Georges Perec— quando o romance teve a sua Nova Vaga

Georges PerecRomance fundamental na produção literária francesa da década de 1960, As Coisas, de Georges Perec, está finalmente disponível em tradução portuguesa: através de um jovem casal, descobrimos os objectos, e também as ilusões e desilusões, da sociedade de consumo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 abril).Foi em 1965 que se estreou Alphaville, de Jean-Luc Godard, parábola de ficção científica sobre uma sociedade dominada pelo computador Alpha 60, onde estão proibidos valores como o “amor” e a “poesia”, logo também a partilha dos livros — na sua imagem mais emblemática, vemos Anna Karina a olhar o infinito tendo nas mãos La Capitale de la Douleur, de Paul Éluard.Alphaville (1965)O filme ficou como um dos símbolos da Nova Vaga francesa, afinal reflectindo uma visão crítica, inseparavelmente estética e política, face ao triunfo da sociedade de consumo. À mesma vaga artística pertence o romance As Coisas, de Georges Perec (1936-1982), também editado em 1965, agora finalmente disponível numa hiper-cuidada tradução de Luís Leitão, com chancela da editora Antígona.Dir-se-á que a expressão “sociedade de consumo” não desapareceu do imaginário social. Sem dúvida, mas a lógica (ou a falta dela) dos nossos hábitos consumistas está ligada a um sistema de circulação e endeusamento das mercadorias que, mesmo com semelhanças, não se pode confundir com o tempo — e, em particular, com a França — em que Perec escreveu o seu livro. Aliás, o subtítulo de As Coisas é suficientemente claro (e justificadamente ambicioso) para nos remeter para tal contexto. A saber: Uma História dos Anos 60. Deparamos, assim, com Sylvie e Jérôme, casal de jovens que trabalha para agências de publicidade, em particular na realização de inquéritos ao cidadão comum que permitam avaliar as tendências de consumo dominantes.Ainda que investigando as tendências dos outros, Sylvie e Jérôme não são estranhos ao perverso enleamento das seduções e ilusões do consumo. Para dar conta da frágil utopia do seu mundo, Perec escreve mesmo o primeiro capítulo no condicional, como uma espécie de inventário do mundo ideal que perseguem (e, em boa verdade, os persegue): “A primeira porta daria para um quarto, com o soalho coberto por uma alcatifa clara. Uma grande cama inglesa ocuparia todo o fundo. À direita, de cada lado da janela, duas prateleiras estreitas e altas conteriam alguns livros lidos e relidos, álbuns, baralhos de cartas, botões, colares, bugigangas.”O livro vai dando conta das actividades profissionais de Sylvie e Jérôme, numa linguagem que, embora apostada numa descrição minuciosa das “coisas” que o título refere, se organiza também como uma antologia de pequenos contos morais. O segundo capítulo, por exemplo, começa por dizer que “teriam gostado de ser ricos”, para terminar num misto de impaciência e disponibilidade de quem está “à espera de viver, à espera de dinheiro”.Certamente não por acaso, naquele tempo em que o cinema se confundia com a vida, viam muitos filmes, encantados com Cyd Charisse e Robert Taylor, mas, cruel ironia, indiferentes às propostas da Nova Vaga (para eles, O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais, é mesmo o protótipo do “cinema dito sério” que menosprezam). Por fim, cada filme reforçava também a sua frustração existencial: “Não era aquele filme total que cada um deles trazia em si, aquele filme perfeito de que nunca se poderiam cansar. Aquele filme que teriam querido fazer. Ou, sem dúvida mais secretamente, que teriam querido viver.”Das coisas às palavrasPrimeiro romance do seu autor, distinguido com o Prémio Renaudot de 1965, As Coisas surgiu, não apenas como revelação de um talento invulgar, mas também um eco de uma paisagem criativa marcada pelos trabalhos experimentais do grupo de pesquisa literária OuLiPo (“Ouvroir de littérature potentielle”), criado por Raymond Queneau em 1960, grupo que Perec também viria a integrar. Isto sem esquecer que a primeira edição de As Coisas surgiu na prestigiada coleção “Lettres Nouvelles”, dirigida por Maurice Nadeau — vale a pena referir, a propósito, que a imprescindível História do Surrealismo, de Nadeau, foi há poucos meses editada entre nós (Assírio & Alvim, tradução de Diogo Paiva).Mesmo correndo o risco da esquematização, é forçoso reconhecer que, no seu realismo ambíguo e, à sua maneira, visceralmente didáctico, As Coisas lida com o desejo assombrado de uma felicidade associada aos objectos do nosso mundo: “Não sentiam alegria nem tristeza, nem sequer tédio, mas podia acontecer perguntarem-se se ainda existiam, se existiam de facto.” Que fazer? Seria preciso, talvez, saber como dar nome a essa felicidade tão vaga e, no seu desejo, tão premente. Nem que seja por ironia, vale a pena lembrar que, um ano mais tarde, portanto em 1966, surgiria um livro de Michel Foucault intitulado As Palavras e as Coisas.

