30° Festival É Tudo Verdade: “Os Ruminantes”, “Quando o Brasil Era Moderno”, “Meus Fantasmas Armênios”
“Os Ruminantes” investiga história de um filme interrompido; “Quando o Brasil Era Moderno” discute “um projeto de nação abandonado”; “Meus Fantasmas Armênios” é sensível e cortante.

texto de Leandro Luz
“Os Ruminantes”, de Tarsila Araújo e Marcelo Cordeiro de Mello (2025)
A chegada de um grupo de homens e a invasão de dezenas de cães e de bois na pacata cidade de Manarairema altera a rotina dos moradores locais e coloca em evidência a imprevisibilidade da vida. Esta é a sinopse de “A Hora dos Ruminantes”, obra literária de José J. Veiga publicada em 1966 que fez a cabeça de Jean-Claude Bernardet e Luiz Sérgio Person no início dos anos 1970. Juntos, Bernardet e Person repetem a parceria bem sucedida em “O Caso dos Irmãos Naves” (Luiz Sérgio Person, 1967) e, amparados pelo produtor Mario Civelli, começam a trabalhar em uma adaptação para o cinema que jamais pôde ver a luz do dia. No documentário “Os Ruminantes” (2025), Tarsila Araújo e Marcelo Cordeiro de Mello investigam esta curiosa história de apagamentos e frustrações, guiados sobretudo pelo depoimento de Jean-Claude Bernardet, responsável por contar, nos mínimos detalhes, desde o acaso da aquisição do romance em uma livraria de rua em São Paulo até as confusões envolvendo o set de um filme interrompido. A presença de Person no documentário se dá pelo resgate de uma entrevista concedida por ele à TV Cultura pouco antes de morrer, em janeiro de 1976. E, indiretamente, pelas entrevistas concedidas por sua filha e cineasta, Marina Person, cujo documentário intitulado “Person”, lançado em 2007, já tinha colocado um holofote importante em torno da obra do pai. O principal apelo de “Os Ruminantes” é também a sua principal dificuldade: mostrar para o público a importância de um projeto nunca finalizado e dar conta, imageticamente, de como ele poderia ter sido. Fica evidente o quanto os diretores são desafiados para encontrar um filme a partir dessa história, muito em função da dificuldade inerente de se ilustrar um filme não realizado. Tentação esta, aliás, que soa um pouco subaproveitada justamente porque o filme se apropria de obras importantes do cinema brasileiro dos anos 1960 – obras dirigidas pelo próprio Person e, de forma geral, filmes de realizadores tipicamente associados ao cinema novo – de maneira rasa, valorizando mais uma ideia de ilustração do que propriamente garantindo que as imagens e os sons respirem por si só. Uma das discussões mais interessantes do filme acaba sendo a maneira como Bernardet e Person se interessavam pelo seu público e buscavam um diálogo franco e aberto com os seus filmes, postura na qual, segundo eles próprios, fora imperdoavelmente negligenciada pelos cinemanovistas.
“Quando o Brasil Era Moderno”, de Fabiano Maciel (2025)
De acordo com o próprio diretor, Fabiano Maciel, o documentário “Quando o Brasil Era Moderno” foi concebido para tratar a respeito da arquitetura ao longo do século XX e da importância do estilo moderno para a construção de uma paisagem (e de uma identidade) brasileira neste período. No entanto, em função das filmagens terem começado justamente durante as eleições de 2018, Maciel percebeu a força de se discutir, segundo ele, “um projeto de nação abandonado”. Fica evidente, assistindo ao filme, o quanto esta mudança fez bem ao projeto, ainda que tenham perdurado os problemas implicados pelo didatismo da ideia original. Para qualquer pessoa que tenha se dedicado minimamente a estudar história do Brasil, arquitetura ou história da arte, não é novidade a maneira como a arquitetura moderna foi uma revolução e influenciou arquitetos do mundo inteiro. No Brasil, o drama foi intenso: escolher um estilo arquitetônico também significou escolher um caminho de país, portanto, uma ação que gerou disputas, rixas e bafafás monumentais por décadas. Um exemplo interessante, no qual o filme retrata com riqueza de detalhes, foi a construção da sede do Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro (hoje mais conhecido como Edifício Gustavo Capanema, situado na