror mais franco e perverso. Após ser deposto do cargo em seu país, em uma espécie de golpe dentro do golpe, Stroessner se muda para o Brasil, mais especificamente para uma mansão na cidade de Guaratuba, município do litoral do estado do Paraná que ficou conhecido nacionalmente nos últimos anos em virtude do podcast “O Caso Evandro”, concebido por Ivan Mizanzuk. Somente após anunciar a morte de Stroessner, acometido por um derrame no dia 16 de agosto de 2006, em Brasília, aos 93 anos de idade, é que “Sob as Bandeiras, o Sol” permite encerrar-se, deixando um dolorido tom de interrogação ao futuro paraguaio.

Leia mais sobre o Festival É Tudo Verdade

– Leandro Luz (@leandro_luz) pesquisa e escreve sobre cinema. Coordena a área de audiovisual do Sesc RJ, atuando na curadoria, programação e gestão de projetos em todo o estado do Rio de Janeiro. Exerce atividades de crítica no Scream & Yell e nos podcasts Tudo É BrasilPlano-Sequência e 1 disco, 1 filme.