Ler em inglês é só uma tendência ou pode pôr a tradução em risco?

Cada vez mais pessoas estão a ler livros em inglês e, por isso, fomos falar com leitores, editoras e tradutoras para saber o que isto significa para a tradução em Portugal.

Apr 12, 2025 - 09:19
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Ler em inglês é só uma tendência ou pode pôr a tradução em risco?
Ler em inglês é só uma tendência ou pode pôr a tradução em risco?

Este artigo foi originalmente publicado na revista Time Out Lisboa, edição 672 — Inverno 2025

Ler sempre foi para se fazer a sós. E ler sempre foi para os totós, os geeks ou os ratos de biblioteca. Mas, nos últimos tempos, isso mudou. Hoje, ler é fixe, é cool e recomenda-se. Muito devido às redes sociais, em especial o TikTok, onde a comunidade leitora é uma das maiores subcomunidades dentro da plataforma (no BookTok) e conta com milhões de vídeos. Ao contrário do que se possa pensar, o fenómeno não acontece apenas lá fora e tem vindo a contagiar novos membros e a criar novos hábitos de leitura em Portugal. Em Lisboa, há um sem-número de livrarias a abrir onde, por norma, se dinamizam clubes do livro. Ler tornou-se uma actividade social, que pede para ser partilhada e falada, quer seja em português ou inglês. Aliás, cada vez mais em inglês, já que o consumo de livros escritos nesta língua é uma tendência que tem crescido, principalmente entre as camadas mais jovens. À medida que as publicações em inglês vão ganhando mais espaço nas estantes, perguntamo-nos: que impactos terá no mercado editorial português e, por conseguinte, na tradução? 

Tânia Ganho, autora e tradutora há mais de 20 anos, é a primeira a responder: “[Esta tendência] Inquieta-me, porque estamos a desvalorizar a nossa língua, o nosso património. E acho que devemos fazer exactamente o oposto – defender a língua portuguesa, que é uma língua riquíssima, e apostar em bons autores e em boas traduções”. As pessoas, em especial os mais jovens, estão a ler mais em inglês, o que, em certos casos, significa que já não lêem em português. Porque perderam o hábito, porque não gostam, porque preferem ler na língua original, porque as traduções são más, porque é mais caro, ou porque o livro que querem ler ainda não está disponível em português. É o que dizem e é também o que mostra o Estudo de Hábitos de Compra e Leitura de Livros em Portugal, apresentado em Setembro de 2024 pela APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros).

Tânia Ganho
Rita ChantreTânia Ganho

Nesse estudo, do total dos inquiridos, 26% afirmou ler tanto em português como em língua estrangeira e 3% apenas em língua estrangeira. Este número pode não parecer significativo agora, mas já traz receios para o futuro. “Não podemos deixar de nos revelar bastante preocupados, à semelhança de outras associações nossas congéneres europeias, porque as consequências do acentuar desta tendência vão seguramente induzir problemas de sustentabilidade ao sector editorial e vão arrastar questões de diversidade cultural e linguística”, sublinha Miguel Pauseiro, do Círculo de Leitores e vice-presidente da APEL, ao telefone com a Time Out. 

Segundo dados preliminares fornecidos pela GfK à APEL, relativos a 2024, a taxa de crescimento das vendas de livros importados constituiu o dobro da taxa de crescimento das vendas de livros no mercado editorial no seu todo, situando-se nos 20%. O peso do livro importado no mercado português ronda os 5% a 8%. “Esta é uma tendência que se tem acentuado nos anos mais recentes, mas que também tem acompanhado um comportamento registado em toda a Europa. Há países em que o peso do importado supera já os 20% e até os 25%”, continua Pauseiro.

Porque é que lemos mais em inglês?

Tão cedo, não parece que a tendência vá inverter. Notam-se os efeitos nas redes sociais, mas também na cidade. A juntar às que existiam antes, novas livrarias exclusivamente com livros em inglês têm vindo a abrir, umas atrás das outras. A Good Company Books e a Well Read são dois bons exemplos – além da oferta literária, dinamizam uma agenda cultural, com clubes do livro ou apresentações de livros. Em Arroios, Joana Pinto abriu a One More Chapter, uma pequena livraria virada para géneros como o romance e a fantasia. A proprietária sentia a necessidade de um espaço como este e, tal como a maioria dos leitores que a visitam, só lê em inglês. “Perde-se muito na tradução”, aponta como uma das razões.

Good Company Books
Rita ChantreGood Company Books

Eva Cmak partilha da mesma opinião – “Um dos motivos pelos quais gosto de ler em inglês é o facto de gostar de ler exactamente as palavras que os autores queriam que eu lesse. Uma tradução nunca vai ser 100% igual àquilo que o autor quis transmitir.” À semelhança de Joana Pinto, a influencer lê sobretudo fantasia e opta por livros recomendados no TikTok, plataforma em que conta com mais de 12 mil seguidores e em que dá as suas próprias recomendações literárias. “Todos os livros que leio ou é por causa do Youtube, ou do TikTok. Não sou capaz de ir a uma livraria, de olhar para os livros e pensar ‘Este deve ser giro’”.

