De FIVs frustradas à barriga solidária: a luta de Jéssica para ser mãe

Quais são os caminhos e entraves para que alguém possa servir como barriga solidária no Brasil

May 10, 2025 - 11:32
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De FIVs frustradas à barriga solidária: a luta de Jéssica para ser mãe

Jéssica* e o marido tentaram engravidar por 16 anos. Diagnosticada com endometriose e adenomiose, doenças que dificultam a gestação, ela se frustrava a cada tentativa. E não foram poucas as vezes: fez cinco fertilizações in vitro (FIV). Nada funcionava — os testes de gravidez insistiam em mostrar uma única linha. Nem mesmo a fila de adoção a deixava sonhar com a maternidade.

Dois anos atrás, ela se inscreveu no Cadastro Nacional de Adoção, mas até hoje não teve nenhuma resposta.  “Não tenho nenhuma perspectiva. Em algumas cidades, o tempo de espera é de quatro anos. Em outras é de até oito. E a gente envelhece. Eu já estou com 44 anos”, lamenta.

Das dezenas de óvulos congelados, restava apenas um. Ela queria tentar mais uma vez, mas o médico achou arriscado. Sugeriu outro caminho: “Já ouviu falar em barriga solidária? Você não tem uma prima, alguém que possa engravidar por você?”. Jéssica nem sequer sabia que essa possibilidade existia no Brasil. Precisaria só encontrar uma mulher fértil disposta a gestar o bebê dela. E precisava ser certeira, afinal, era a última chance.

A história por trás dos bebês gerados pela reprodução assistida

No dia 25 de julho de 1978, nascia a britânica Louise Brown — o primeiro bebê gerado por meio de técnicas de fertilização in vitro. Dois anos antes, o pesquisador e biólogo Robert Edwards e o ginecologista Patrick Steptoe haviam convidado Lesley e John Brown para um experimento: coletar os óvulos dela, tentar fecundá-los em laboratório com os espermatozoides dele, e, então, transferir os embriões para o útero.

As chances eram mínimas, mas eles não tinham o que perder. Tentavam há anos engravidar, sem sucesso, por conta de um problema nas trompas de falópio de Lesley. Foram dezenas de tentativas falhas até Louise nascer.

No Brasil, o primeiro bebê gerado por FIV só nasceria em 1984. Assim como aconteceu no exterior, por aqui, rolou um debate acalorado sobre questões éticas. Um dos temas era a possibilidade da “cessão temporária de útero” — ou “barriga solidária” — como uma alternativa para mulheres impossibilitadas de gestar.

Ou seja: colocar uma terceira mulher para engravidar do bebê de outro casal. Mas como isso se daria na prática? E se houvesse uma disputa pelo bebê após o parto?

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As conversas de botequim ganharam as telas da tevê em 1990, com a estreia da novela Barriga de Aluguel. Nela, o casal Ana e Zeca, interpretados por Cassia Kiss e Victor Fasano, tristes com a infertilidade da esposa, contratam Clara (Cláudia Abreu) para ser “mãe de aluguel”.

Clara topa só pelo dinheiro. Até que, as duas mulheres se desentendem, e passam a disputar a guarda da criança após o nascimento. A trama nunca mais saiu do imaginário dos brasileiros. 

O que diz a legislação brasileira sobre barriga solidária

Barriga solidária não pode ser paga no Brasil
Legislação brasileira permite barriga solidária se houver vínculo parentesco ou de amizadeLuana Alves/CLAUDIA

Em 1992, pressionado pelo sucesso da novela e pela imprensa, o Conselho Federal de Medicina (CFM) criou uma resolução para proibir a contratação de “barriga de aluguel”. Desde então, ninguém pode cobrar mais para gestar o bebê de outra pessoa ou casal — isso porque o embrião é considerado um órgão e, assim sendo, de acordo com a lei brasileira, não pode ser comercializado.

O CFM liberou apenas as gestações solidárias, sem remuneração, mas não para qualquer pessoa: só poderia ceder o útero temporariamente a mãe ou a irmã da doadora genética.

