Em noite especial, Eliminadorzinho, Chococorn e Bella e o Olmo da Bruxa expandem fronteiras do emo em São Paulo
Uma nova leva de bandas brasileiras tem abraçado não só o rótulo que Ian MacKaye chamou de “a coisa mais estúpida que eu já ouvi em toda a minha vida”, como até mesmo resgatado outras sonoridades

texto e vídeos de Bruno Capelas
fotos de Douglas Mosh
Em algum momento em meados dos anos 2000, uma profusão de bandas de rock tomou de assalto as rádios e a MTV brasileira com um som acelerado, vocais gritados e letras chorosas. Com alguma dose de maquiagem, roupas xadrez e franjas ostensivas, essa geração fez a fama do termo “emo” – lexicalmente, uma abreviatura para “emocore” ou, ainda, o “emotional hardcore” praticado já há algum tempo nos EUA. Mas, em meio a essa importação, patrocinada por gravadoras e acolhida pela mídia daquela época, partes significativas de um gênero cujas raízes remontam a nomes como Ian MacKaye e Guy Picciotto ficaram perdidas na tradução. É algo que deu ao movimento nacional uma cara mais pop-punk-palatável/descartável – e claro, levou muita gente a criar ojeriza ao estilo.
Passados 20 anos, uma nova leva de bandas brasileiras tem abraçado não só o rótulo que Ian MacKaye chamou de “a coisa mais estúpida que eu já ouvi em toda a minha vida”, como até mesmo resgatado outras sonoridades que compunham a geografia emo das últimas décadas. No primeiro domingo de abril, 6, quem esteve em São Paulo pode conferir uma amostra significativa de três desses grupos: Eliminadorzinho, Chococorn and the Sugarcanes e Bella e o Olmo da Bruxa, que se apresentaram ao melhor estilo “festival de matinê” em uma das casas mais simbólicas para o estilo – o Hangar 110, no Bom Retiro, responsável por abrigar muitos dos primeiros shows das bandas da geração emo 00.
Quem abriu os trabalhos foi a Eliminadorzinho, única representante paulistana da noite – e talvez a menos emo das três bandas. Em formato de power trio, Gabri Eliott (voz e guitarra), João Pedro Haddad (baixo e vocais) e Tiago Schützer (bateria e vocais), mostraram sim letras emocionais, mas que remetem muito mais ao universo do rock alternativo do que exatamente ao padrão-ouro do estilo.
Prejudicada por interferências no microfone de Gabri, em um problema que também afetaria as outras bandas da noite, o grupo começou mostrando as belas canções de “Rock Jr.”, elogiado álbum de 2021 que eles desbravaram faixa a faixa aqui no Scream & Yell – destaque para a abertura com a j-mascisniana “Eu Só Preciso de Um Tempo”, a confessional “Pompeia” (que eterniza o Sesc do bairro em um refrão marcante) e a porradaria de “Verde”, rendendo aos presentes o primeiro mosh da noite.
Mas, mais do que tocar as faixas do trabalho lançado há quatro anos, o grupo queria mesmo era testar em palco as músicas que devem compor o próximo álbum da banda. “O nome do nosso último disco é Rock Jr., mas ele sofreu um acidente horrível e morreu. Essa é uma música nova”, brincou a certa altura a vocalista, antes de emendar uma sequência de canções aceleradas e cheias de humor irônico, na qual era possível entrever a influência de nomes como Hüsker Dü. Uma boa apresentação para dar início aos trabalhos, enquanto a pista do Hangar ia se enchendo de meninos, meninas e menines entre o final da adolescência e o começo da vida adulta – já na casa dos 30, este repórter era um dos raros presentes a exibir fios grisalhos no local, um comentário em primeira pessoa que dá o tom da noite.
Já com a audiência bastante preenchida, uma das grandes revelações de 2024 subiu ao palco: direto de Santa Bárbara d’Oeste, a Chococorn and the Sugarcanes mostrou rapidamente porque havia tanta gente presente para vê-los. Executando o grande “Siamês” praticamente na íntegra, o grupo provocou comoção generalizada ao trazer canções que mesclam o lado mais acelerado e conhecido do emo no Brasil com sofisticações que remetem ao repertório de bandas como American Football – a ponto de contar até com um saxofonista convidado em alguns números.
A menção ao grupo americano não é à toa: se o estilo mais contemplativo e cheio de paredes intrincadas do grupo ficou conhecido como “midwest emo”, a Chococorn se autointitula orgulhosamente como uma banda de “emo caipira”. A essa definição, porém, valha talvez acrescentar outras duas. A primeira é o rock triste, “estilo” de formatação fluida que encapsula diversos conjuntos da cena brasileira atual. A outra é o fato de que o grupo barbarense é uma das primeiras bandas brasileiras a fazer de fato “college rock”, com letras que refletem o cotidiano universitário.
É algo percebido em letras que falam não só do vestibular, mas também de semestres letivos e competições como “O Tusca é Nosso” ou incidentes e elementos característicos como “Derby Solto” ou “Fiat Marea 2004” – duas faixas que fizeram muita gente pular e gritar no Hangar 110. Foi o caso também da maravilhosa “Caminhão de Mudança” ou do semi-hit “Dom Bosco S/A”, refletindo lições que a Chococorn aprendeu com outro grupo que roubou boas páginas do livro do “emão”, mas capaz de trafegar em outras frequências sonoras: a Lupe de Lupe.