A blogger e autora Rita da Nova há muito tempo que lê em inglês, mas porque tinha dificuldade em encontrar à venda as edições portuguesas dos títulos que queria ler. Mais consciente da questão em causa, Rita passou a ler mais traduções, mas a verdade é que nem sempre as considera bem feitas. “Há livros em que a tradução se perde um bocadinho. Às vezes, em alguma literatura japonesa, tenta-se aportuguesar demasiadas expressões. Por exemplo, há uns tempos, li uma tradução em que uma pessoa japonesa dizia ‘Não puxes a brasa à tua sardinha’. Isto não é uma coisa que, no Japão, um japonês diria”, diz, entre risos. 

Do lado das editoras, porém, esta questão tornou-se uma generalização que não pode ser tida como regra. Segundo Ana Gaspar Pinto, responsável de direitos internacionais da Infinito Particular, “por vezes, encontram-se traduções menos conseguidas no mercado e isso pode gerar alguma desconfiança”. “No mínimo, devemos experimentar ler em português antes de ‘descartar’ as edições traduzidas, pois sem essa aposta por parte do cliente, não vamos conseguir continuar a comprar obras internacionais e trazê-las para Portugal”, defende.

One more chapter bookshop
Rita ChantreJoana Pinto, proprietária da One More Chapter

Mas os motivos para pegar no livro em inglês não ficam por aqui. Prendem-se ainda com o preço, já que as edições originais tendem a ser mais baratas do que as traduzidas. Aqui, não há muito a fazer. O mercado editorial estrangeiro (especialmente o inglês) tem uma escala muito maior, com tiragens superiores às do mercado nacional, além de que em Portugal o regime da lei do preço fixo é diferente. “Há todo um custo editorial de uma tradução que um livro que não é traduzido não tem. Portanto, é impossível, habitualmente, praticar os mesmos preços”, explica Clara Capitão, directora editorial da Penguin Random House.

O tempo que alguns livros demoram a chegar a Portugal é outra das queixas. Para colmatar o problema, algumas editoras apontam os lançamentos mundiais como a resposta mais eficaz. Ao passo que antes tínhamos de esperar meses – ou até anos – para ler um determinado livro em português, agora há vários livros traduzidos que são lançados exactamente ao mesmo tempo da edição original. “Sobretudo nos segmentos mais competitivos e em que a leitura em inglês acontece mais, como o young adult, a ficção romântica e os seus subgéneros, esses direitos têm de ser comprados com muita antecedência. E é cada vez mais prática das editoras que trabalham esses géneros anteciparem a publicação o mais possível. Fazemos cada vez mais um esforço, nos livros em que acreditamos mais, para combater esse factor de tempo”, continua a directora editorial da Penguin. 

Ana Gaspar Pinto fala ainda em estratégias para diferenciar a edição portuguesa, de forma a que “os leitores percebam que ficam a ganhar quando esperam pela edição portuguesa”. Neste sentido, Clara Capitão realça a importância de trabalhar com bons tradutores – “As traduções têm de ser muito boas, muito cuidadas, e as edições em português destes livros têm de ser tão apetecíveis quanto as edições em inglês. Não só na apresentação, mas sobretudo na tradução e revisão.” Nem sempre é assim tão fácil. A rapidez com que as editoras contam publicar a tradução portuguesa pode acabar por comprometer a própria tradução – daí a falta de qualidade que apontam os leitores.

Traduzir não é fácil 

Elga Fontes, tradutora há cerca de três anos de géneros como a fantasia e para editoras como a Infinito Particular, acredita que “estando as pessoas mais predispostas a comprar livros em inglês, as editoras vão tentar acompanhar e publicar os livros mais rápido. Portanto, há mais pedidos de traduções, com prazos mais apertados, e isso acaba por afectar a qualidade”. Já Tânia Ganho denuncia o “facilitismo e imediatismo” que é necessário combater. “Os editores querem publicar já, tudo muito rápido, feito em cima do joelho e às três pancadas. E é isso que não pode ser. É claro que depois os leitores reparam e se continuarmos a fornecer-lhes um mau serviço, é óbvio que eles vão procurar os textos no original”, afirma.

Elga Fontes
Rita ChantreElga Fontes

Traduzir é um trabalho exigente e, por vezes, muito demorado. Para traduzir um livro, é preciso lê-lo mais do que uma vez, é preciso compreendê-lo, não basta traduzir simplesmente. Requer mais do que conhecimentos linguísticos, é preciso conhecer a língua e a cultura que a sustenta e que a mantém viva. Teresa Seruya, investigadora e tradutora literária do alemão que, recentemente, publicou a obra Tradução e Tradutores em Portugal – Um contributo para a sua história (séculos XVIII-XX), lembra o que já dizia o filósofo alemão Humboldt – “Mudar de língua é mudar de mundo, porque cada língua carrega uma certa visão do mundo. A tradução é um outro texto, porque se está noutra língua, tem outra visão do mundo. E o que se tenta é que essa outra visão do mundo entre em diálogo próximo com o mundo original.” 

