30° Festival É Tudo Verdade: “I’m Your Venus”, sobre Venus Xtravaganza, reforça a importância da memória de trajetórias trans
“I’m Your Venus” tem suas incongruências e se perde às vezes em meandros menores, porém se mostra sempre radiante quando reverbera a beleza, os sonhos e a liberdade de Venus Xtravaganza.

texto de Renan Guerra
Venus Xtravaganza é uma das icônicas personagens do documentário “Paris is Burning” (1991), de Jennie Livingston. A jovem garota sonhava em ser modelo e era uma figura ativa na noite e na cena ballroom nova-iorquina, mas foi assassinada no final de 1988, dias antes do Natal, e sua morte trágica é um dos fechamentos do filme de Livingston. O documentário foi premiado nos festivais de Sundance e Berlim, se transformou em um marco da cultura queer e foi adicionado à Biblioteca do Congresso norte-americano em 2016. Venus nunca conheceu o seu sucesso. Além disso, de lá pra cá uma série de personagens do filme já questionaram o uso de suas imagens dentro dessa história. Ainda assim, “Paris is Burning” é um marco e Venus uma de suas estrelas.
“I’m Your Venus”, (2024), de Kimberly Reed, busca revisitar a história e a memória de Venus Xtravaganza a partir do seu contato com a sua família biológica, Pellagatti, e a sua família do universo ballroom, a Xtravaganza. Mais de 30 anos depois, três irmãos biológicos de Venus decidem reabrir o caso criminal de seu assassinato e se aprofundar no passado da irmã, tentando entender a sua importância cultural dentro da comunidade ballroom. Para isso, a família se une a Gisele Alicea Xtravaganza, atual mother da house of Xtravaganza e outros integrantes do grupo – para não iniciados, as “houses” são agrupamentos de pessoas que frequentam o universo ballroom e que se auxiliam de forma mútua; originalmente, essas casas nasceram da experiência de pessoas trans que acolhiam em suas casas jovens LGBTQIA+ expulsos de seus círculos familiares e colocados em situação de rua ou de marginalidade; sendo assim, as donas dessas casas se tornaram as “mothers”.
O filme de Reed conta com dois apoios importantes na produção executiva: Jennie Livingston, a diretora de “Paris is Burning”, que auxilia com o fornecimento de cortes novos de cenas de Venus que não estavam na edição original de seu filme; e Dominique Jackson, modelo e atriz, considerada uma das mais importantes artistas trans da atualidade, que ficou famosa para o grande público na série “Pose” (2018-2021). Essa união de esforços em torno da memória de Venus é importante, considerando que todos os registros audiovisuais dela advém de “Paris is Burning”. Há ainda algumas fotos familiares e de resto o que se há são relatos e memórias de personagens que sobreviveram ao tempo.
Com essa falta geral de informações, construir um panorama da história de sua protagonista é um desafio e, com isso, a diretora Kimberly Reed toma uma das decisões mais arriscadas de seu filme ao dedicar um amplo tempo de tela aos três irmãos biológicos de Venus. Os três personagens relembram histórias de Venus na infância, falam de relações familiares e criam certos subterfúgios para falar apenas “de passagem” das experiências que os afastaram de Venus ainda em vida. Para conhecimento: Venus vivia com sua avó, ela tinha certo distanciamento de sua família biológica e a sua busca por uma identidade própria apenas afastava mais esses familiares, que se escoravam em ações homofóbicas/transfóbicas. Há certa estranheza no tempo delegado aos três irmãos em comparação com personagens que conviveram com a Venus, a Xtravaganza, em vida e que tem histórias múltiplas para contar sobre sua vida na noite, nas ruas e na cultura ballroom. Tanto que o momento mais rico do filme, por exemplo, é quando os irmãos são confrontados com um personagem que carrega certo rancor deles, considerando tudo que havia de informações que lhe foram passadas por Venus. Esse seria um interessante personagem a ser entrevistado e que poderia contar tantas outras coisas que ficam de fora dessa narrativa.
Sendo assim, fica essa dicotomia: o filme se mostra frágil quando se baseia na narrativa unilateral dos irmãos ao mesmo tempo em que cresce sempre que as personagens da comunidade ballroom se aproximam deles e isso gera um amplo trabalho para reavivar a memória de Venus, seja na luta para que sua casa se torne um espaço de memória trans e da cultura ballroom, quanto na busca pela retificação póstuma de seu nome. São esses momentos que nos lembram a importância desse filme: reavivar memórias sobre personagens trans fundamentais é uma forma de manter suas trajetórias vivas, de reforçar suas identidades e suas importâncias para a comunidade.
“I’m Your Venus” tem suas incongruências e se perde às vezes em meandros menores, porém se mostra sempre radiante quando reverbera a beleza, os sonhos e a liberdade de Venus Xtravaganza.
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– Renan Guerra é jornalista e escreve para o Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o Monkeybuzz e a Revista Balaclava.