Cinema: “Pecadores” une o gênero vampiresco ao blues

Nova parceria de Ryan Coogler e Michael B. Jordan une com maestria o gênero vampiresco ao blues como símbolo da cultura musical evolutiva e antirracista.

Apr 20, 2025 - 15:28
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Cinema: “Pecadores” une o gênero vampiresco ao blues

texto de João Paulo Barreto

Reza a lenda que Robert Johnson, um dos precursores do blues e um dos mais exímios instrumentistas que já passaram por esse planeta, adquiriu sua perícia no violão após um encontro inusitado com o diabo em uma encruzilhada localizada na região do delta do rio Mississipi. No acordo feito com o sete-peles, o jovem Johnson, que viria a morrer aos 27 anos em 1938, teria recebido a proposta do tinhoso pela posse de sua alma em troca de todo talento musical que o bluesman demonstrou em sua curta vida.

Em “Pecadores” (“Sinners”, 2025), nova e, mais uma vez, proveitosa parceria do diretor de “Creed” (2015) e “Pantera Negra” (2018), Ryan Coogler com o astro Michael B. Jordan, uma das cenas trazem o personagem de um pastor vivido Saul Williams alertando seu filho, Sammie Moore, outro exímio instrumentista, ao lhe dizer: “Filho, se você continuar dançando com o diabo, um dia ele vai lhe seguir até sua casa”.

Nesse momento, que surge logo no começo da trama, se torna evidente a proposta de Coogler de louvar as origens do blues, bem como seu alcance e influência cultural através dos séculos, desde sua origem como ritmo oriundo da África até a sua assimilação e desenvolvimento na plantações de algodão nos Estados Unidos. Quando se chega ao período da primeira metade do século XX, fase no qual o nome de Robert Johnson se fez notório e sua lenda de débito satânico ganhou fama até sua precoce morte, o longa referencia essa famosa anedota blueseira de forma a criar esse direto elo com um dos pilares folclóricos do estilo musical.

No entanto, quando o filme traz a presença do demônio, ele não surge para cobrar uma dívida do jovem Sammie, nosso paralelo a Johnson em termos de impressionante talento musical, mas, sim, para lhe oferecer um acordo. E em tal acordo, o poder que o rapaz já possui de fazer uma música que se comunica através de eras por um domínio notável do violão e sem qualquer necessidade de troca satânica, é o que seduz a entidade que, aqui, surge na figura do vampiro irlandês vivido por Jack O’Connell.

“Pecadores” aborda esse poder do blues tanto de forma alegórica como concreta. A concretude se dá ao vermos como Sammie (vivido pelo prodigioso bluesman Miles Caton) tem em sua música seu bastião de esperança pela mudança em sua vida para algo além das plantações de algodão e dos dogmas religiosos de seu pai. Mas é no espetáculo visual e sonoro com os quais Coogler desenha a citada alegoria de seu filme que a obra ganha sua principal força. Com as liberdades narrativas que a proposta do gênero do terror permite ao seu roteiro, o cineasta cria uma ode de respeito à música como expressão cultural de suas diversas raízes.

Em determinado momento, durante uma catarse sonora, o diretor flui sua câmera por entre um grupo de pessoas a dançar ao som do violão de Sammie. A barreira do tempo cai belissimamente de forma visual e a música como expressão cultural de vários povos a percorrer passado, presente e futuro dentro daquela história surge em uma cena construída a partir da citada fluidez da alegoria das imagens de Coogler. É quando se entende a ideia do diretor em usar o cinema de terror como pano de fundo para algo muito mais potente. Nessa construção narrativa, relaciona-se a crítica à sociedade historicamente racista dos Estados Unidos à perenidade do blues como um estilo de resistência diante do sofrimento de um povo, mas, acima disso, à resposta aguerrida de Coogler a tais mazelas.

Na história dos gêmeos Elijah e Elias (ambos vividos por Michael B. Jordan), que retornam ao Mississipi após uma violenta e prolífica passagem pela Chicago de Al Capone, Coogler traz uma potente narrativa sobre a brutalidade oriunda do racismo, mas, acima disso, coloca os dois personagens como pessoas que não têm planos de ceder a outra face para a mesma brutalidade. Quando um dos irmãos escuta a história que o pianista Delta Slim, vivido por Delroy Lindo, traz sobre um dos crimes cometidos pela Ku Klux Klan, apenas os sons da violência e do horror dos assassinatos são trazidos à tona para o espectador. E de alguma forma, esse terror se evidencia e ressoa de maneira ainda mais forte do que se o roteiro optasse por ilustrar tal momento com imagens.

Mas a resposta contra a violência racista deve ser sempre a da mesma moeda, e a forma como o longa ilustra isso em seu epílogo deixa evidente o que o diretor de Pantera Negra buscava como pertinente mensagem central em seu novo trabalho.

Na junção dos elementos musicais com o aprofundamento das questões de luta racial, Coogler, diante da oportunidade de brincar com as possibilidades do cinema de gênero de terror, não decepciona ao inserir de modo gradativo os aspectos vampirescos que os filmes com essa temática trazem em sua estrutura. Assim, estão lá as instruções relacionadas ao uso do alho como defesa, a luz solar como último aliado, as estacas de madeira fincadas no peito como resolução brutal e a limitação de poder das criaturas se as mesmas não forem convidadas a entrar em recintos que não lhes pertencem. Este último item, inclusive, sendo usado de maneira brilhante na criação de tensão pela obra.

Repleto de riqueza religiosa dentro de uma tão familiar cultura advinda do candomblé, o filme de Ryan Coogler, da mesma forma que aconteceu com “Pantera Negra”, dialoga muito bem com o público brasileiro e, sobretudo, baiano. Isso se dá por trazer tais elementos religiosos e culturais de forma a inseri-los em sua narrativa como inteligentes armas contra o mal que aqueles personagens se vêem diante. E nessa junção cultural, vemos, também, representações do folclore musical oriundo da Irlanda e, nisso, o filme demonstra muito das raízes imigrantes que os Estados Unidos possuem e que, hoje, sua (necro)política busca extirpar.

“Pecadores”, em seu título simbólico a definir vários de seus personagens, se firma como um dos trabalhos que melhor utilizam o cinema de gênero de terror como metáfora para abordagens reais do mal advindo da humanidade. Mas é em seu encerramento, quando surgem a imagem, a voz e o instrumento musical de Buddy Guy, um dos últimos representantes de uma era de ouro do estilo, é que nos percebemos, de fato, diante de um filme preciso em sua homenagem ao blues como pilar musical.

– João Paulo Barreto é jornalista, crítico de cinema e curador do Festival Panorama Internacional Coisa de Cinema. Membro da Abraccine, colabora para o Jornal A Tarde, de Salvador, e é autor de “Uma Vida Blues”, biografia de Álvaro Assmar.