Rua da Imprensa, número 16, no coração da cidade). Getúlio Vargas, então presidente do Brasil, dedicado a modernizar o país e a fortalecer o Estado centralizado, permitiu que se fizesse um concurso para escolher um projeto para a construção do Ministério. Com um júri conservador e academicista, o arquiteto Archimedes Memoria acabou saindo vencedor, para desespero do ministro Gustavo Capanema que, apesar de ter legitimado a vitória de Memoria, inclusive pagando-lhe o prêmio do concurso, terminou por interditar a escolha e chamar o então ex-diretor da Escola Nacional de Belas Artes, o arquiteto Lucio Costa, para compor uma nova equipe e desenvolver um projeto inclinado à ideia de modernidade. Na turma de Costa estavam personagens importantes como Carlos Leão, Ernani Vasconcellos, Affonso Eduardo Reidy, Roberto Burle Marx e um jovem Oscar Niemeyer, então estagiário. A influência das ideias de Le Corbusier sobre a arquitetura brasileira teve seu auge com a discussão em torno do projeto de construção de Brasília, durante toda a segunda metade dos anos 1950. Entre fatos históricos inquestionavelmente relevantes, o filme se priva de discutir pontos de vista importantes a respeito da arquitetura modernista, se concentrando mais em uma rixa histórica do que em problemas urbanísticos reais que reverberam até os dias de hoje.
“Meus Fantasmas Armênios / Mes Fantômes Arméniens”, de Tamara Stepanyan (2025)
Em “Meus Fantasmas Armênios” (2025), Tamara Stepanyan opta por uma abordagem que está relativamente em alta no cinema documentário contemporâneo: mesclar uma história pessoal ou familiar com eventos históricos de um determinado lugar ou país, sejam eles ligados ao universo do cinema ou não. “The Lost Notebook” (“Den Tabte Notesbog”, Ida Marie Gedbjerg Sørensen, 2024), que revela a história de uma família fissurada em cinema, cujo patriarca manteve um caderno com as anotações de todos os filmes que viu na vida, ao passo que passeia pela história do cinema húngaro; “Witches” (Elizabeth Sankey, 2024), sobre a maneira como a diretora enfrentou a maternidade e, ao mesmo tempo, como a história do cinema lidou com a ideia do feminino em circunstâncias “mágicas”; “Retratos Fantasmas” (Kleber Mendonça Filho, 2024), um mergulho na história das salas de cinema de rua de Recife em paralelo com uma investigação da própria vida e trajetória profissional do cineasta; todos esses três filmes são exemplos interessantes de como um relato pessoal pode ecoar interesses universais. Aqui, Stepanyan escolhe abraçar a história de seu pai, ator de cinema durante o auge da produção cinematográfica da Armênia Soviética, e de seus avós, profissionais especializados em dublagem e funcionários do principal estúdio de cinema do país, o Armenfilm (ou Hayfilm, como é mais conhecido), enquanto mostra, ainda que sem grandes pretensões lineares de se fazer um trabalho historiográfico, momentos fascinantes do passado do cinema armênio. A diretora revela de forma contundente os problemas sociopolíticos enfrentados pelo seu povo desde o início do século XX, passando pelo genocídio cometido durante a invasão turca, o domínio soviético sobre o país e o período confuso após a morte de Stalin. Nesse mesmo fluxo, o filme traça um paralelo de todos esses eventos caóticos com imagens sublimes de filmes armênios que, à exceção de “A Cor da Romã” (“Sayat Nova”, 1969) e de demais filmes dirigidos por Sergei Parajanov, são pouquíssimo conhecidos fora da Armênia. Com uma montagem que valoriza tanto a narração subjetiva da cineasta quanto a presença reluzente das imagens do arquivo cinematográfico da Armênia, “Meus Fantasmas Armênios” é, portanto, um tratado sensível e cortante sobre um país e um convite aos mistérios e às belezas de um cinema praticamente incógnito.
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– Leandro Luz (@leandro_luz) pesquisa e escreve sobre cinema. Coordena a área de audiovisual do Sesc RJ, atuando na curadoria, programação e gestão de projetos em todo o estado do Rio de Janeiro. Exerce atividades de crítica no Scream & Yell e nos podcasts Tudo É Brasil, Plano-Sequência e 1 disco, 1 filme.