Andrés Calamaro faz ‘fiesta’ para latinos e brasileiros com rock de cartilha em SP

Ao subir ao palco, em apresentação que faz parte da turnê “Agenda 1999”, responsável por reviver o CD duplo de 37 músicas (!) “Honestidad Brutal”, Calamaro não decepcionou.

Apr 21, 2025 - 05:29
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Andrés Calamaro faz ‘fiesta’ para latinos e brasileiros com rock de cartilha em SP

texto, fotos e vídeos de Bruno Capelas

Bandeiras da Argentina e do Peru erguidas orgulhosamente pelo público. Na fila da cerveja, o espanhol – em sotaque portenho, claro – duelava em volume com o português. Por uma noite, a Liberdade ganhou ares de Barrio Chino, a ponto de que quem quisesse chamar o Cine Joia de Niceto Club teria uma licença mais que poética. Também, pudera: a noite do último dia 19 de abril marcou a estreia em São Paulo de Andrés Calamaro, um dos maiores ícones do rock argentino. Veterano com quatro décadas de bons serviços prestados ao rock en español, seja com Los Abuelos de Nada, Los Rodriguez ou em carreira solista, El Salmón (como é apelidado no país vizinho) já até havia tocado em Porto Alegre em 2019 (e na quinta-feira anterior, ambas no Bar Opinião), mas nunca acima do rio Mampituba.

Em meio aos fãs brasileiros que se propuseram ao longo das décadas a desbravar a obra exitosa de Calamaro, uma proporção enorme de latinos ocupou o Cine Joia, ajudando a casa no centro de São Paulo a ter boa lotação, contrariando expectativas. O público dançou bem o set feito pela DJ Flávia Durante, enquanto esperava com gritos ansiosos de “olé olé olé, Andrés, Andrés” e até um desavisado “Uruguai no má”. Ao longo da apresentação, outros gritos apareceriam – em especial, do Boca Juniors, provocando o torcedor apaixonado do Independiente de Avellaneda.

Ao subir ao palco, em apresentação que faz parte da turnê “Agenda 1999”, responsável por reviver o CD duplo de 37 músicas (!) “Honestidad Brutal”, Calamaro não decepcionou. Primeiro, pelo investimento de trazer ao País sua banda em formação completa, com quase uma dezena de músicos se revezando em duas guitarras, baixo, bateria, teclados, metais e coros. Segundo, pela humildade de saber que, a despeito da popularidade na América hispanohablante, ele é pouco conhecido por aqui – não à toa, “humilde” e “humildade” são palavras que ele repetiu diversas vezes em entrevista recente a este site, antes dos shows.

Depois de uma abertura rápida com “Output-Input” e “Sin documentos”, de Los Rodríguez, o cantor atacou por uma sequência de petardos para deixar ninguém parado, alternando números de “Honestidad Brutal” com outros de “Alta Suciedad”, disco de 1997 que é, até hoje, um dos mais vendidos na história do rock argentino. Juntos, os dois trabalhos trazem o melhor da proposta sonora de Calamaro: um rock de raízes stonianas, evidentemente populista com seus refrões fáceis, mas cheio de sentimentalidade e rebeldia que valem a audição.

Bons exemplos surgiram logo em “Loco” (que provocou polêmica nos anos 1990 pela apologia à maconha, mas hoje faz a defesa da droga parecer até banal), na flamejante “Me Arde” e na dupla de baladas “La parte adelante” e “Te Quiero Igual”, prontas para fazer os braços de brasileiros & hermanos subirem ao alto no Cine Joia. Na sequência, foi a vez de outra menção do repertório de Los Rodríguez (“A Los Ojos”), antes que o cantor emendasse uma cadeia de “Honestidad Brutal”, já em uma rotação abaixo do início, como ao emendar a abertura de “Kashimir” em “El Día de La Mujer Mundial”. Mas não se engane o leitor: não é fraqueza, mas apenas a manha de um artista sabendo muito bem intercalar altos e baixos para não esgotar seu público.

Jogando praticamente em casa, Calamaro tinha os presentes nas mãos – e sabia quando poderia usar a torcida a seu favor para resgatar a chama do show. É o que ficou claro na boa balada “Una Bomba” e, pouco à frente, na dobradinha de “Cuando No Estás” e “La Enfermedad”. Esta última, o terceiro e último número de Los Rodríguez que apareceu na noite, talvez tenha sido a faixa mais cantada pelos presentes, embora a razão possa pertencer mais ao futebol do que apenas à qualidade da canção. Famosamente, a faixa – na versão de Fabiana Cantillo – foi utilizada por Maradona em seu retorno aos gramados em 1991, após sua primeira suspensão por doping. Assim, há três décadas, a canção (como outras de Calamaro) tem sido abraçada por torcidas pelo mundo – e no Cine Joia, equivaleu a um grito de gol con la mano de Dios.

E já que o assunto é futebol, Calamaro soube bem driblar as muitas polêmicas em que adora se envolver ao longo da noite. Fã declarado de touradas, apoiador da eleição de Javier Milei e alinhado a favor de Israel, ele era só sorrisos: não só ergueu como se enrolou em uma bandeira do Brasil, declarou amor à cultura brasileira e evitou a política. Por uma noite, seu negócio foi mesmo a música, alternando-se entre guitarra, maracas, cowbell, teclados e o microfone. A marra de costume também esteve menos presente, dando espaço para a banda de apoio brilhar. Destaque especial, aliás, para a dupla de guitarristas Julian Kanevsky, solista de poses comedidas e grandes performances, e Brian Figueroa, com visual hard-rocker e muita pose.

Capaz de usar a famosa “teoria do W” a seu favor, Calamaro elevou a temperatura do Cine Joia ao final do set normal, emendando uma celebrada sequência de “Alta Suciedad”, gravado nos EUA após o fim de Los Rodríguez. Primeiro, veio a delicada balada “Crímenes Perfectos”. Depois, a balançada faixa-título e seu comentário social que segue atual, seja no Prata ou no Tietê. Para fechar a conta, ainda teve a incrível “Flaca” e outro número de “Honestidad Brutal” para abraçar os presentes: “Paloma”. No bis, ainda houve tempo para dois momentos roqueiros de alta octanagem: “Estadio Azteca” e um medley de “Los Chicos” e “El Salmón”, entremeado com citações a “I Want You (She’s So Heavy)”, dos Beatles.

No final, com o relógio batendo meia-noite e muita gente correndo para pegar o metrô ainda aberto, era difícil disfarçar o sorriso no rosto. Afinal, não é todo dia que se vê um grande artista (e aqui separamos o artista da obra) tocando em um lugar para centenas de pessoas. Não importa muito que o repertório de Calamaro talvez não tenha tantas sutilezas quanto alguns de seus pares argentinos que aos poucos se tornam mais conhecidos no Brasil. O que lhe falta em sofisticação, lhe sobra em autenticidade e bons refrões. Que não demore mais quarenta anos para que ele volte.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.