Dendezeiro traça caminhos entre tradição, resistência, raízes e futuro
A Dendezeiro nunca falou apenas de moda. Fala de território, memória, ancestralidade e futuro. Em sua nova coleção, Brasiliano 2, Hisan Silva e Pedro Batalha aprofundam ainda mais essa narrativa, mergulhando na estética, na espiritualidade e nos simbolismos do Norte do Brasil para construir uma proposta que é, ao mesmo tempo, política, sensorial e comercial. […] O post Dendezeiro traça caminhos entre tradição, resistência, raízes e futuro apareceu primeiro em Harper's Bazaar » Moda, beleza e estilo de vida em um só site.

A Dendezeiro nunca falou apenas de moda. Fala de território, memória, ancestralidade e futuro. Em sua nova coleção, Brasiliano 2, Hisan Silva e Pedro Batalha aprofundam ainda mais essa narrativa, mergulhando na estética, na espiritualidade e nos simbolismos do Norte do Brasil para construir uma proposta que é, ao mesmo tempo, política, sensorial e comercial.
A partir de uma pesquisa densa e sensível, a dupla equilibra tradição e contemporaneidade, saberes populares e inovação, alfaiataria e elementos do streetwear — sempre com o compromisso de representar uma moda que não se distancia das realidades que a inspiram. Entre tons sóbrios, modelagens marcantes e referências à biodiversidade, a coleção dialoga diretamente com a nova campanha da marca, inspirada na força do levante popular da Cabanagem (1835), um marco de resistência da região Norte.
Nesta entrevista à BAZAAR Brasil, os criadores compartilham bastidores do processo criativo, refletem sobre a presença da representatividade nas passarelas, comentam a expansão internacional da marca e discutem a importância de ocupar a SPFW — especialmente em um ano em que o evento celebra três décadas de história. O projeto também marca o segundo ano consecutivo de parceria com a Kenner, que assina os calçados da coleção. “A colaboração é reflexo da nossa essência de inovação e de identidade regional, que combina muito com a profundidade das peças produzidas por eles. Queremos seguir inspirando e surpreendendo, sem perder a personalidade e a irreverência que fazem parte da nossa história”, afirma Renata Simon, diretora de produto da marca
HARPER’S BAZAAR BRASIL – Como foi o processo de pesquisa e imersão na estética e cultura nortista? Com quais símbolos ou expressões vocês mais se conectaram?
Hisan Silva e Pedro Batalha – A pesquisa para essa coleção parte do princípio de que jamais conseguiríamos abordar todos os aspectos da região Norte do Brasil. Isso porque entendemos sua extensão e diversidade como algo impossível de compactar. A partir disso, começamos a mergulhar em alguns processos históricos, revoltas político-sociais e aspectos culturais do cotidiano que reverberam e se conectam com o Norte atual.
Escolhemos o movimento da Cabanagem (1835) como ponto inicial da nossa pesquisa, uma vez que a Dendezeiro sempre busca trazer luz à moda enquanto ferramenta política. É claro que também bebemos o máximo possível da diversidade da fauna e da flora presentes na região, e, com isso, mergulhamos um pouco mais no universo da pesca e em como essa atividade está presente na história do Norte.
Entendemos que há um aspecto religioso muito presente, uma espécie de coexistência de múltiplas crenças, que é encantadora. Bebemos de todas as fontes: católicas, Encantaria, Pajelança, Tambor de Mina, Candomblé — e compreendemos a importância da esfera espiritual para essa região. Olhamos para as manifestações culturais e realizamos algumas entrevistas com pessoas do Norte para entender, de forma mais sensível, como foi sua criação, educação, memórias da infância e percepções da vida adulta. Foi uma pesquisa que nos enriqueceu muito ao longo de todo o processo. Não temos mais o mesmo olhar sobre o Brasil depois de mergulhar um pouco mais na imensidão que é o Norte.

