Entrevista: Ema Stoned costura devaneios sonoros no clipe de “Curva do Sonho”
Elke Lamers e Ale Duarte falam sobre os bastidores do clipe de “Curva do Sonho” e compartilharam suas reflexões sobre a cena independente e a relação da banda com o ativismo e a arte

entrevista de Alexandre Lopes
Ema Stoned é uma banda instrumental que se move com a mesma fluidez e liberdade dos devaneios que a inspiram. Seu mais recente trabalho, o clipe de “Curva do Sonho”, é uma espiada sensorial que dialoga diretamente com a filosofia de Ailton Krenak, levando o público a atravessar um labirinto visual de sonhos e transcendência. A música faz parte de “Devaneio” (2023), quarto registro do grupo e o primeiro de estúdio com a atual formação: Ale Duarte (guitarra), Elke Lamers (baixo) e Theo Charbel (bateria).
Desde sua formação em 2011, a Ema Stoned tem trilhado seu caminho no rock experimental, sempre desafiando rótulos e criando horizontes sonoros complexos. Com sua estreia em “Gema” (2013) até “Devaneio”, a banda passou por mudanças de integrantes e uma transição de um formato com vocais para o instrumental, evoluindo com lançamentos como “Live From Aurora” (2016) e “Phenomena” (2019), que contou com a participação de Makoto Kawabata, do Acid Mothers Temple, e Yantra. O clipe de “Curva do Sonho” reflete essa evolução contínua, mostrando a busca da banda por novas formas de expressão.
Gravado no espaço criativo El Galpón, no Bixiga, o clipe mistura colagens visuais e imagens da própria banda, imergindo em um universo onírico que ressoa com a estética do álbum. A ideia central é traduzir a espiral sonora da música, conectando-a aos conceitos de memória e esquecimento. Elke Lamers, responsável pela direção, explora a relação entre a repetição musical e as imagens que evocam o sonho, utilizando elementos como caleidoscópios e monóculos fotográficos para construir um mundo de múltiplas perspectivas.
O processo criativo da Ema Stoned, tanto no clipe quanto no álbum, reflete a busca constante por liberdade e autenticidade. Para elas, a música não é uma expressão rígida e formatada, mas uma forma de permitir que os sons sigam o rumo que as integrantes sentem ser mais genuíno. Como Elke destaca, a banda não tinha a intenção de criar uma obra musical temática e confessional: “Queria dizer que fizemos um disco conceitual, mas não é bem assim. Talvez esse disco diga muito sobre a gente, mas não necessariamente ele é a gente dizendo algo conscientemente formatado para o mundo (e isso pode dizer algo também)”.
Além da busca artística, a Ema Stoned tem se envolvido ativamente com questões sociais e culturais. Para as integrantes, o grupo representa um reflexo das inquietações com o mundo ao seu redor e, como elas próprias afirmam, “ser uma banda instrumental composta por mulheres segue sendo um ato político em si”. O trio se dedica não apenas a expandir seu universo sonoro, mas também a incentivar a participação ativa de comunidades em processos criativos e educativos, ampliando o impacto de sua arte para além dos palcos.
Em entrevista por e-mail ao Scream & Yell, Elke Lamers e Ale Duarte falaram sobre os bastidores do clipe de “Curva do Sonho” (e garantiram que nenhuma borboleta foi maltratada durante o processo), compartilharam suas reflexões sobre a cena independente, a relação da banda com o ativismo e a arte, e a busca por um som livre, sem amarras. Confira o papo abaixo.
Parece que a inspiração do clipe vem de Ailton Krenak, que fala sobre a transcendência do sonho. Considerando que o nome do disco é “Devaneio”, vocês diriam que a influência dele se estende não apenas a “Curva do Sonho”, mas ao álbum inteiro?
