10 Considerações sobre A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar ou queremos ler a versão da feia...
O blog Listas Literárias leu A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar publicado pela Companhia das letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou porque a versão escrita pela feia nos seria um legado bem mais interessante, confira:1 - A Bíblia, pense-se o que pense-se dela, inegavelmente influencia e influenciou os desígnios e caminhos humanos (no que há de bom e no que há de pior nas acepções do termo humano) nos últimos séculos. Um livro tomado por alguns como a verdade da história humana (ainda que seja uma narrativa sobre um povo específico), não raro tomada ao pé da letra, especialmente quando conveniente aos usos do patriarcado. Aliás, inegavelmente é um texto patriarcal, um texto escrito a serviço "de um pai", um modelo a ser seguido. É justamente aí que Scliar com todo seu humor e questionamento nos entrega essa obra: e se uma mulher tivesse escrito a Bíblia? O resultado é uma obra interessantíssima no que se refere a iluminar comportamentos que perduram no tempo;2 - No livro temos dois movimentos curiosos a partir da constituição de dois narradores que viabilizam suspeitosamente essa volta no tempo, para ser mais específico aos tempos de Salomão, o rei, o sábio. Há uma espécie de ponte construída iniciada pelo narrador que é professor de História, mas cuja "habilidade sensitiva" da hipnose ajuda-o a descobrir a lucrativa capacidade de por meio da hipnose levar seus clientes às vidas passadas. O tom irônico e de suspeição é a lógica. Nessa nova atividade bem mais lucrativa que dar aulas de História é que lhe chega uma mulher de misteriosos laços, que em determinado momento encaminhará ao professor seu próprio relato, ou melhor, o relato daquela que foi num passado distante...3 - É a partir daí que passamos a acompanhar a narradora predominante do romance, a mulher que suspostamente escrevera a Bíblia. Filha de um líder local déspota e afeito às aventuras sexuais, a mulher é a mais velha e radicalmente marcada por uma especificidade: é feia, segundo ela mesma. Mas pensa numa coisa feia, uma feiúria que lhe abastece de gigantesca ironia. Tão feia que seu amante é uma pedra lisa que habita uma caverna. Tão feia que o jovem da aldeia prefere as cabras - e a irmã. Feia mesmo. A feiúra como marca indelével no pastiche paródico que Scliar imprime à narrativa. A despeito de sua feiúra, esta mulher será inserida por Scliar nas engrenagens da história;4 - Aliás, o tom pastiche, irônico, mas não menos reflexivo, será o predominante da narração, uma narração conscientemente marcada pelo anacronismo das palavras, das frases e das alusões muitas vezes feitas pela narradora. Tudo isso converge para o clima crítico-paródico do romance, que a despeito do mundanismo chulo por vezes evocado nas palavras da narradora, introduz importantes e relevantes questionamentos acerca de livro tão importante no desenvolvimento da história humana, ao mesmo tempo que seu caráter de riso bem humorado possibilita a construção de reflexões sem a sisudez com que muitas vezes é abordada a questão. Além disso, esse estilo solto e descomprometido com qualquer insuspeição torna a leitura fluente e animada;5 - Dito isso, a feia então é dada ao Rei Salomão como uma de suas lendárias setecentas esposas. Logo ela, a feia, o ponto de inflexão no harém de beldades. O casamento estranhamente organizado dá-se logo e, quando menos a narradora está no palácio nessa estranha condição junto às esposas e às trezentas concubinas de Salomão, um homem cuja mitologia busca vender a sabedoria e a aura de divindade que lhe conferem os relatos. Nesse sentido, não menos crítica, ácida e irônica a passagem do primeiro encontro do rei com a feia... encontro tumultuado que para o bem e o mal marcará a relação de ambos nos tempos que se passam posteriormente...6 - Isso porque embora feia, a narradora portava uma distinção que nem uma outra das setecentas esposas a tinha: a habilidade de escrever. Ocorre que nossa narradora bem o sabia os caminhos da escrita e é justamente aí que começa a tal estória da mulher que escreveu a Bíblia que dá o título do romance. Ocorre que o grande plano de Salomão era o de escrever "a história" de seu povo e logicamente chegar até ao seu presente glorioso como rei dos reis, enfim, encomendava assim sua peça publicitária...7 - É justamente aí que adentra algumas questões legais e interessantes da corajosa abordagem de Scliar (para títulos de registro, um escritor de origem judaica). Obviamente o título "A mulher que escreveu a Bíblia" é uma contradição expressa. De modo algum uma mulher poderia ter escrito a Bíblia com todo seu machismo e poder patriarcal. Como uma mulher teria escrito a Bíblia e assim se mostrado tão conivente com um livro que as atira a uma submissão extrema? Evitarei spoilers, mas Moacyr Scliar encontra uma ótima solução para esta problemática e ainda assim tendo de fato sua feia narradora como a escrevente da Bíblia. Ela, de fato, o faz nessa suposição narrativa, passa a escr