Apr 11, 2025 - 22:45
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Georges Perec— quando o romance teve a sua Nova Vaga
Georges Perec

Romance fundamental na produção literária francesa da década de 1960, As Coisas, de Georges Perec, está finalmente disponível em tradução portuguesa: através de um jovem casal, descobrimos os objectos, e também as ilusões e desilusões, da sociedade de consumo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 abril).

Foi em 1965 que se estreou Alphaville, de Jean-Luc Godard, parábola de ficção científica sobre uma sociedade dominada pelo computador Alpha 60, onde estão proibidos valores como o “amor” e a “poesia”, logo também a partilha dos livros — na sua imagem mais emblemática, vemos Anna Karina a olhar o infinito tendo nas mãos La Capitale de la Douleur, de Paul Éluard.

Alphaville (1965)

O filme ficou como um dos símbolos da Nova Vaga francesa, afinal reflectindo uma visão crítica, inseparavelmente estética e política, face ao triunfo da sociedade de consumo. À mesma vaga artística pertence o romance As Coisas, de Georges Perec (1936-1982), também editado em 1965, agora finalmente disponível numa hiper-cuidada tradução de Luís Leitão, com chancela da editora Antígona.
Dir-se-á que a expressão “sociedade de consumo” não desapareceu do imaginário social. Sem dúvida, mas a lógica (ou a falta dela) dos nossos hábitos consumistas está ligada a um sistema de circulação e endeusamento das mercadorias que, mesmo com semelhanças, não se pode confundir com o tempo — e, em particular, com a França — em que Perec escreveu o seu livro. Aliás, o subtítulo de As Coisas é suficientemente claro (e justificadamente ambicioso) para nos remeter para tal contexto. A saber: Uma História dos Anos 60. Deparamos, assim, com Sylvie e Jérôme, casal de jovens que trabalha para agências de publicidade, em particular na realização de inquéritos ao cidadão comum que permitam avaliar as tendências de consumo dominantes.
Ainda que investigando as tendências dos outros, Sylvie e Jérôme não são estranhos ao perverso enleamento das seduções e ilusões do consumo. Para dar conta da frágil utopia do seu mundo, Perec escreve mesmo o primeiro capítulo no condicional, como uma espécie de inventário do mundo ideal que perseguem (e, em boa verdade, os persegue): “A primeira porta daria para um quarto, com o soalho coberto por uma alcatifa clara. Uma grande cama inglesa ocuparia todo o fundo. À direita, de cada lado da janela, duas prateleiras estreitas e altas conteriam alguns livros lidos e relidos, álbuns, baralhos de cartas, botões, colares, bugigangas.”
O livro vai dando conta das actividades profissionais de Sylvie e Jérôme, numa linguagem que, embora apostada numa descrição minuciosa das “coisas” que o título refere, se organiza também como uma antologia de pequenos contos morais. O segundo capítulo, por exemplo, começa por dizer que “teriam gostado de ser ricos”, para terminar num misto de impaciência e disponibilidade de quem está “à espera de viver, à espera de dinheiro”.
Certamente não por acaso, naquele tempo em que o cinema se confundia com a vida, viam muitos filmes, encantados com Cyd Charisse e Robert Taylor, mas, cruel ironia, indiferentes às propostas da Nova Vaga (para eles, O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais, é mesmo o protótipo do “cinema dito sério” que menosprezam). Por fim, cada filme reforçava também a sua frustração existencial: “Não era aquele filme total que cada um deles trazia em si, aquele filme perfeito de que nunca se poderiam cansar. Aquele filme que teriam querido fazer. Ou, sem dúvida mais secretamente, que teriam querido viver.”

Das coisas às palavras

Primeiro romance do seu autor, distinguido com o Prémio Renaudot de 1965, As Coisas surgiu, não apenas como revelação de um talento invulgar, mas também um eco de uma paisagem criativa marcada pelos trabalhos experimentais do grupo de pesquisa literária OuLiPo (“Ouvroir de littérature potentielle”), criado por Raymond Queneau em 1960, grupo que Perec também viria a integrar. Isto sem esquecer que a primeira edição de As Coisas surgiu na prestigiada coleção “Lettres Nouvelles”, dirigida por Maurice Nadeau — vale a pena referir, a propósito, que a imprescindível História do Surrealismo, de Nadeau, foi há poucos meses editada entre nós (Assírio & Alvim, tradução de Diogo Paiva).
Mesmo correndo o risco da esquematização, é forçoso reconhecer que, no seu realismo ambíguo e, à sua maneira, visceralmente didáctico, As Coisas lida com o desejo assombrado de uma felicidade associada aos objectos do nosso mundo: “Não sentiam alegria nem tristeza, nem sequer tédio, mas podia acontecer perguntarem-se se ainda existiam, se existiam de facto.” Que fazer? Seria preciso, talvez, saber como dar nome a essa felicidade tão vaga e, no seu desejo, tão premente. Nem que seja por ironia, vale a pena lembrar que, um ano mais tarde, portanto em 1966, surgiria um livro de Michel Foucault intitulado As Palavras e as Coisas.