30° Festival É Tudo Verdade: “Viva Marília”, de Zelito Viana, rememora a trajetória de Marília Pêra de forma sábia

Marília Pêra é uma das maiores artistas desse país nos últimos 50 anos. Repare que falamos artista e não atriz. Marília era atriz, performer, cantora, diretora, uma multiplicidade de coisas.

Apr 11, 2025 - 19:15
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30° Festival É Tudo Verdade: “Viva Marília”, de Zelito Viana, rememora a trajetória de Marília Pêra de forma sábia

texto de Renan Guerra

Marília Pêra é uma das maiores artistas desse país nos últimos 50 anos. Repare que falamos artista e não atriz. Marília era atriz, performer, cantora, diretora, uma multiplicidade de coisas. Nome fundamental do teatro brasileiro – especialmente o musical –, ela nunca se absteve de ser artista popular na televisão e ainda construiu sólida e diversa carreira no cinema brasileiro. Dito isso, fica a questão: como resumir Marîlia Pêra em menos de 90 minutos? O diretor Zelito Viana assumiu esse desafio, ao lado de um roteiro assinado por Nelson Motta, e assim nasce “Viva Marília” (2024), documentário que tenta condensar a densidade dessa profissional que fez da arte seu ofício e seu dever, criando algumas das personagens mais marcantes do nosso teatro, do nosso cinema e da nossa TV.

Em determinado momento do filme, a própria Marília conta que as pessoas no exterior, quando do lançamento de “Pixote, a Lei do Mais Fraco” (1981), estranharam que ela fosse uma artista com domínio do humor e dos musicais, visto que sua atuação no filme de Hector Babenco é uma das coisas mais pesadas e viscerais do cinema – e aqui colocado como espaço global mesmo. A prostituta Sueli é um marco do cinema dos anos 80 e sua interpretação é um acontecimento. Porém, Sueli é um fiozinho da complexidade de Marília Pêra. Ela sempre foi artista diversa, que consegue ir do teatro operístico à novela das sete; do teatro politicamente engajado ao humor escrachado de um texto de Miguel Falabella. Pouquíssimas atrizes nesse país tiveram tantas nuances quanto Marília e isso é o que delega a ela o posto de diva, de dama, de estrela das múltiplas artes. Seu trabalho no teatro é seminal, suas interpretações no cinema são sempre marcantes e suas personagens na TV criaram pontos referenciais.

Considerando tudo isso, o documentário “Viva Marília” faz uma interessante escolha: ao invés de seguir uma linha cronológica, o filme opta por blocos que tentam condensar essas diferentes frentes de ação da artista. Teatro, TV, música e cinema são agrupados em suas especificidades. Além disso, o filme opta por um dispositivo bastante em voga no documentário recente: nada de entrevistas extras, é o próprio personagem que reconta sua narrativa em imagens de arquivo. Esse é um formato rico, mas extremamente trabalhoso, e que se vale da riqueza de acervo de seus personagens. E isso Marília tem de sobra. Nem sempre ela se abria a entrevistas, mas quando se propunha a esse formato, se entregava e se colocava de forma potente e reflexiva sobre si mesma e sobre sua trajetória. E isso é usado de forma extremamente rica pelo diretor Zelito Viana e a codiretora Esperança Motta. Aqui vale um parênteses de que Esperança é filha de Marília ao lado de Nelson Motta, o roteirista do filme. E aí podem até apontar “ah tudo fechado em si mesmo, em um círculo familiar”, mas o fato é que já estamos quase chegando há 10 anos do falecimento de Marília Pêra e foi preciso que sua própria família agisse em prol de sua memória. É meio absurdo, ela foi uma das maiores artistas de nosso país, como ela não teve projetos celebrativos ainda em vida? Como demorou 10 anos desde sua morte para que um documentário surgisse?

Marília apanhou dos militares ao performar “Roda Viva”. Marília fez história como Rafaela em “Brega & Chique”. Marília marcou o teatro brasileiro interpretando figuras como Coco Chanel e Carmen Miranda. Marília foi a mais absurda coadjuvante ao lado de Fernanda Montenegro em “Central do Brasil”. Marília fez história com os textos de Miguel Falabella. Marília redefiniu possibilidades ao dirigir Nanini e Latorraca em “Irma Vap”. Marília ousou ao cantar o que queria, como no disco cult “Feiticeira”. E, repetindo, Marília fez história com sua Sueli em “Pixote”. E é lindo como “Viva Marília” consegue passar por tudo isso de forma bem amarrada. Óbvio que faltam coisas, óbvio que outras cenas poderiam ser valorizadas, mas estamos falando de uma artista com um currículo absurdo e nem tudo cabe num filme, precisaríamos de muitos capítulos de uma série pra dar conta de sua obra.

É natural que muitos espectadores sintam falta de muitos momentos pop de Marília – sua persona televisiva dos anos 2000, por exemplo, é praticamente ignorada. De todo modo, o filme de Zelito Viana se sobressai em suas escolhas de celebrar as ousadias de Marília Pêra, de relembrar seus experimentos, de reverberar suas peças estranhas, seus projetos mais sinceros. E isso é marcado por entrevistas completamente soltas da artista, que fala com sinceridade para repórteres como Marília Gabriela, Arakén Távora e Jacy Campos. Esse material de acervo é riquíssimo e é muito bom vê-lo sendo bem usado. Marília cresce é em sua própria voz, a partir de sua própria narrativa, e nunca pela voz de outros narradores, que poderiam apenas servir a um roteiro postumamente celebratório e subserviente.

Dito tudo isso, podemos concluir que “Viva Marília”, de Zelito Viana – filme de abertura no 30° festival É Tudo Verdade na cidade do Rio de Janeiro –, ainda é um filme introdutório. Ele não é Marília no todo – trabalho quase impossível. Mas é um filme fundamental nesse marco de 10 anos de seu falecimento. É preciso que a memória dessa artista seja mantida viva e esse filme nos ajuda nesse trabalho, resgatando sua força, sua ousadia e sua inventividade. Se fôssemos um país com memória, Marília seria celebrada sempre, mas não somos assim e ainda precisamos desbravar esses espaços. Este documentário é como uma semente para que a história dessa atriz genial siga sendo descoberta e redescoberta. Como afirma seu título, viva Marília Pêra!

Leia mais sobre o Festival É Tudo Verdade

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava