A brasileira de Harvard que desvendou o coronavírus após perder o pai

Da perda à descoberta, a pesquisadora Marcella Cardoso transformou a morte do pai em pesquisa inovadora

Apr 19, 2025 - 11:31
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A brasileira de Harvard que desvendou o coronavírus após perder o pai

Nascida em Campinas, no interior de São Paulo, a pesquisadora Marcella Cardoso tem se destacado no cenário internacional por suas importantes contribuições para o entendimento do coronavírus (causador da Covid-19) no nosso organismo. Doutora em saúde da mulher, com foco em oncologia ginecológica e mamária, Marcella transformou uma tragédia pessoal — a perda do seu pai Luiz Carlos Cardoso para a Covid-19 — em uma oportunidade de desvendar os mecanismos que levam o SARS-CoV-2 a progredir de forma agressiva e muitas vezes fatal em pessoas até então saudáveis, sem nenhuma comorbidade associada. 

Ela tem sido uma das vozes ativas na busca por respostas sobre como o vírus se espalha, como ele afeta, como “escapa” do sistema imunológico e quais estratégias podem ser usadas para combater a doença.

Além disso, Marcella Cardoso também se tornou uma figura importante ao destacar a necessidade de uma maior participação feminina na ciência. Em um campo tradicional e historicamente dominado por homens, sua trajetória inspira outras mulheres a se engajarem na pesquisa de ponta. 

Após quase dois anos de dedicação exclusiva, os resultados do seu estudo envolvendo os mecanismos de escape do coronavírus e a descoberta de uma potencial imunoterapia foram publicados na revista científica Cell, uma das mais respeitadas no mundo.

Não à toa, em setembro do ano passado, Marcella foi agraciada com o prêmio “VEJA SAÚDE & Oncoclínicas de Inovação Médica”, na categoria Medicina de Precisão e Genômica: a descoberta do mecanismo de escape do coronavírus — uma conquista e tanto para uma cientista brasileira.

Para entender o impacto desse feito, é preciso voltar alguns anos e conhecer toda essa trajetória e a importância de uma mulher conseguir espaço de destaque na ciência. 

Marcella nasceu e cresceu em uma família humilde. Filha de um corretor de imóveis e de uma professora, só conseguiu estudar em um colégio particular por causa de uma bolsa de estudos. Para manter o benefício, no entanto, era preciso conquistar notas altas e manter uma performance excelente, o que despertou na menina o gosto pelos estudos desde muito cedo. 

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A jovem se formou em ciências biológicas na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), fez mestrado na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e emendou o doutorado na mesma instituição, com pesquisas focadas na saúde da mulher.

Quando estava na metade do PhD, surgiu uma oportunidade de ouro: a seleção para uma bolsa de estudos financiada pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), órgão vinculado ao Governo Federal, para alunos que desejavam estudar fora.

Marcella não pensou duas vezes e se candidatou à vaga na renomada Harvard Medical School, em Boston, nos Estados Unidos. Foi selecionada e se mudou em janeiro de 2020, quando a pandemia começava a avançar mundo afora.

Como a morte do pai impactou a sua carreira 

Pouco mais de um ano depois, Marcella soube que seu pai havia testado positivo para Covid-19. Por trabalhar em hospital com pesquisa, ela já havia tomado as duas doses da vacina contra a doença.

Ainda assim, voltar para o Brasil era assumir o risco de não conseguir terminar seu doutorado em solo norte-americano, pois as fronteiras dos países estavam fechadas por causa da doença. O pai de Marcella piorou, foi internado e precisou ser entubado. A cientista voltou para o Brasil. 

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Por aqui, tentou avidamente visitá-lo na UTI algumas vezes, mas não foi autorizada. Os protocolos eram rígidos e, mesmo vacinada e com preparo para lidar com pacientes infectados, Marcella não pôde se despedir do pai, que morreu vítima da doença uma semana depois.

A pesquisadora precisava terminar o seu doutorado. Mais do que isso, ela decidiu que queria desvendar os mecanismos de ação do vírus para responder para a sociedade tantas perguntas envolvendo a doença.

Quatro meses depois da perda, com o auxílio e apoio de outros colegas pesquisadores da Universidade de Harvard, conseguiu uma autorização excepcional de viagem para voltar para os EUA.

Defendeu o doutorado e, no dia seguinte à defesa, recebeu uma carta-proposta para ser contratada e iniciar o pós-doutorado na mesma instituição. “Me chamaram para trabalhar no Instituto de Imunologia e Doenças Infecciosas no Massachusetts Institute of Technology — MIT, com imunoterapia e terapia celular para câncer de mama, que era a minha expertise até então”, conta. 

Ao receber a proposta, Marcella diz ter sido “meio maluca” e muito audaz pedindo para liderar uma pesquisa envolvendo o coronavírus, justamente porque tinha acabado de perder o pai para a doença — e a instituição aceitou.

