Esse você precisa ver: “DIG!” é um artefato do fim da era dos rockstars – e da música – como os conhecíamos
“DIG! XX”, a nova versão não apenas remasteriza as filmagens vistas no longa original, como também adiciona cerca de 45 minutos de novos registros de época.

texto de Davi Caro
Quando a cineasta Ondi Timoner iniciou as filmagens que originariam seu primeiro trabalho, em 1996, sua intenção era documentar o surgimento do que se anunciava como uma pretensa “nova cena” que se formava após o estouro da bolha grunge. Centrando foco em duas bandas, The Brian Jonestown Massacre (originária de São Francisco) e The Dandy Warhols (que iniciaram suas atividades em Portland), a intenção da diretora era capturar um mundo de possibilidades que, se acreditava então, abriria portas para grupos que bebiam na fonte revisionista da neo-psicodelia, como era o caso dos dois grupos. Seu documentário, além de gerar atenção e entusiasmo junto aos novos nomes, poderia ser capaz de expor as idiossincrasias de uma indústria fonográfica na qual o dinheiro ainda corria solto.
A recepção que o longa, já finalizado e batizado como “DIG!” teve, oito anos e mais de 2500 horas de filmagens depois, foi talvez muito maior do que se esperaria. Ou pelo menos muito diferente: afinal, o mundo já não era mais o mesmo em 2004, quando o doc recebeu um lançamento limitado em cinemas dos EUA, e, mais tarde, foi lançado em DVD. Muito longe de servir como testemunho de uma nova onda – que seria suplantada pelos “neo-garagismos” de Nova York na virada do milênio – “DIG!” terminou alcançando uma reputação cult que corroborava a boa recepção tida em suas exibições cinematográficas. Ao não poupar esforços e apresentar uma narrativa crua, documentada através de um longo período, Timoner e seu irmão, David, registraram de maneira contundente as trajetórias de conjuntos completamente diferentes entre si. E, no processo, detalha de maneira cândida, hilária e chocante tanto a deterioração de uma relação de companheirismo e camaradagem artística transformada em competição tóxica, quanto os (muitos) excessos que acompanham a vida de pessoas dispostas a adotar o estilo de vida rockstar que sonham para si (ainda que a realidade esteja muito distante disso).
Tanto os membros do The Dandy Warhols quanto os integrantes do The Brian Jonestown Massacre (e principalmente suas figuras centrais – o vocalista e guitarrista Courtney Taylor-Taylor e o cantor e multiinstrumentista Anton Newcombe) são apresentados como figuras tão excêntricas quanto problemáticas, ainda que no primeiro caso a vida na estrada seja mostrada como relativamente menos turbulenta do que a segunda. Já no início, o espectador é capaz de testemunhar em primeira mão o entusiasmo do frontman do Brian Jonestown Massacre ao falar sobre a “revolução” que, de alguma forma, parece arquitetar: a atitude de Newcombe, a princípio, é de empolgação ao visualizar a mudança cultural que pretendia junto aos co-geracionais dos Warhols. Ao mesmo tempo, Taylor-Taylor fala sobre Anton com reverência, ainda que se mostre mais reticente.
Os motivos logo ficam claros; embora a convivência dos Dandy Warhols estivesse longe de ser a mais funcional, o clima em meio aos membros do grupo de Newcombe é simplesmente caótica. Em meio a longas e inconclusivas jams usando cítaras, conceitos mirabolantes para o trabalho que lançariam em seu novo contrato com a TVT Records, brigas homéricas físicas e verbais dentro e fora dos palcos (muitas vezes envolvendo o segundo membro central do BJM, o percussionista Joel Gion), e passagens gráficas retratando o consumo de cocaína por parte dos músicos – especialmente do vocalista, gradativamente mais intratável – a relação entre Anton e seus companheiros é como uma bomba relógio sem temporizador, onde a indefinição do momento da detonação apenas agrava o clima reinante de desordem.
Apesar de acertar em centrar o foco dramático nos integrantes do grupo de São Francisco, o filme de Timoner alicerça o desenvolvimento da narrativa no sucesso massivo (para os padrões independentes) do Dandy Warhols, que assinam com a major Capitol Records e são encarados como uma promessa comercial, ao passo que seus colegas tem shows interrompidos e atividades marcadas por eventuais hiatos e até prisões. Isso alimenta em Newcombe o sentimento de competição e mesmo de animosidade, o que leva a um distanciamento permanente entre as bandas, mesmo que esta animosidade seja praticamente unilateral: em determinados momentos, tanto Courtney quanto a tecladista Zia McCabe (que se mostra a pessoa mais sensata do grupo na maioria das vezes) demonstram dificuldade em entender a origem e o motivo da repentina inimizade, sedimentada em um deslocamento ideológico que os colocava em um plano mais “moderno” que os ideais setentistas defendidos por Anton e companhia.
Um ponto impossível de ignorar ao assistir “DIG!” é uma espécie de protagonismo atrelado ao vocalista dos Warhols. Taylor-Taylor funciona, de fato, como um narrador dos acontecimentos, detalhando com franqueza tanto os percalços enfrentados por ele mesmo e pelos colegas quanto as atribulações com as quais Newcombe e companhia se deparam. Pondo em perspectiva, trata-se do único membro de quaisquer banda a ser agraciado com este benefício (até agora, como falaremos adiante). As participações mais, digamos, “convencionais” em documentários partem de executivos e membros de gravadoras, jornalistas, e mesmo fãs e ouvintes. Embora essencial para a experiência de acompanhar o filme, a narração de Taylor-Taylor pode ser interpretada como um privilégio de parcialidade, quase unidimensional.
Entretanto, o grande trunfo em “DIG!” não poderia ser outro que não o musical. A narrativa abordada pelo documentário se inicia justamente em 1996, o ano mais prolífico da carreira do BJM até então (no qual o grupo lançou os álbuns “Take It From the Man!”, “Their Satanic Majesty’s Second Request” – em uma referência explícita e irresistível aos Rolling Stones – e “Thank God For Mental Illness”, todos pela indie Bomp! Records) e captura o processo de composição e registro do vasto e visceral “Strung Out In Heaven”, seu primeiro e único a chegar ao público sob a já citada TVT. Em comparação, o ritmo de trabalho dos Dandy Warhols não chega sequer perto de ser tão prolífico ou ambicioso, mas ganha pontos por sua consistência (ou segurança). Após dois álbuns noventistas bons, embora comercialmente inexpressivos, o quarteto é exibido finalmente sendo capaz de colher os louros da fama graças ao sucesso de “Bohemian Like You”, principal single de “Thirteen Tales From Suburban Bohemia” (2001), o segundo a ser lançado pela poderosa Capitol. O estilo de vida boêmio alardeado nos títulos do disco e da faixa de trabalho, porém, é muito mais estético do que essencial; além de servir como um presságio do volátil apelo pop dos Warhols (que seriam dispensados pela gravadora em 2008), esta constatação acaba por fazer do antagonismo entre os dois grupos, em suas incompatibilidades artísticas e pessoais, uma inevitabilidade muito maior do que o acaso.
Este mesmo acaso terminou fazendo de “DIG!” um fenômeno maior do que qualquer banda poderia imaginar, com algumas das passagens mais tensas do longa se transformando em momentos icônicos e facilmente referenciáveis (destaque para muitas das frases proferidas por Newcombe, como “Eu nunca faço nada de errado, por isso nunca peço desculpas”, ou “Porra, você quebrou minha cítara, filho da puta!”; ou o comentário certeiro de uma jornalista que menciona que “a maioria das bandas abusa das drogas depois de serem bem sucedidas, e não antes”). Gerações inteiras de novas bandas – muitas das quais iniciaram seus trabalhos apenas após o lançamento do filme, e também da solidificação dos legados de ambas bandas – passaram a ver e entender o documentário de Timoner como um testemunho de uma antiga realidade em ruínas, onde a ambição e um certo tom de arrogância deixaram de ser artigos de raridade para serem pré-requisitos em um novo mundo mais reativo e cheio de pudores, para o bem, ou para o mal.
É justamente a reputação conquistada pelo filme que justificou seu relançamento, já em 2025. Batizada “DIG! XX”, a nova versão não apenas remasteriza as filmagens vistas no longa original, como também adiciona cerca de 45 minutos de novos registros de época. Além do conteúdo adicional, o novo relançamento também possui um grande diferencial: além da narração original de Taylor-Taylor, o trabalho agora também conta com novas faixas de áudio gravadas por Joel Gion, que procuram aclarar muitas das questões abertas pela visão original de Ondi e seu irmão. Se, por um lado, a nova versão realmente expande o universo de caos e combustão espontânea que rodeava os dois grupos, a quase hora a mais de conteúdo arrisca fazer com que a produção sucumba justamente à celebração do excesso outrora retratado com honestidade e franqueza (a introdução à nova versão de “DIG!” em suas exibições cinematográficas nos EUA, aliás, vem como cortesia de Dave Grohl, por si só um embaixador do rock menos como uma ideologia e mais como um conceito estético repleto de ditames e limitações). Só mais um motivo para se ater ao material original: excesso, por si só, é um elemento central na trama e no legado de “DIG!” – melhor procurar evitar que o mesmo se transformar em sua maior fraqueza.
– Davi Caro é professor, tradutor, músico, escritor e estudante de Jornalismo. Leia mais textos dele aqui.