Dendezeiro apresenta “Brasiliano 2” – Foto: Guilherme Luz
HBB – A coleção propõe um encontro entre tradição e contemporaneidade. Como foi equilibrar essas forças nos materiais, formas e styling?
HS e PB – Acreditamos que uma das forças da Dendezeiro está na forma como traduzimos nossa pesquisa em linguagem de moda — de maneira fashion e não óbvia. Ainda existe certa sobriedade nas tonalidades, no nosso tradicional monocromático, mas agora em diferentes formas, silhuetas e materiais.
A pesca e a água são elementos centrais nas nossas criações, e por isso estão bastante representados em estampas, cortes e cores. Trazer esses elementos para dentro do universo street/alfaiataria é a grande chave da coleção, que desta vez vem com um apelo comercial maior — sem deixar de lado os looks mais fantasiosos, como a Dendezeiro gosta de fazer.
A combinação de elementos da marca, os calçados com a Kenner, os acessórios feitos pela artesã Loo Nascimento, e a beleza assinada por Ulisses (Gotham), constroem a narrativa que queremos contar em cada look.
HBB – O que mudou para a Dendezeiro entre o “Brasiliano 1” e o “Brasiliano 2”? Vocês sentem que a marca entrou em uma nova fase?
HS e PB – Acreditamos que encontramos nossa linha criativa com o Brasiliano 1, mas que cada coleção representa uma nova jornada de aprendizado e aperfeiçoamento do nosso trabalho. Brasiliano é um projeto escrito em três capítulos, que busca trazer nosso olhar sobre alguns pontos culturais do Brasil e, com isso, propor novas formas de pensar roupas, modelagens e tecidos.
A cada edição, percebemos mais o equilíbrio entre nosso aspecto comercial e artístico — o que torna a marca cada vez mais presente de forma única no mercado. A inauguração da flagship em Salvador, recentemente, abriu nossos olhos para uma nova demanda de mercado, e isso estará refletido nesta nova coleção.
HBB – A Dendezeiro já ultrapassou as fronteiras do Brasil com força. Como é equilibrar esse reconhecimento internacional com a missão de valorizar o Brasil profundo?
HS e PB – Costumamos dizer que a Dendezeiro é uma marca para o mundo e para todos. É possível expandir nossas fronteiras para outros países e continentes sem perder a essência de onde viemos. Inclusive, é um processo conjunto.
Trata-se de uma mudança de mentalidade que precisa ser geral, para que possamos construir uma moda nacional mais orgulhosa de si. Estamos comunicando uma mensagem para o mundo — rompendo constantemente nossas próprias barreiras climáticas ao criar roupas que, muitas vezes, nem são possíveis de usar no clima de Salvador, por exemplo. Mas fazemos isso justamente para mostrar que, mesmo sendo daqui, não temos limitações criativas para vestir diferentes lugares e pessoas. Estamos em constante equilíbrio e expansão.
HBB – O DNA da marca sempre esteve ligado à representatividade. Como vocês enxergam o impacto real que estão causando dentro e fora das passarelas?
HS e PB – Não acreditamos que, atualmente, exista espaço para marcas que tratem a diversidade como um item de calendário a ser cumprido, em vez de um pilar de sustentação. Nosso objetivo, desde o início, sempre foi criar um imaginário potente na mente de grupos marginalizados.
A moda é um dos berços da autoestima no mundo. Ela dita padrões de beleza, cores da estação, corpos ideais — e com isso, afeta diretamente a mentalidade de uma população que não se vê representada no que está posto. A Dendezeiro sempre propôs a criação de nossos próprios referenciais, para que não adoecêssemos com a ausência de representatividade.
Ficamos extremamente felizes com a quantidade de depoimentos que recebemos, TCCs que utilizam a marca como objeto de pesquisa, e com a forma como as pessoas percebem nosso trabalho no dia a dia. Isso só comprova que a semente que plantamos há seis anos está gerando frutos nas pessoas — e isso impacta diretamente na forma como elas se enxergam no mundo.

