Teatro: “Por um pingo” cria uma narrativa ácida sobre como viver em cidades soterradas pela especulação imobiliária

Indicado ao Prêmio Shell de Teatro na categoria Melhor Dramaturgia 2024, “Por um pingo” é um interessante recorte sobre as relações humanas em meio ao concreto das cidades

Mar 19, 2025 - 05:14
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Teatro: “Por um pingo” cria uma narrativa ácida sobre como viver em cidades soterradas pela especulação imobiliária

texto de Renan Guerra

Uma infiltração começa a ocupar o teto de um antigo apartamento no centro de São Paulo. Os barulhos de goteiras e os próprios ruídos do prédio parecem cada vez mais enlouquecer um casal que a cada dia que passa se sente mais e mais espremido numa cidade que cresce vertiginosamente, com novos prédios e condomínios se erguendo e tapando a visão. Esse é o ponto de partida do espetáculo “Por um pingo”, com dramaturgia de Dante Passarelli e direção geral de Dante e Fernanda Zancopé. Com uma mancha de mofo no teto que parece crescer cada dia mais e com um vazamento de água iminente, o casal protagonista decide chamar um faz-tudo que desaparece após a primeira visita. A mancha cresce, os problemas se desenrolam, a vizinha vem futricar e aos poucos vai se revelando o passado que está soterrado por trás das paredes do edifício.

Com um elenco diminuto de quatro personagens interpretados por Ana Paula Lopez, Cris Lozano, Ernani Sanchez/Diego Chilio e Fernando Aveiro, “Por um pingo” se passa dentro desse antigo prédio construído de forma mínima no palco. Um azulejo antigo, um papel de parede desgastado e uma iluminação precisa criam o ambiente de claustrofobia do apartamento. A construção sonora auxilia nessa espiral enfrentada pelo casal de protagonistas: no escuro, logo na primeira cena, ouve-se o som da água a gotejar e a se repetir, como uma atividade fantasmagórica por dentro do encanamento. Como complemento no palco, telas de TV que transmitem as próprias cenas em transmissão simultânea via câmeras de segurança – a hipervigilância como presença constante. Tudo isso constrói as bases de uma narrativa que pende entre a tensão e o humor.

O texto de Dante Passarelli cria uma constante inquietude entre o casal de protagonistas, colocando a plateia em estado de vigilância, porém tudo ganha outras camadas com a atuação quase histriônica dos atores – uma escolha ousada, que caminha num limiar arriscado, mas que resulta numa construção dramática muito sólida, em que o drama se encontra com o humor, criando ao mesmo tempo desconforto e riso. Nisso se destaca a presença de palco de Ana Paula Lopez, a esposa revoltada com a mancha cada vez maior no teto de sua sala. Ela constrói nuances de sua protagonista a partir de um jogo entre o exagero e a sutileza, quase como conduzindo o fio narrativo do espetáculo. “Por um pingo” se desvela assim uma narrativa curta e direta sobre esse grupo de pessoas que se cruzam por entre paredes, elevadores e saídas de emergência em uma cidade que cada vez mais parece apertar e cercear seus cidadãos, criando uma interessantíssima discussão sobre especulação imobiliária, vida urbana e o nosso direito à moradia e à dignidade.

Nessa discussão sobre o espaço da cidade, um detalhe de fora do palco é simbólico: “Por um pingo” foi financiada pelo 18° Prêmio Zé Renato e circulou por aparelhos públicos da capital paulista como o CCSP e o Teatro Arthur Azevedo, com sessões gratuitas. A nova temporada do espetáculo, porém, está sendo encenada (às quartas-feiras, dias 19 e 26 de março – ingressos aqui) no Teatro Manás Laboratório, a sede do grupo Manás Laboratório de Dramaturgia, espaço independente fundado pelos realizadores do espetáculo Dante Passarelli e Fernanda Zancopé. Localizado no coração do Bixiga, o teatro é um desses espaços que (felizmente) insistem em transformar a cidade ainda em um local humano e pulsante, em que uma portinha pequena pode te levar a descobrir a arte, o mundo e o outro. Isso numa região que é constantemente visada pela especulação imobiliária e que teima em resistir como região teatral.

Indicado ao Prêmio Shell de Teatro na categoria Melhor Dramaturgia 2024, “Por um pingo” é um interessante recorte sobre as relações humanas em meio ao concreto das cidades, com um olhar ácido sobre o desespero de nossos tempos.

– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava