10 Considerações sobre A cabeça do santo, de Socorro Acioli ou no creo en milagres pero que los hay, los hay...
O Blog Listas Literárias leu A Cabeça do Santo, de Socorro Acioli, publicado pela Companhia das Letras; neste post, as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, um grande exemplo do quão rico é o Realismo Mágico na literatura brasileira. Confira:1 - Em um espaço despótico e autoritário como a América Latina, "herdeira" de séculos de colonização, com os povos sob o jugo do poder e da autoridade, o Realismo Mágico não apenas viceja ricamente, mas foi a forma encontrada pela literatura para dar conta do inexplicável e do absurdo de seu cotidiano. De tal modo que o gênero talvez seja o que melhor nos define e nos representa. Contudo, a identidade latino-americana, no caso do Brasil, sempre foi ambígua e contraditória, tanto que, nestas terras, sempre se citou certa preferência pelo Realismo em nossa ficção. Entretanto, o Realismo Mágico, o Real Maravilhoso, o Insólito e as diferentes gradações do fantástico sempre buscaram sua própria existência, vide um José J. Veiga, um Murilo Rubião, um Érico Veríssimo e, talvez mais recentemente, Ana Paula Maia. É nesse seleto time que podemos compreender a narrativa de Socorro Acioli.2 - O romance, com ares de novela devido ao seu enxuto núcleo de personagens, é um dos ótimos exemplos da potência do Realismo Mágico em penetrar as diferentes camadas do que constitui o humano, tudo isso com a extrema brasilidade nordestina, tão influente na cultura brasileira. A obra narra a estória de Samuel, jovem que, com a morte da mãe, inicia uma peregrinação a fim de cumprir três promessas feitas a ela: acender velas aos pés de três santos, encontrar a avó e o pai na cidade quase morta de Candeia. Até chegar lá, com o único desejo de matar o pai - o demônio -, são dezesseis dias sob o sol escaldante do Ceará, que o tornam um farrapo de gente.3 - Tratado como animal por uns, ele acaba parando dentro da cabeça de um Santo Antônio que, por um erro de construção, não pôde ser posta sobre o pescoço da estátua no alto do morro. A cabeça, que gerou uma verdadeira maldição sobre Candeia, cidade quase fantasma, mais do que abrigo ao farrapo de gente em que Samuel se tornou, acaba criando uma estranha conexão com ele, que passa a ouvir vozes de mulheres em suas preces ao santo e, assim, adentra de vez no Real Maravilhoso.4 - Vale dizer que não é gratuita a escolha do gênero pela autora, cuja ideia de texto foi apresentada na tradicional oficina de Gabriel García Márquez, que teria adorado a proposta do livro. Ou seja, é uma obra que já nasce com a bênção do grande mestre do gênero, mas que evoca obras de tantos outros autores latino-americanos, de Ariano Suassuna a Juan Rulfo. Aliás, podemos estabelecer conexões interessantes com Pedro Páramo, especialmente nas relações com a morte, seja das gentes, seja do espaço social.5 - Mas, certamente, o que dá o toque saboroso ao livro é a brasilidade. Essa brasilidade reside no picaresco - ou no malandro de Antônio Candido. Samuel e o jovem Francisco, com quem cria uma sociedade para aproveitar o novo "dom" e a capacidade de incentivar casamentos, a seu modo lembram um Chicó e um João Grilo, especialmente este. Cético e rebelde em relação aos santos que não teriam salvado a mãe, e com o projeto de matar o pai cada dia mais distante, os dois começam a mudar a cidade e tirá-la de seu processo de extinção. Com os "milagres" de Samuel se espalhando por todo o Ceará, pelas rádios, de boca em boca, Candeia revive. As casas abandonadas, com suas múmias, são tomadas por novas gentes e novos negócios, e tudo passa a ter uma nova vibração, tal como a voz doce que Samuel