Capicua: “Tento sempre tocar nas feridas para chamar a atenção”
A rapper do Porto vai apresentar esta quinta-feira, 20 de Março, o seu quarto disco, ‘Um Gelado Antes do Fim do Mundo’, no Teatro Tivoli BBVA.


Muita coisa mudou no mundo e na vida de Capicua, nome artístico da rapper Ana Fernandes, desde que lançou Madrepérola, em Janeiro de 2020. Teve um filho, vivemos uma pandemia, ganhou o Prémio José Afonso, Donald Trump voltou ao poder, brotaram novas guerras... É um estranho mundo aquele em que estamos a viver, mas merece ser registado. No novo trabalho, Um Gelado Antes do Fim do Mundo, editado a 21 de Março, a artista do Porto traça diversos retratos sobre os nossos tempos, abordando tópicos que vão desde o entorpecimento provocado pelas redes sociais ou os desafios da maternidade.
Falámos com a autora de "Vayorken" e "Maria Capaz" sobre a criação deste novo registo, que vai ser apresentado ao vivo no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, 20 de Março, e no Porto, dia 27, na Casa da Música – Sala Suggia. Depois, volta a Lisboa com o seu braço direito, Luís Montenegro, para apresentar a masterclass Três Tempos na Culturgest, a 12 de Abril, sobre processos de escrita e de composição, na companhia de jovens entre os 15 e os 18 anos.
Quando é que surgiu a ideia e a vontade de começar a gravar este álbum, Um Gelado Antes do Fim do Mundo?
Foi quando participei no ciclo de concertos Conta-me uma Canção, no início do ano passado. Fiz um concerto partilhado com o Sérgio Godinho e tinha de fazer uma versão de uma canção dele. Acabei por fazer a versão de "Que Força É Essa", mas com o título "Que Força É Essa, Amiga" – em parceria com o Luís Montenegro, que foi o músico que me acompanhou e que já faz parte da minha banda há muito tempo. Depois dessa versão, fiquei com vontade de continuar a experimentar e a colaborar com o Luís, mudando um bocadinho o meu processo de composição para não só começar a compor com alguns instrumentos tradicionais – como a guitarra e o piano – mas também para sair do processo habitual da lógica da música electrónica, que era o mais frequente nos meus discos anteriores, onde tudo começava sempre a partir do beat.
Foi um processo muito diferente do habitual?
Experimentei vários caminhos diferentes com o Luís, por exemplo, ao nível da composição, e ficámos entusiasmados. Comecei a trabalhar nas canções novas e foi um ano intenso de criação. Pude seguir um caminho mais experimental: às vezes começava com um beat e desmontava-o quase até à sample original para depois o reconstruir de outra forma; outras vezes começava com uma ideia de uma melodia ou de um poema que levava para as salas de ensaio, e o Luís começava a experimentar instrumentais. Como ele domina tanto linguagens da música electrónica como também de instrumentos mais tradicionais, isso facilitava-me esta mudança de método de trabalho. Foi dessa primeira experiência com "Que Força É Essa, Amiga" que todo o processo foi avançando.
Ao ouvir o disco, sinto que transmite uma sensação quase apocalíptica. Isto acontece porque partilhas um olhar muito satírico sobre a sociedade e os seus hábitos supérfluos, que revelam estarmos a caminhar para um caminho problemático. Porque é que escolheste usar a imagem do gelado na capa e no título para ilustrar esta ideia?
Era algo que já andava a pairar na minha cabeça há bastante tempo. Esta frase retrata bem o disco porque, de facto, ele é sobre os temas, questões e problemas complexos do nosso tempo. Existe uma sensação de fim do mundo que paira no ar com a questão das alterações climáticas, dos exacerbados conflitos no mundo, do crescimento da extrema-direita e da polarização do debate público. Há uma tensão que surge também pelas nossas posições nas redes sociais, que criam e acentuam uma ansiedade existencial.
Mas o álbum é mais do que esta ideia.
Queria fazer um disco que – apesar de falar sobre estes temas sérios e complexos – também tivesse um lado esperançoso e que cultivasse uma ideia de renovação dos votos com o efeito que a música, a arte e a natureza nos provocam. Servir como um antídoto para a tendência de estarmos adormecidos num scroll infinito e na dopamina rápida. Acho mesmo que o encantamento pode ser o contrário do adormecimento. Por isso, quis criar um disco que tivesse um lado poético e esperançoso. A ideia do gelado surge como se tivéssemos uma pausa antes do fim do mundo. Por um lado, para olhar em redor e perceber o que se passa, mas também para cultivarmos a esperança e tudo aquilo que nos recarrega as baterias para a luta e para conseguirmos resolver os desafios que temos em mãos.