Mais do que apenas grandes canções e temas de fácil identificação com muito dos presentes, porém, a Chococorn tem ainda um divertido e carismático vocalista principal e guitarrista base, Filipe “Pips” Bacchin, que alterna momentos de puro sarro com exclamações coletivas muito sinceras. Uma delas comoveu os presentes. “Nós não somos os melhores músicos do mundo, mas todo mundo sabe fazer uma coisinha bem – e a gente se junta e faz uma coisa bonita juntos”, disse, antes de introduzir o single “Se Isso Te Faz Feliz”. A faixa ganhou clipe recentemente – “e está até no Letterboxd”, brincou o vocalista, orgulhosamente vestido com uma camiseta da atlética de sua faculdade e um efusivo torcedor do Corinthians.
O resto do grupo não deixa por menos: Alexandre Luz (bateria) e Pietro Sartori (baixo) contribuem não só com uma cozinha interessante como também trazem camadas vocais muito poderosas; já o multitarefas Pedro Guerreiro (guitarra solo, mas também gaita e até bateria em alguns números) se desdobra para construir bonitas paredes de guitarra à la Mike Kinsella. Dito dessa forma, o resultado até parece muito sério, mas a verdade é que mais do que tudo, o show da Chococorn é extremamente divertido, com grandes momentos de catarse e bom humor.
Duas provas disso apareceram mais ao final do show: primeiro, quando a banda executou uma canção inédita, supostamente intitulada “A Vida de Messi”. Depois, no encerramento, quando o grupo atacou uma vinheta ao som dos versos de “Creep”, do Radiohead, dizendo justamente “e acabou o show / obrigado por vir” antes de desaguar em um dos refrães mais… sentimentais da história recente do rock. Bonito demais, em um belo momento para testemunhar uma banda que tem tudo para alçar grandes voos.
O relógio já marcava mais de 21h e os termômetros já começavam a baixar a temperatura numa rara noite fria em São Paulo quando a Bella e o Olmo da Bruxa viu as cortinas do Hangar se abrirem para seu show. Se a Chococorn são os calouros do momento, o grupo de Porto Alegre é uma espécie de veteranos da cena deste novo “emo”. Em diversas entrevistas prévias ao show, parte de uma turnê dos dois grupos pelo Sudeste, o vocalista do conjunto paulista declarou que descobriu ser capaz de fazer música após ouvir a Bella – declaração suficiente para justificar a posição de headliner dos gaúchos.
A bem da verdade, é preciso dizer que a Bella talvez seja o grande elemento de contato e transição entre a geração da Lupe de Lupe e a turma da Chococorn. Dessa forma, não surpreende ver que não só Vitor Brauer estava na plateia, mas também tem rodado capitais com o apoio dos gaúchos. Esse efeito de “ponte” fica claro ao longo do concerto do grupo, o mais próximo da cartilha emo entre as três da noite, seja pela proximidade de várias canções a um hardcore mais direto ou pela intensidade com que os vocalistas Pedro Acosta e Felipe Pacheco se aproximam dos microfones. (Tanta intensidade, diga-se de passagem, que os dois chegaram até a tomar alguns choques ao cantar, algo que também afetou a performance do grupo). Enquanto isso, o baterista Ricardo de Carli e a baixista Julia Garcia atuam discretamente, abrindo espaço para a interação dos dois cantores & guitarristas.
Foi uma ótima apresentação de mostruário da banda: em meio a gritos de “vamo Grêmio”, o quarteto gaúcho exibiu canções inéditas (criadas para um disco que, prometeu Acosta, chega ainda este ano) ao lado de alguns dos seus principais números, como “Neon Genesis Evangelion II”, “Valentina” e “Sofia Netuno”. Lados-B amados pelo público, mas costumeiramente ignorados pelo grupo, também apareceram, como é o caso de “Cecilia II” – executada depois que, em entrevista a um podcast, Acosta prometeu só tocar a canção se encontrasse um fã com uma tatuagem inspirada nela. Dito e feito.
Ao final, ainda teve tempo no bis para a Bella executar aquela que talvez seja sua canção mais pop e pegajosa, além de ter o melhor título possível: “Tu Me Trocou Por Um Cara Que Usa Sapatênis”, dona de um refrão que cita Tim Maia e foi feito para ser cantado não só em pequenas pistas, mas até em grandes estádios.
Talvez não seja esse o destino da Bella ou dos outros dois grupos que se apresentaram no Hangar naquela noite – o rock vive outros tempos, a MTV hoje é mais conhecida por reality shows e muitas das rádios de outrora pararam no tempo. Mas, por expandir as fronteiras do emo para além de poças cheias de lágrimas, entre razões e emoções, Eliminadorzinho, Chococorn and the Sugarcanes e o grupo gaúcho merecem muito mais do que lotar uma casa para 600 pessoas. Vale a pena torcer – e chorar – por eles.
– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Douglas Mosh é fotógrafo de shows e produtor. Conheça seu trabalho em instagram.com/dougmosh.prod|