O blog Listas Literárias leu A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar publicado pela Companhia das letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou porque a versão escrita pela feia nos seria um legado bem mais interessante, confira:
1 - A Bíblia, pense-se o que pense-se dela, inegavelmente influencia e influenciou os desígnios e caminhos humanos (no que há de bom e no que há de pior nas acepções do termo humano) nos últimos séculos. Um livro tomado por alguns como a verdade da história humana (ainda que seja uma narrativa sobre um povo específico), não raro tomada ao pé da letra, especialmente quando conveniente aos usos do patriarcado. Aliás, inegavelmente é um texto patriarcal, um texto escrito a serviço "de um pai", um modelo a ser seguido. É justamente aí que Scliar com todo seu humor e questionamento nos entrega essa obra: e se uma mulher tivesse escrito a Bíblia? O resultado é uma obra interessantíssima no que se refere a iluminar comportamentos que perduram no tempo;
2 - No livro temos dois movimentos curiosos a partir da constituição de dois narradores que viabilizam suspeitosamente essa volta no tempo, para ser mais específico aos tempos de Salomão, o rei, o sábio. Há uma espécie de ponte construída iniciada pelo narrador que é professor de História, mas cuja "habilidade sensitiva" da hipnose ajuda-o a descobrir a lucrativa capacidade de por meio da hipnose levar seus clientes às vidas passadas. O tom irônico e de suspeição é a lógica. Nessa nova atividade bem mais lucrativa que dar aulas de História é que lhe chega uma mulher de misteriosos laços, que em determinado momento encaminhará ao professor seu próprio relato, ou melhor, o relato daquela que foi num passado distante...
3 - É a partir daí que passamos a acompanhar a narradora predominante do romance, a mulher que suspostamente escrevera a Bíblia. Filha de um líder local déspota e afeito às aventuras sexuais, a mulher é a mais velha e radicalmente marcada por uma especificidade: é feia, segundo ela mesma. Mas pensa numa coisa feia, uma feiúria que lhe abastece de gigantesca ironia. Tão feia que seu amante é uma pedra lisa que habita uma caverna. Tão feia que o jovem da aldeia prefere as cabras - e a irmã. Feia mesmo. A feiúra como marca indelével no pastiche paródico que Scliar imprime à narrativa. A despeito de sua feiúra, esta mulher será inserida por Scliar nas engrenagens da história;
4 - Aliás, o tom pastiche, irônico, mas não menos reflexivo, será o predominante da narração, uma narração conscientemente marcada pelo anacronismo das palavras, das frases e das alusões muitas vezes feitas pela narradora. Tudo isso converge para o clima crítico-paródico do romance, que a despeito do mundanismo chulo por vezes evocado nas palavras da narradora, introduz importantes e relevantes questionamentos acerca de livro tão importante no desenvolvimento da história humana, ao mesmo tempo que seu caráter de riso bem humorado possibilita a construção de reflexões sem a sisudez com que muitas vezes é abordada a questão. Além disso, esse estilo solto e descomprometido com qualquer insuspeição torna a leitura fluente e animada;
5 - Dito isso, a feia então é dada ao Rei Salomão como uma de suas lendárias setecentas esposas. Logo ela, a feia, o ponto de inflexão no harém de beldades. O casamento estranhamente organizado dá-se logo e, quando menos a narradora está no palácio nessa estranha condição junto às esposas e às trezentas concubinas de Salomão, um homem cuja mitologia busca vender a sabedoria e a aura de divindade que lhe conferem os relatos. Nesse sentido, não menos crítica, ácida e irônica a passagem do primeiro encontro do rei com a feia... encontro tumultuado que para o bem e o mal marcará a relação de ambos nos tempos que se passam posteriormente...