Elke: A inspiração do clipe não veio do Krenak, mas alguns conceitos que ele traz estão em diálogo com o que pensamos para o clipe, e o álbum. Por exemplo, caiu como uma luva o que Krenak fala sobre a necessidade de retornar ao onírico, prestar atenção na natureza, olhar para dentro de si, deixar vazar o sonho. Acordar, no sentido mais seco, é tão medíocre às vezes… e dá pra enxergar tudo de tantas formas, e acho que quisemos sintonizar algo um pouco mais onírico, um pouco de outras paisagens. Talvez a música sem letra já tenha algo assim também, acho que o instrumental cava um espaço pra mente de quem ouve tagarelar. Queria dizer que fizemos um disco conceitual, mas não é bem assim. Talvez esse disco diga muito sobre a gente, mas não necessariamente ele é a gente dizendo algo conscientemente formatado para o mundo (e isso pode dizer algo também). A ideia do Ailton Krenak traduz o mundo. Logo ela cabe no disco “Devaneio”, traduz o que precisamos, tentamos fazer. A Nise da Silveira fala da busca pelo equilíbrio na arte. Ali tentamos encontrar algum, é o nosso rabisco. Não é necessariamente algo transcendental.
Como foi o processo de criar o clipe de “Curva do Sonho” e mais ou menos quanto tempo demorou para ser feito?
Elke: Uma versão do clipe de “Curva do Sonho” existia, sem imagens da banda, há mais de um ano, mas decidimos que deveríamos estar presentes nesses cenários. Até porque, pensando no universo dos sonhos, eu encontrava a banda também. E coisas aconteciam, missões, funções… passagens de som com livros, instrumentos com asas de insetos, labirintos, galerias etc. Esses sonhos foram fundidos com outros.
As imagens, em sua maioria, são de eventos reais, mas que tinham a ver com episódios vividos em sonhos. Em novembro, gravamos algumas imagens num lugar que tinha muito a ver com esse cenário onírico, El Galpón, espaço de criação e experimentação, do Hache Ortiz, localizado no Bixiga, em São Paulo, sede do Sucata Quântica, que também junta fragmentos do mundo e reconstrói e cria a partir disso. Tivemos a ajuda especial do Hache e do Sol Caderón nos registros.
Nos sonhos estamos à procura de alguma coisa. Às vezes encontramos coisas preciosas e temos que fazer um esforço ao acordar para não perder os fragmentos que restam, assim como quando tocamos e criamos algo que não queremos esquecer. Pensei no círculo, na música “Curva do Sonho” que é repetitiva como uma espiral, num olho mágico, nas recorrências. Eu sonhava muito com a banda, indo tocar, carregando instrumentos, cabos faltando, pedal sem baixo, “cadê a banda?”, etc, então não devo estar só (risos)
“Devaneio” é o quarto disco cheio da Ema Stoned e o primeiro de estúdio com a formação atual, que já toca junta desde 2019. Como a banda enxerga a evolução da sua identidade sonora, do início até “Devaneio”? Quais foram as principais mudanças que a banda buscou neste trabalho mais recente?
Elke: A banda buscou dar voz (o que pode soar irônico [porque trata-se de uma banda instrumental]) às ideias possíveis, sem se preocupar muito com como gostaria de soar. Acho que a busca é seguir o som e tocar, especialmente, para a música. Acho que temos em comum sons que nos cativam, algumas influências que se cruzam, e a sonoridade vai se transformar no que todas sentirem que cabe.
Ale: Ao longo dos anos acho que temos ganhado mais intimidade com nossos instrumentos e também o desprendimento para poder trazer instrumentos e barulhos novos que não necessariamente sabemos tocar. Acho que largamos mão da ideia de “maestria” de um instrumento, nos interessando cada vez mais pelas possibilidades de sons que um instrumento, um efeito, uma maneira de tocar ou um barulho podem trazer.
Como é o processo criativo do grupo? Como as integrantes equilibram as diferentes influências e visões de cada uma na construção do som da banda?
Elke: O equilíbrio acontece no encontro. Criamos temas que levamos umas pra outras, alguns nascem espontaneamente em ensaios, e outros são resgatados de registros sonoros de encontros longínquos (sempre que reescutamos uma gravação surge um detalhe novo, um tema).
Ale: O som da banda é construído coletivamente e acho que ele só acontece porque nos encontros qualquer som é permitido, ninguém vai falar “não” para algo que alguém trouxer, mesmo se não for do gosto de todas. A ideia é acolher ideias e sugestões, e nos encontros essas ideias naturalmente tomam forma e vão para frente, ou não.
Além da filosofia de Ailton Krenak no novo clipe, vocês diriam que a Ema Stoned se envolve em questões sociais e culturais? Qual é a relação da banda com a arte e o ativismo?