Cantaste muito sobre esta ideia da apatia das pessoas. Um tópico que surge logo na primeira música, "Chiaroscuro". Falas sobre fazer praia na Portela, de comer uma tosta de abacate com ovo, os dados móveis ilimitados... Imagino-te a fazer scroll nas redes sociais e a tirar notas para escrever esta música.
Sim, essa canção fala um bocadinho da montanha-russa dos vídeos a que estamos expostos no nosso scroll infinito. Aqui, estão presentes as coisas mais díspares e antagónicas. Desde aquelas que são mais superficiais, fúteis e consumistas, até aquelas que são mais revoltantes, escabrosas e preocupantes. No mesmo feed, temos vídeos de gatinhos fofos e o genocídio na Palestina. Temos a rotina de skincare de uma influencer e, a seguir, uma imagem de uma catástrofe ambiental. Fica a sensação de que todas estas partilhas têm o mesmo grau de importância. Isto é de tal forma banalizante que já não nos conseguimos emocionar ou impactar com quase nada. Perdemos a capacidade de sentir empatia porque há uma rotação infinita de imagens e estímulos que nos deixa adormecidos. Isto impacta não só a nossa saúde mental, mas também as democracias. É um tema que não podia faltar no espírito da nossa época.
Nesta música, além de falares sobre estes problemas da sociedade, também fazes uma referência ao universo do hip-hop, quando falas do beef entre o Kendrick Lamar e o Drake.
Sim, é mais um assunto. É um fait divers do dia-a-dia. As pessoas estão todas muito excitadas com o beef do Kendrick e do Drake quando estão a acontecer coisas muito graves e ninguém se interessa. É esse contraste. Daí a música se chamar "Chiaroscuro" [palavra italiana para “luz e sombra”]. De repente, as pessoas estão ali distraídas, tanto podia ser a Eurovisão, a MET Gala... em vez de estarem atentas a problemas do mundo real.
Neste caso em específico, o Kendrick é alguém que tem músicas que são muito atentas à sociedade e que abordam problemas importantes, mas, de repente, está a fazer músicas que chegam quase a roçar o fútil por serem tão focadas numa rivalidade.
Até podia ser uma música super interessante, mas as pessoas só iam prestar atenção à novela. Ou seja, é a lógica da sociedade de entretenimento e a sua perversidade. No sentido em que, muitas vezes, vemos isso também com artistas que têm trabalhos interessantes, mas que só aparecem nas revistas pelas coscuvilhices. A própria sociedade de entretenimento e as redes sociais estão moldadas para que as frivolidades tenham mais protagonismo. E a lógica do algoritmo é essa. Simultaneamente, nunca estivemos tão expostos à informação, 24 horas por dia, sobre tudo o que se passa no mundo. Estamos quase sempre a acompanhar uma guerra ou um genocídio ao segundo. A receber imagens dos barcos naufragados com imigrantes no Mediterrâneo e, ao mesmo tempo, estamos a ver as nossas influencers em Ibiza. Esta montanha-russa de estímulos e de informações contrastantes é absurda. A forma como toda esta informação é nivelada, como se tivesse a mesma importância, num feed que nos adormece, que nos entontece e que nos faz ficar cada vez menos sensíveis àquilo que, de facto, é importante.
Revejo muito do que estás a dizer em algumas das pessoas que sigo nas redes sociais.
Estão a criar uma manta de retalhos de coisas completamente contraditórias. Essa canção foi a minha tentativa de fazer um retrato dessas contradições.
Estavas a falar também de procurar um lado positivo na sociedade. Algo que achei muito interessante foram as mensagens feministas que deixaste no disco, porque tem uma componente muito forte de empoderamento, nomeadamente em "Making Teenage Ana Proud". Sentes pressão ou responsabilidade em transmitires estas mensagens para o teu público?
Durante toda a minha discografia, gravei canções em que abordava questões de género e o feminismo como um dos temas centrais. Isso é óbvio na minha discografia desde o primeiro dia. Neste disco, não ia ser diferente. Ao longo do tempo, há espaço para várias abordagens. Às vezes, estou a falar de questões muito específicas, por exemplo, na "Medusa", que fala sobre a violência contra as mulheres. Noutros casos, estou a falar de uma forma mais genérica; às vezes, estou a falar de uma forma mais panfletária e existem situações em que falo de uma forma mais orgulhosa – como estavas a referir –, tentando contagiar quem me ouve com essa capacidade de empoderar e de libertar através das palavras.