Daí que cresça a preocupação com a possível utilização da inteligência artificial na tradução literária e, por outro lado, uma procura por um maior reconhecimento e valorização do papel do tradutor. “Um tradutor está nos bastidores e é uma posição tão louvável como estar à frente, nas luzes da ribalta. Cada um tem o seu lugar. Mas é uma figura importante”, acredita Tânia Ganho. E há várias formas de contribuir para essa valorização, como colocar o nome do tradutor na capa do livro, que tem vindo a tornar-se uma prática cada vez mais comum. Noutras frentes, porém, há falhas. Teresa Seruya aponta exemplos que vão da falta de menção dos tradutores em críticas literárias, publicadas nos jornais, ao Grande Prémio de Tradução Literária, no qual é presidente do júri e que, ao comparar com o Prémio Leya ou Camões, tem um valor muito mais reduzido, de apenas três mil euros.

Melhores condições para trabalhar

Com a maior valorização do tradutor, também se reivindicam melhores condições de trabalho. Alda Rodrigues é tradutora e pertence ao Colectivo de Tradutores Literários, que nasceu no fim de 2023 a partir de uma troca de emails entre alguns tradutores acerca de questões de pagamentos. A insatisfação passa pelas remunerações, cujo valor não é actualizado há cerca de 20 anos, e também pela invisibilidade à qual estão sujeitos tanto a nível do mercado editorial como na imprensa. Por isso, “o colectivo foi formado para defendermos a nossa visibilidade e para lutarmos por remunerações condignas. Muitos de nós sentem grandes dificuldades neste momento e há muita gente que pensa em desistir, o que acaba por não ser bom para as editoras, porque lhes convém ter um conjunto de tradutores competentes e experientes disponíveis”, afirma Alda Rodrigues. Aos poucos, acredita a tradutora, as coisas estão a melhorar. Por um lado devido à insistência do colectivo, por outro porque “as pessoas começam a notar que há tradutores e que os tradutores não são inimigos do texto”.

Teresa Seruya
Rita ChantreTeresa Seruya

Contudo, paira sempre o medo de que os leitores continuem a optar pelas publicações em inglês, em detrimento das traduções portuguesas, o que a longo prazo pode contribuir para a desvalorização da língua. “É muito importante que as pessoas leiam em português, porque ler só em inglês é um factor de empobrecimento cultural. Vamos perder a nossa língua e a nossa cultura”, pensa Alda. Por sua vez, Tânia Ganho acredita que há, desde logo, um preconceito contra a língua portuguesa. Questiona-se: “Então, estas gerações vão falar em que língua? Quando entrarem no mercado de trabalho, vão falar em português ou em inglês? Se vai ser inglês, dominam realmente o inglês e são capazes de pegar numa Jane Austen, ler do princípio ao fim, e perceber tudo? Ou são falsos bilíngues?”.

O que falta fazer 

Encontramo-nos então numa fase em que uns vêem mudanças a acontecer e outros um longo caminho a percorrer. Para Tânia, estamos numa encruzilhada. “Ou enveredamos por essa via do facilitismo e damos um pontapé nos tradutores e começamos a traduzir tudo por inteligência artificial – e, qualquer dia, o português é uma língua muito pobre e triste –, ou fazemos marcha atrás e investimos.”

Quando fala em investir, a autora exemplifica: investir na divulgação de autores portugueses, na qualidade das traduções, nas escolas e nas bibliotecas, adaptar os currículos e programas de leitura escolares. E destaca ainda o trabalho do antigo presidente da APEL, Pedro Sobral, que morreu em Dezembro de 2024, como essencial para o futuro que se avizinha – “Ele deixou as bases e agora temos de continuar a reflectir e a conversar uns com os outros, porque só com muito trabalho de fundo é que vamos conseguir dar uma volta ao mercado editorial. As bases estão feitas. Agora é continuar.”

 Alda Rodrigues
Rita ChantreAlda Rodrigues

Para Alda Rodrigues, a mudança parte da universidade, lugar onde se devia encorajar a ler e a escrever mais em português, e também da implementação de apoios e subsídios tanto para autores portugueses como para as editoras, como acontece na Irlanda, por exemplo. Elga Fontes defende um maior apoio do Estado para a valorização do livro e apoios às bibliotecas e livrarias independentes, a revisão da lei do preço fixo e ainda a actualização do Plano Nacional de Leitura. Teresa Seruya insiste na maior valorização do tradutor na sociedade. 

Para as quatro, importa continuar a discutir e a defender a tradução, não deixando cair por terra o que tem vindo a ser feito por associações como o Colectivo de Tradutores Literários. Até porque Alda Rodrigues deixa claro – “Não temos nenhum meio para falar e defender os nossos interesses além do colectivo, por isso é que o colectivo surgiu e por isso é que não pode desaparecer. Se desaparecer, então voltamos para trás.”