ouve, mas não consegue identificar, na cabeça do santo.6 - E aqui podemos dizer aos leitores que tudo isso cria uma narrativa vertiginosa e voraz. Com a marca do riso, um riso cômico dos resquícios do princípio do riso medieval, o riso pícaro, como falamos, faz com que não consigamos deixar a obra distante de nós. Os capítulos curtos e as cenas, que sempre levam a um novo e impactante acontecimento, fazem com que a leiamos praticamente de um salto só (o fizemos em um dia e meio, e só porque tínhamos outras tarefas). Em suma, é uma leitura da qual não conseguimos parar.7 - Mas esse ritmo alucinante e o riso não retiram da narrativa seu potencial crítico-reflexivo. A Cabeça do Santo, para além do espaço mágico e deste nas experiências humanas, pode abrir-se para interpretações que vão do mercado da fé à especulação imobiliária, ainda que, obviamente, sua principal questão esteja na suspeição: "No creo en las brujas, pero que las hay, las hay". Samuel é o vetor dessa ambiguidade entre o realismo e o mágico; descrente com as pessoas e com os santos, ele tenta uma postura cínica, mas, a bem da verdade, o tempo todo não consegue escapar da imagem do pobre-diabo.8 - Além disso, no romance, as teias que vão sendo tecidas e interligadas descortinam-se ao leitor como uma rede de encontros, desencontros e intrigas. Ocorre que a literatura, muitas vezes, é refém dessa necessidade de fazer sentido, de

O Blog Listas Literárias leu A Cabeça do Santo, de Socorro Acioli, publicado pela Companhia das Letras; neste post, as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, um grande exemplo do quão rico é o Realismo Mágico na literatura brasileira. Confira:
1 - Em um espaço despótico e autoritário como a América Latina, "herdeira" de séculos de colonização, com os povos sob o jugo do poder e da autoridade, o Realismo Mágico não apenas viceja ricamente, mas foi a forma encontrada pela literatura para dar conta do inexplicável e do absurdo de seu cotidiano. De tal modo que o gênero talvez seja o que melhor nos define e nos representa. Contudo, a identidade latino-americana, no caso do Brasil, sempre foi ambígua e contraditória, tanto que, nestas terras, sempre se citou certa preferência pelo Realismo em nossa ficção. Entretanto, o Realismo Mágico, o Real Maravilhoso, o Insólito e as diferentes gradações do fantástico sempre buscaram sua própria existência, vide um José J. Veiga, um Murilo Rubião, um Érico Veríssimo e, talvez mais recentemente, Ana Paula Maia. É nesse seleto time que podemos compreender a narrativa de Socorro Acioli.
2 - O romance, com ares de novela devido ao seu enxuto núcleo de personagens, é um dos ótimos exemplos da potência do Realismo Mágico em penetrar as diferentes camadas do que constitui o humano, tudo isso com a extrema brasilidade nordestina, tão influente na cultura brasileira. A obra narra a estória de Samuel, jovem que, com a morte da mãe, inicia uma peregrinação a fim de cumprir três promessas feitas a ela: acender velas aos pés de três santos, encontrar a avó e o pai na cidade quase morta de Candeia. Até chegar lá, com o único desejo de matar o pai - o demônio -, são dezesseis dias sob o sol escaldante do Ceará, que o tornam um farrapo de gente.
3 - Tratado como animal por uns, ele acaba parando dentro da cabeça de um Santo Antônio que, por um erro de construção, não pôde ser posta sobre o pescoço da estátua no alto do morro. A cabeça, que gerou uma verdadeira maldição sobre Candeia, cidade quase fantasma, mais do que abrigo ao farrapo de gente em que Samuel se tornou, acaba criando uma estranha conexão com ele, que passa a ouvir vozes de mulheres em suas preces ao santo e, assim, adentra de vez no Real Maravilhoso.