Elke: Acho que todas na banda tem uma sensibilidade e respeito para e com seres não-humanos, Krenak também fala um pouco sobre isso. A Alê também atua como arte-educadora, tem um projeto independente de artes para crianças no seu ateliê além de realizar oficinas em escolas e espaços públicos. Já trabalhou no Piá (Programa de Iniciação Artística), que é um projeto lindo que promove gratuitamente experimentações em diversas linguagens artísticas para crianças e adolescentes, atuando de forma descentralizada em espaços públicos das Secretarias Municipais de Cultura e de Educação. Essas ações acontecem em equipamentos culturais e espaços públicos na cidade, articuladas a ações locais, levando arte e envolvendo a comunidade e seu entorno. Dentro do ativismo, ser uma banda instrumental composta por mulheres segue sendo um ato político em si.
De onde saiu o rótulo “rock digressivo”, que já foi utilizado para descrever o som da banda?
Elke: Rock digressivo foi um comentário de outro artista sobre a banda, depois de ver um show. Mas sentimos que caiu como uma luva. Acho que o termo digressivo nos serviu, assim como outras influências serviram.
Ale: O termo também vem um pouco como uma continuidade e, ao mesmo tempo, contrapartida ao termo “rock progressivo”, que por vezes é usado para descrever o nosso som. Em alguns lugares temos influência desse som, por ter escutado ele, mas é um tipo de som caracteristicamente feito mais por homens cis, que carrega essa ideia de “progresso” no nome, que também é questionada por Krenak. O digressivo se aproxima mais ao “Devaneio”, no desprendimento do controle e na abertura para novas descobertas e visões sobre si mesmo e o mundo.
“Devaneio” é um disco cheio com nove faixas, mas o que determina o tipo de formato que vocês lançam as músicas? As composições em si e como elas se encaixam e vão surgindo ou vocês decidem deliberadamente “desta vez vamos fazer um EP ou um disco”?
Elke: O que determina é o tempo que temos pra registrar o que fazemos. “Devaneio”, por exemplo, levou tempo pra ganhar forma, mas existia já há muito, tinha músicas de diferentes épocas que ainda não haviam sido gravadas… Colocadas juntas pareciam que elas tinham a possibilidade de contar uma história.
Ale: Ao mesmo tempo também havia rascunhos, ou tentativas de outras músicas mas que não foram finalizadas, ou ficaram de fora. É meio que um processo natural, tem músicas que surgem e se “resolvem” facilmente e outras que parecem que ficam em suspensão por um tempo indeterminado.
A Ema Stoned surgiu com o primeiro disco em 2013 e quando passou a ser uma banda instrumental, pegou um certo boom dessa vertente, mas parece que essa cena não está mais tão aquecida. Por exemplo, o festival Produto Instrumental Bruto (que durou 11 anos em São Paulo e teve sua última edição em 2018) não existe mais. Como vocês enxergam isso? Acham que a cena instrumental brasileira é renegada ou é apenas mais um reflexo da situação da cena independente em geral?
Elke: A Ema começou no final de 2011, ou início de 2012. Nosso primeiro show foi em junho de 2012, e o primeiro lançamento, Gema, no final de 2013.
Ale: Acho que o instrumental segue firme em outros gêneros como o jazz, música clássica etc. Acho que está mais renegado na cena independente mesmo, que está passando por uma situação difícil em geral.
Elke: Ainda assim, existem festivais voltados para esse “gênero” instrumental, como o BR135, em São Luís, o Sonido em Belém, o Música Livre, em Araraquara, nos quais tivemos o prazer de tocar nesses últimos anos. São iniciativas interessantes justamente por ser um gênero que não é bem um gênero, então a programação é sempre muito diversa.
Por fim, quais os próximos passos e shows da Ema Stoned? O que a banda gostaria de alcançar com sua música nos próximos anos? Existem mais datas de shows agendados?
Elke: Vamos seguir tocando e compondo.
Ale: E estamos desenvolvendo alguns projetos de sonorização de imagens em movimento, buscando resgatar o diálogo entre música e artes visuais que estava mais presente no início da banda.
Elke: Sobre datas, estaremos no dia 24 de abril, no Sesc Paulista, para um projeto bem especial, e estamos planejando uma tour no sul, em breve.
– Alexandre Lopes (@ociocretino) é jornalista e assina o www.ociocretino.blogspot.com.br. A foto que abre o texto é de Sueelie Andrade