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“Imagine uma mulher, latina, brasileira, que já é extremamente estigmatizada, fazendo ciência e liderando uma pesquisa em uma das maiores universidades do mundo. É um passo enorme, pois existem inúmeras barreiras para serem transpostas”, contou.

Os desafios começaram no desenho do estudo — a expertise de Marcella era em saúde da mulher e câncer de mama, e pesquisar uma doença que estava acontecendo concomitantemente na sociedade era uma corrida contra o tempo.

“A gente precisava responder algo que ninguém ainda tinha descoberto no mundo. E, na ciência, independentemente da área que você esteja, sua maior moeda de valor é o grau de inovação da sua pesquisa. Se alguém publicasse esse resultado um dia antes da gente, todo nosso esforço acabaria junto”, pontua a pesquisadora. 

Para o estudo acontecer com participação brasileira, Marcella fez uma parceria com a Unicamp, que enviou sangue de pacientes infectados com Covid-19 para compor a amostra, juntamente com os pacientes norte-americanos.

Durante os dois anos da pesquisa, a cientista praticamente abriu mão da vida pessoal e se dedicou horas a fio a esmiuçar o genoma do coronavírus e descobrir esse mecanismo de escape.

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Aqui, inclusive, vale fazer uma ressalva: foram duas mulheres brasileiras que fizeram o sequenciamento completo do SARS-CoV-2 no Brasil, apenas dois dias após a verificação do primeiro paciente com a doença no país. Jaqueline Goes de Jesus e Ester Sabino publicaram o sequenciamento do vírus com uma rapidez surpreendente. 

O feito das duas cientistas permitiu diferenciar o vírus que infectou o paciente brasileiro do genoma identificado primeiramente em Wuhan, o epicentro da epidemia na China. O trabalho que elas conduziram foi feito ao lado de outros pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz, da Universidade de Oxford e do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (IMT-USP).

“Peguei o genoma do coronavírus e comecei a testar cada uma das proteínas presentes em busca de respostas. O ambiente acadêmico é permeado de hipóteses que não conseguem ser provadas, mas peguei uma pista muito valiosa de um trabalho feito com morcegos, que era uma proteína que era conservada entre os mamíferos. Foi uma sacada dentro de uma caminhada intensa”, contou a pesquisadora, que ressalta o “protagonismo brasileiro” nesse levantamento, que ela enfatiza ser “verde e amarelo, com sangue latino”.

“Não me pergunte como, mas eu dei conta. Eu estava em hiperfoco, estudando, trabalhando e me dedicando para aquilo. Eram cerca de 15 horas de trabalho todos os dias, respirando 100% aquilo”, frisa.

Conheça Marcella Cardoso, pesquisadora brasileira e uma das primeiras a estudar o vírus da Covid 19
Conheça Marcella Cardoso, pesquisadora brasileira e uma das primeiras a estudar o vírus da Covid 19Catarina Moura/Reprodução
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“Ainda existe um abismo social e de gênero dentro da ciência e Pesquisadoras latinas são vistas com estigma. mas sempre acreditei que é através da coragem que a gente consegue transpor barreiras”

Além da Covid-19

Mas o papel de Marcella Cardoso na ciência vai além de suas descobertas envolvendo o coronavírus. A cientista defende que a presença feminina em áreas como virologia, biomedicina e outras é essencial para promover um avanço mais equitativo e representativo na pesquisa científica. “A gente nunca vence quando está sozinha”, disse.

Além de continuar a pesquisa nos Estados Unidos com os desdobramentos dos mecanismos do coronavírus em busca de um possível tratamento, Marcella estabeleceu parcerias com outros times da Universidade de Harvard.

Ela usa todo seu know-how em linhas de pesquisas com questões humanitárias envolvendo violência baseada em gênero (sob a interseccionalidade de étnica e social), tráfico humano (com foco na exploração sexual de mulheres no Brasil), assédio sexual em ambiente acadêmico e dignidade menstrual em ambientes de baixos recursos.

Todas as pesquisas contam com colaboradores brasileiros, de diferentes regiões do país, majoritariamente mulheres — essa é a forma que Marcella encontrou de estimular ainda mais a participação feminina e brasileira nos estudos.

“Infelizmente, ainda existe um abismo social e de gênero dentro da ciência. O ambiente acadêmico de alta performance é extremamente competitivo. Pesquisadoras latinas são vistas com estigma e as brasileiras carregam uma camada de estereótipo ainda maior. Mas sempre acreditei que é através dos estudos e da coragem de ousar que a gente conseguirá transpor barreiras na vida”, ressaltou a cientista.

Ao se destacar em sua área de atuação, Marcella continua abrindo caminho para futuras gerações de cientistas mulheres que, assim como ela, buscam transformar o mundo por meio do conhecimento e da inovação

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