4 - Vale dizer que não é gratuita a escolha do gênero pela autora, cuja ideia de texto foi apresentada na tradicional oficina de Gabriel García Márquez, que teria adorado a proposta do livro. Ou seja, é uma obra que já nasce com a bênção do grande mestre do gênero, mas que evoca obras de tantos outros autores latino-americanos, de Ariano Suassuna a Juan Rulfo. Aliás, podemos estabelecer conexões interessantes com Pedro Páramo, especialmente nas relações com a morte, seja das gentes, seja do espaço social.
5 - Mas, certamente, o que dá o toque saboroso ao livro é a brasilidade. Essa brasilidade reside no picaresco - ou no malandro de Antônio Candido. Samuel e o jovem Francisco, com quem cria uma sociedade para aproveitar o novo "dom" e a capacidade de incentivar casamentos, a seu modo lembram um Chicó e um João Grilo, especialmente este. Cético e rebelde em relação aos santos que não teriam salvado a mãe, e com o projeto de matar o pai cada dia mais distante, os dois começam a mudar a cidade e tirá-la de seu processo de extinção. Com os "milagres" de Samuel se espalhando por todo o Ceará, pelas rádios, de boca em boca, Candeia revive. As casas abandonadas, com suas múmias, são tomadas por novas gentes e novos negócios, e tudo passa a ter uma nova vibração, tal como a voz doce que Samuel ouve, mas não consegue identificar, na cabeça do santo.
6 - E aqui podemos dizer aos leitores que tudo isso cria uma narrativa vertiginosa e voraz. Com a marca do riso, um riso cômico dos resquícios do princípio do riso medieval, o riso pícaro, como falamos, faz com que não consigamos deixar a obra distante de nós. Os capítulos curtos e as cenas, que sempre levam a um novo e impactante acontecimento, fazem com que a leiamos praticamente de um salto só (o fizemos em um dia e meio, e só porque tínhamos outras tarefas). Em suma, é uma leitura da qual não conseguimos parar.
7 - Mas esse ritmo alucinante e o riso não retiram da narrativa seu potencial crítico-reflexivo. A Cabeça do Santo, para além do espaço mágico e deste nas experiências humanas, pode abrir-se para interpretações que vão do mercado da fé à especulação imobiliária, ainda que, obviamente, sua principal questão esteja na suspeição: "No creo en las brujas, pero que las hay, las hay". Samuel é o vetor dessa ambiguidade entre o realismo e o mágico; descrente com as pessoas e com os santos, ele tenta uma postura cínica, mas, a bem da verdade, o tempo todo não consegue escapar da imagem do pobre-diabo.
8 - Além disso, no romance, as teias que vão sendo tecidas e interligadas descortinam-se ao leitor como uma rede de encontros, desencontros e intrigas. Ocorre que a literatura, muitas vezes, é refém dessa necessidade de fazer sentido, de conectar-se. Nesse caso, Acioli une as coisas com bastante maestria e, à medida que segredos vão sendo revelados (e, com eles, aumentam os perigos para Samuel), todos vão sendo amarrados em destinos que se entrelaçam.
9 - Aliás, tais entrelaçamentos são o que levam à última linha do romance e à capitulação de Samuel ao mágico - e à fé. São conexões não muito firmes, é bem verdade, mas sentimos, em parte da leitura, a emanação de um Fausto, pois o demônio e o diabo são mais que lembranças na narrativa. Ademais, temos a angústia e a solidão de Samuel, desejoso, em grande parte, de vingar-se do Diabo, pai de toda a sua ruína - não que tivesse os santos em maior conta. Além disso, o desfecho final, a consagração utópica do amor e símbolo da capitulação de Samuel à fé, remonta à salvação do eterno feminino, tão comum nas narrativas fáusticas. Talvez a lembrança seja porque o romance, com seu riso e picardia, adentre as gradações do mal - e do bem.
10 - Enfim, divertido e inteligente, A Cabeça do Santo é um livro que, quando pegamos, não conseguimos largar mais. Com personagens brasileiríssimos e todas as conexões que daí podem surgir, entrega-nos uma narrativa fantástica que faz jus ao encantamento de Gabo pela obra.