Gilberto Gil faz show poderoso em SP com som impecável, MC Hariel e coro de #SemAnistia
Como turnê de despedida, “Tempo Rei” é impecável. Som, luz e arranjos soam imponentes, mas não conseguem se sobrepor à Gilberto Gil, que transpira serenidade e paz

texto de Marcelo Costa
fotos de Fernando Yokota
Após passar por Salvador e Rio de Janeiro, a última turnê de Gilberto Gil, “Tempo Rei”, finalmente pousou no Allianz Parque, em São Paulo, para quatro datas (11, 12, 25 e 26 de abril – só há ingressos disponíveis para o dia 25). Ainda que não seja uma aposentadoria dos palcos – Gil afirma que quer diminuir o ritmo, mas não parar de fazer shows –, a turnê “Tempo Rei” soa, perceptivelmente, como um balanço de uma vida inteira dedicada à música, com blocos temáticos dedicados a várias fases de sua carreira, meio que servido de resumo de uma obra artística esplendorosa (o parceiro Nelson Oliveira decupou com atenção o set list base no show de abertura da turnê em Salvador, na Bahia).
De cara, chama a atenção a decoração do palco, com um enorme e belíssimo painel no formato de fita do Senhor do Bonfim ao centro, que irá exibir tanto trechos de letras durante a noite, como auxiliar nos diversos momentos iluminados da apresentação. A banda, com diversos membros da família Gil assumindo instrumentos, valorizou os arranjos preparados para a turnê, centrado nos metais e no quarteto de cordas, uma opção sempre funcional para grandes espaços abertos – ainda que aqui e ali tenham piscado o olho para o som Las Vegas que muita gente ouve nos shows do Roberto Carlos, sem soar tão kitsch quanto o Rei.
Seguindo o script da turnê, Gil abre a noite com “Palco”, e a qualidade do som, alta e nítida, impressiona (remete à da turnê “Encontro”, dos Titãs, também produzida pela 30e). Na sequência, com metaleira em destaque, uma bela versão de “Banda Um”. Já em ‘Tempo Rei”, metais e cordas deram um tom mais cafona para o arranjo, mas se tem uma letra de Gil que não traz nada de cafona é essa. Vinhetinha de “Aqui e Agora” e bora cair no forró com “Eu Só Quero Um Xodó”. Gil aproveita para apresentar Mestrinho na sanfona e Marlon Sete, que puxa “Eu Vim da Bahia” no trombone. Bonito arranjo com percussão, quarteto de cordas e metais.
Os clássicos “Procissão” e “Domingo no Parque” surgem em arranjos interessantes, mas inferiores às versões dos discos ao vivo dos anos 70, mais cruas e orgânicas (aliás, já ouviste o show de Gilberto Gil na USP em 1973? Ele, um violão e mais nada? É um assombro). Já “Cálice” tem sido um dos destaques deste começo de turnê, e não apenas pelo arranjo absolutamente arrepiante, de encher os olhos de lágrimas, mas também porque Chico Buarque surge no telão para relembrar da composição da canção em parceria com Gil, e contar do episódio ocorrido no festival Phono 73, em que militares desligaram o microfone dos dois durante a execução dessa canção para censurá-los. O estádio inteiro, então, irrompe num grito de #SEMANISTIA que encobre a voz de Chico (mas faz Gil sorrir). Que momento (vídeo ao final).
Com citação de “Batmacumba”, Gil apresenta “Back in Bahia”, com solo estridente de guitarra do neto João Gil. A neta Flor entra em cena em “Refazenda” (ficou bem melhor que a versão de “Garota de Ipanema” cantada na turnê anterior) e MC Hariel é o convidado surpresa cantando “A Dança”, dueto que lançou com Gil no ano passado, e que traz no refrão a citação da música “Minha Ideologia, Minha Religião”, que Gil lançou em 1985. Na sequência, o público reconhece “Não, Não Chore Mais” nos primeiros acordes, e canta junto de maneira emocional. Com Bem Gil no contrabaixo, a banda inicia o bloco anos 80 com “Extra” (um descanso para metais e cordas talvez fosse interessante aqui) e, em cadencia mais lenta, “Vamos Fugir” e “A Novidade” convidam o público a cantar, e a galera não desaponta.
“Realce” e “A Gente Precisa Ver o Luar” (com uma lua cheia deslumbrante sobre o estádio) seguem o script da emoção, rompido levemente com duas canções dispensáveis do set, “Punk da Periferia” e “Rock do Segurança”, um momento para ir ao banheiro e/ou comprar algo para beber (a propósito, uma lata de Estrella Galicia por R$ 18 desanima o consumo!). Gil, então, troca a guitarra pelo violão e parte para o momento mais intimista do set, com “Se Eu Quiser Falar com Deus”, “Drão” e “Estrela”, uma das mais cantadas de toda a noite. O show segue para o seu final em ritmo de festa e carnaval com “Esotérico”, “Expresso 2222”, “Andar com Fé”, “Emoriô” e “Aquele Abraço”. No bis, “Esperando na Janela”, com muitos casais arriscando o forró na pista, e “Toda Menina Baiana”.
Como turnê de despedida, “Tempo Rei” é impecável. Som, luz e arranjos soam imponentes, mas não conseguem se sobrepor à Gilberto Gil, que transpira serenidade e paz. Olhando sua grandiosidade e leveza no palco, fica fácil perceber por que o parceiro Caetano Veloso – que encerrou recentemente sua turnê com a irmã Maria Bethânia – sempre foi mais barulhento, provocador e causador: não tinha como jogar de igual pra igual mesmo. Era preciso simular faltas, cavar pênaltis, subir em cima da bola, porque Gil é futebol arte, daqueles discretos, elegantes, o que fez Caetano seguir o caminho inverso na construção de sua persona. Aos 82 anos e em forma (ele deu um sprint no começo do bis que poderia derrubar muitos quarentões), Gil se despede das turnês com um show bonito, emocionante e inesquecível.
Bora ver tudo de novo?
– Marcelo Costa (@screamyell) é editor do Scream & Yell e assina a Calmantes com Champagne.