Dendezeiro apresenta “Brasiliano 2” – Foto: Guilherme Luz
HBB – O que significa estrear mais uma coleção no SPFW, especialmente em um ano que celebra os 30 anos da semana de moda?
HS e PB – Para nós, é sempre uma felicidade poder mostrar nosso trabalho na SPFW e participar de um momento histórico de resistência do evento, que por muitos anos enfrentou barreiras para continuar impulsionando a moda nacional. Estar aqui hoje é construir uma nova narrativa para as gerações futuras e, cada vez mais, criar um espaço de acolhimento para quem vem lá na frente.
HBB – Como vocês enxergam a evolução da moda brasileira nesses 30 anos? E onde acham que ela ainda precisa avançar?
HS e PB – É impossível não notar a transformação da moda brasileira nas últimas três décadas, especialmente no que diz respeito ao protagonismo de pessoas que antes tinham seus créditos apagados. É lindo ver a presença crescente de designers negros e indígenas, por exemplo — não apenas desfilando nas passarelas, mas também nas universidades, encarando a moda como um sonho possível.
Isso nos dá esperança de um futuro no qual trataremos a moda com uma linguagem totalmente diferente da que vivemos hoje. Cada vez mais, esse setor — que é o segundo mais poluente do mundo — precisa rever seus processos, para que possamos deixar um espaço próspero às próximas gerações, sem danos irreversíveis ao planeta.
Se olharmos para 30 anos atrás, as grandes passarelas de moda no Brasil não toleravam a diversidade em seus castings, designers e stylists. No entanto, já existiam — inclusive em Salvador — passarelas alternativas que celebravam suas próprias culturas e raízes, mas que não eram reconhecidas como moda, apenas como fonte de pesquisa para serem apagadas de seu protagonismo. Hoje, esse protagonismo está sendo retomado — mas ainda há um longo caminho pela frente.
HBB – Vocês sentem que parte da moda nacional ainda olha pouco para dentro — para a cultura regional, para os saberes populares? Por que acreditam que isso acontece? E como esperam que esse cenário mude?
Acreditamos que sim. Existe um olhar para dentro, mas muitas vezes ele é superficial — um olhar que busca extrair referências sem oferecer o devido retorno social e cultural. A moda é o espelho da sociedade, ela reflete o momento histórico em que vivemos e, por isso, também é nossa responsabilidade pensar no que vamos refletir de volta para o mundo.
Existe uma riqueza inesgotável nos saberes populares — e a moda sempre soube disso. O problema é que ainda não conseguimos dar o devido valor às nossas formas de produção, aos nossos artesãos, costureiras, rendeiras, e por aí vai. Muitas pessoas valorizam mais uma bolsa internacional do que uma bolsa feita com a mesma técnica, o mesmo couro e a mesma qualidade por artesãos locais, muitas vezes vindos do interior do Brasil. A marca internacional ainda é vista com mais prestígio do que a nacional — e isso precisa mudar.
HBB – Que tipo de legado vocês gostariam de deixar com a coleção “Brasiliano 2”? Qual o impacto mais importante que esse desfile pode causar?
Acreditamos que a mensagem principal é iluminar a diversidade que temos em nosso país. Como dissemos antes, jamais conseguiríamos falar do Norte em sua totalidade, mas olhar com sensibilidade para sua cultura, seus aspectos sociais e seu ecossistema abre possibilidades de expansão e reconhecimento para esse território.
O Norte precisa ser valorizado historicamente, também pelas resistências que enfrentou ao longo dos anos e pela forma de vida de sua população, que merece ser respeitada. Há um livro da pesquisadora roraimense Violeta Loureiro, chamado Amazônia: Colônia do Brasil, em que ela mostra como a Amazônia deixou de ser colônia de Portugal para se tornar colônia do próprio Brasil. Isso, por si só, já nos faz refletir sobre o quanto ainda tratamos o Norte como uma colônia de exploração nacional.
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