6 - Isso porque embora feia, a narradora portava uma distinção que nem uma outra das setecentas esposas a tinha: a habilidade de escrever. Ocorre que nossa narradora bem o sabia os caminhos da escrita e é justamente aí que começa a tal estória da mulher que escreveu a Bíblia que dá o título do romance. Ocorre que o grande plano de Salomão era o de escrever "a história" de seu povo e logicamente chegar até ao seu presente glorioso como rei dos reis, enfim, encomendava assim sua peça publicitária...
7 - É justamente aí que adentra algumas questões legais e interessantes da corajosa abordagem de Scliar (para títulos de registro, um escritor de origem judaica). Obviamente o título "A mulher que escreveu a Bíblia" é uma contradição expressa. De modo algum uma mulher poderia ter escrito a Bíblia com todo seu machismo e poder patriarcal. Como uma mulher teria escrito a Bíblia e assim se mostrado tão conivente com um livro que as atira a uma submissão extrema? Evitarei spoilers, mas Moacyr Scliar encontra uma ótima solução para esta problemática e ainda assim tendo de fato sua feia narradora como a escrevente da Bíblia. Ela, de fato, o faz nessa suposição narrativa, passa a escrever sob encomenda de Salomão e a partir de seu exercício questão fundamental do romance vai expondo as contradições e lacunas desse livro de tanto impacto na história humana;
8 - Assim, mais do que realmente nos mostrar a mulher que escreveu a Bíblia, Scliar expõe com muito humor as fissuras desse texto. A mulher, dotada de criticidade, mais do que escrever a Bíblia, vai questionar-se quanto aos seus aspectos problemáticos, vai apontar os dedos para as soluções simplistas de modo que o que talvez seja a maior mensagem da obra de Scliar, e mesmo que seja óbvio (as pessoas literalmente têm se mostrado incapazes de perceber o óbvio), é que se escrita por uma mulher teríamos uma lógica totalmente diferente nas concepções acerca do mundo e das relações entre humanos. Nesse aspecto o livro é provocativo e faz toda essa sua provocação de maneira insinuante;
9 - Além disso, ao cabo, fica-se a pergunta, como um livro escrito para descrever a ascensão de um povo em específico passa a ser tomado como reflexo e história de todos os povos? Mas enfim, isso é outra coisa. Não menos revolucionária é a insinuação de que o Segundo Testamento teria um olhar mais feminino em seus versos. E aqui precisamos dar conta de alguns aspectos, já que nossa feia é uma cronista dentro do tempo e do templo de Salomão, logo, escreve o registro do princípio da criação até este momento, portanto, o Velho Testamento. Mas com a argúcia do autor Scliar, a narradora, a feia, é capaz de vislumbrar o futuro, um possível segundo livro; esse suposto futuro na imaginação da escrevente, alusão ao Novo Testamento em que o feminino ganha novos contornos e o que implica, inclusive, dizer que não há qualquer rompimento radical com a fé a despeito das aparências da narrativa;
10 - Enfim, divertido, irônico mas acima de tudo inteligante e provocativo, A mulher que escreveu a Bíblia, de Moacyr Scliar é destas leituras que ao mesmo tempo nos divertem, mas também nos levam a questionamentos e reflexões de profundidade e natureza complexas. Uma ótima experiência de leitura.