O livro em que José Mário Branco pensa em voz alta

A antologia ‘José Mário Branco – Entrevistas para a imprensa (1970-2019)’ reúne muitas das entrevistas do cantautor ao longo de quase 50 anos. São reflexões sobre como o próprio “se inscreve no mundo e como o vê mundo”.

Apr 11, 2025 - 14:01
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O livro em que José Mário Branco pensa em voz alta
O livro em que José Mário Branco pensa em voz alta

“Do muito que este país sofreu – e do que ainda lhe falta passar nos anos que se avizinham – dir-se-á que não serviu para nada, se nada tiver aprendido”. Esta citação pode parecer adequada para a conturbada realidade que Portugal vive – entre a ascensão da extrema-direita e um período de instabilidade política, com a queda de dois governos em dois anos consecutivos. Mas foi escrita em Abril de 1979, pelo influente jornalista português Trindade Santos, num texto, para o Música & Som, que introduzia uma entrevista com José Mário Branco.  

Esta é uma das 119 entrevistas disponíveis no livro José Mário Branco – Entrevistas para a imprensa (1970-2019), de Ricardo Andrade, Hugo Castro e António Branco. Editado pela Tinta da China, esta antologia – lançada esta quinta-feira, 10 de Abril – recolhe depoimentos feitos por um dos mais importantes cantautores da língua portuguesa ao longo dos os 49 anos em que esteve activo. 

“O cantor de protesto – se quer continuar a sê-lo – tem que saber contra o que é que ‘protesta’, tem que saber o que defende. E isso é, evidentemente, mais difícil numa sociedade onde o inimigo não é tão cliché como antes, onde a diferença entre o amigo e o inimigo não é tão nítida, onde as noções de prisão, de repressão e de pressão não estão tão aparentes como no fascismo”, disse o autor de Mudam-se Os Tempos Mudam-se As Vontades e Ser Solidário há 46 anos. 

À Time Out, os criadores do livro defendem que estas reflexões do artista podem ajudar a decifrar os tempos em que estamos. “Do meu ponto de vista, a íntima ligação entre a forma como ele via a sua actividade musical e a sua – entre aspas – intervenção cívica são indissociáveis”, explica Ricardo Andrade. “Portanto, tendo em conta a sua circunstância política, as reflexões do próprio sobre o seu percurso e vários momentos que viveu e assistiu, podem dar pistas acerca de algumas questões que, infelizmente, continuam actuais”. 

O projecto nasceu de uma análise exaustiva de mais 200 textos. Foram apenas consideradas as entrevistas no formato “pergunta e resposta” e na quais os investigadores conseguissem comprovar a factualidade das afirmações. O resultado final são 672 artigos, em que podemos ler as conversas do cantautor com jornalistas das mais variadas gerações – desde António Pires, Nuno Pacheco e Rui Miguel Abreu a João Pedro Oliveira ou Rita Sousa Vieira.  

A ideia para criar este trabalho surgiu em conversa com o homem que dá nome ao projecto, a propósito de um livro com a mesma estrutura sobre José Afonso: Semeador de palavras. Entrevistas a José Afonso. “Eu e o Hugo fazíamos parte da direcção da Associação José Afonso, quando esse projecto foi iniciado”, recorda Ricardo. “Mencionámos a hipótese de fazer isso com as entrevistas dele. Não foi propriamente uma conversa muito desenvolvida, mas tendo em conta o trabalho de investigação que já fazíamos sobre o José Mário, achámos que seria interessante elaborar um livro que reunisse – não todas – mas muitas das entrevistas”.  

O objectivo era também oferecer uma porta para a mente do cantautor de forma a perceber melhor o seu processo de criação artística e as visões que tem do mundo, mas também como este foi evoluindo. “Não sendo uma biografia, um dos aspectos que nos impressionou é a dimensão autobiográfica do livro que decorre pelo facto de a voz ser de apenas uma única personalidade”, descreve António Branco. “O músico aproveita estes momentos para reflectir em voz alta sobre aspectos muito importantes e sobre como se inscreve no mundo e como o vê mundo”. 

"Queríamos dar a possibilidade aos leitores de identificarem os traços mais importantes desse percurso extraordinário e longo, assim como as mudanças e o que se manteve constante ao longo do tempo, e identificarem eles próprios os traços mais importantes desse percurso extraordinário e longo”, afirmou o investigador. 

Ainda no tópico da evolução do discurso de José Mário Branco, os organizadores do projecto destacam como, no final da vida, este se descrevia como um “radical”. “É muito interessante como nas últimas entrevistas que deu, mesmo não sabendo que estava perto do fim da vida, ele diz em vários momentos: ‘hoje estou mais radical do que nunca’”, cita Ricardo. “Aproveitando para explicar que o ‘radical’ é aquele que vai à raiz das coisas. Essa foi sempre a preocupação do José Mário Branco e é uma preocupação que sentimos, constantemente, ao longo do livro”. 

Apesar de o livro ter chegado agora às lojas e ter envolvido uma pesquisa exaustiva, os investigadores garantem que existe ainda mais material para um novo exemplar. Aliás, estes deixam um apelo – a todos – completar este acervo.  

“Tivemos ajuda de entrevistadores, investigadores e outras pessoas – que estão nos agradecimentos do livro – que nos ajudaram a identificar entrevistas que nós não conhecíamos e que não tínhamos na nossa posse. Eventualmente, se nos enviarem mais textos, podem vir a ser incluídos numa segunda edição”, diz Ricardo. 

José Mário Branco – Entrevistas para a imprensa (1970-2019). Tinta da China. 672 pp. 24,90€