Como é que isso se reflecte neste trabalho?
Neste álbum, em músicas como "Making Teenage Ana Proud" ou "Brava", vou abordando temas como a interseccionalidade das lutas, nomeando pessoas concretas pela importância que têm tido pela sua coragem; como a maternidade agrava as desigualdades sociais; os números assustadores de violência doméstica – algo que me parece contraditório, porque vivemos num país aparentemente seguro, menos dentro das nossas casas. Tento sempre tocar nas feridas para chamar a atenção para problemas que me preocupam e que estão sempre na ordem do dia. Se pensarmos que vivemos num tempo em que o populismo e a extrema-direita crescem tendo como prioridade o ataque às mulheres e às minorias, mais do que nunca faz sentido, num disco que fala tanto sobre o nosso tempo, convocar todas estas questões.
Um tema que achei bastante interessante de te ouvir cantar foi o da maternidade. É algo de que se fala pouco, mas, por exemplo, a questão de a mulher ter de ficar em casa a tomar conta do filho e ter de deixar de parte a sua arte é algo que muitas pessoas desvalorizam.
Tenho uma canção no disco que fala especificamente sobre isso, "Flamingo". Fala sobre o hiato entre os dois discos e sobre como é que, de certa forma, a criação dos filhos – no meu caso, tenho um – impacta a criação e afecta a nossa disponibilidade criativa. Escolhi usar a metáfora desta ave porque, quando estão a alimentar as crias, perdem a cor. Só quando a cria começa a ser mais independente é que voltam a ganhar aquela cor rosada. Usei esta imagem para falar de como educar uma criança impacta a relação com a criação enquanto mães artistas e como é lidar com essas angústias, gerir a disponibilidade, a culpa materna e a reconstrução identitária e artística. É um processo muito complexo e longo.
Mencionou o início da sua carreira. Estás envolvida na cena musical há mais de dez anos, observas alguma diferença neste período?
Há cada vez mais gente a fazer música interessante em Portugal, de vários géneros e com temáticas políticas e sociais. Uma das grandes diferenças é que temos todo o tipo de música – do fado à música electrónica, da música afro-portuguesa ao pop – a abordar questões como o feminismo, os problemas de habitação, os desafios da comunidade LGBTQ+... Temos mesmo muita coisa nova a acontecer na música portuguesa, e, sobretudo, preocupada em falar sobre o seu tempo. Estamos a passar por um bom momento.
Regressando ao tópico da responsabilidade. Achas que, enquanto alguém que se tornou numa das representantes das mulheres no hip-hop em Portugal, tens o dever de inspirar as próximas gerações?
Não sinto isso como um dever. Sinto que tenho feito aquilo que considero ser importante, esperando que, de facto, isso resulte em abrir outras portas e oportunidades. Não tenho a certeza de que isso seja algo que dependa exclusivamente da minha acção, existem muitos outros factores em jogo, mas espero que possa inspirar outras pessoas a fazer aquilo de que gostam, não só no rap.
Para alguém que faz música de intervenção há mais de uma década, não é frustrante ver que o mundo não está a mudar consoante aquilo que estás a cantar?
Não é apenas para as pessoas que fazem música de protesto, mas sim para todas as pessoas que são sensíveis às questões que se passam no mundo e são empáticas para com quem está em situação de risco. Estamos a viver um período histórico muito conturbado, que parece exacerbar problemas que já existiam. Desde as alterações climáticas aos conflitos armados, passando pela erosão das democracias ocidentais, estes factores não deixam ninguém descansado. Não só os músicos, mas também todas as pessoas que têm um sentido de responsabilidade.
E sentes que o teu papel enquanto música é continuar a fazer canções de forma livre?
Sim, a minha ferramenta de intervenção cívica passa pela música, pela escrita, pela minha presença pública. Mas existem muitas outras formas de mobilização. Estamos numa altura de convocar todas as pessoas que se preocupam com o mundo a encontrar as suas ferramentas de participação pública e, através dos seus contextos, a mobilizarem-se e a combater o adormecimento colectivo, para não sermos atingidos por um retrocesso civilizacional.
Teatro Tivoli BBVA. 20 Mar (Qui). 21.00. 12,50€-25€