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“O primeiro caso de barriga solidária, no Brasil, foi pela nossa clínica, em 1997. Era o caso de uma paciente que nasceu sem útero. A irmã, que já tinha um filho, se ofereceu para gestar. Eu ainda fazia obstetrícia, então acompanhei o parto. Ela teve um casal de gêmeos”, lembra a médica Maria do Carmo Borges, diretora da clínica de reprodução Fertipraxis.

Uma das regras do CFM é que a doadora do útero já tenha pelo menos um filho — isso permanece até hoje. E que a mãe encaminhe documentos e laudos médicos ao CRM (Conselho Regional de Medicinal) que comprovem a impossibilidade de gestar seus bebês. 

“Eu já questionei, via Lei de Acesso à Informação, qual o motivo de exigir que as doadoras de útero já tenham filhos. Pedi para me enviarem quais documentos embasam essa regra. Nunca me responderam”, contesta o advogado Henderson Furst, especialista em bioética.

“Nos bastidores, aventaram a possibilidade de ser uma forma de proteger as mulheres, pois há risco de perderem o útero. Mas essa não é uma informação oficial. Se for isso, compete ao CFM limitar a autonomia da mulher? Que isso seja, então declarado no termo de consentimento assinado pelas partes.”

Em 2010, o CFM atualizou as normas e autorizou homens solteiros e casais homoafetivos a recorrerem à barriga solidária. Só que ainda era impossível. A resolução manteve a regra de que a “dona” do útero fosse parente de primeiro grau da doadora genética.

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Em casos de casais homoafetivos, esses dados são anônimos. Ou seja, não se sabe quem doou os óvulos. No ano seguinte, o CFM consertou o erro. Estenderam a liberação de cessão de útero para tias e primas de ambos os pais — não apenas da mãe ou irmã. 

Atualmente, a resolução do CFM permite que a barriga solidária seja cedida não apenas por parentes, mas também por pessoas com vínculos de amizade. Nesses casos, porém, é necessário solicitar autorização prévia ao Conselho Regional de Medicina (CRM).

Tramita na Câmara dos Deputados o anteprojeto do novo Código Civil, que incluiu a resolução do CFM em relação à cessão temporária de útero. “Ele mantém o entendimento do CFM, dá uma força normativa de lei. Mas também significa maior dificuldade em alterações. E precisamos de uma nova lei, porque essa não especifica muita coisa. E se o bebê desenvolve alguma questão genética, ou pode comprometer a vida da gestante? Quem decide o que fazer?”, questiona Furst.

No exterior, países como Estados Unidos, Ucrânia, Colômbia, México e Israel, a legislação permite a remuneração da cessão de útero. Nem todos, no entanto, autorizam que casais homoafetivos solicitem o serviço. E os valores são bem altos: ultrapassam a casa dos R$ 300 mil.

Mulheres já engravidam para outras amigas no Brasil

Barriga solidária é possibilidade para algumas mulheres que não conseguiram engravidar
Existem diversos casos de mulheres que engravidaram para suas amigas através da barriga solidáriaLuana Alves/CLAUDIA
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Gabriela Gavioli estava numa piscina, quando uma amiga ginecologista puxou papo sobre barriga solidária. “Você engravidaria para outra pessoa?”. Mãe de dois filhos, casada com Thais Olardi (ambas trabalham como doulas), Gabriela respondeu que sim, sem titubear. “Eu nem sei bem porquê, mas eu sempre tive essa vontade, desde nova. Eu desejava mesmo fazer barriga solidária”, conta.

A médica se animou: havia encontrado uma saída para Jéssica, sua paciente, realizar o sonho de ser mãe. Thais e Jéssica eram amigas, mas Gabriela ainda não a conhecia tão bem. “É um assunto ainda sensível, ninguém sai falando sobre barriga solidária, então não sabíamos sobre a situação da Jéssica”, conta. 

Gabi e Jéssica se aproximaram e concordaram em entrar juntas nessa missão. Em casa, ela conversou com os dois filhos para explicar sobre a situação.  “Para eles, não ia fazer sentido a mãe grávida e depois não ter um irmão ou uma irmã. Então, introduzimos o assunto, perguntamos como eles se sentiam. Foram meses de conversa. Até que chegamos a um acordo: eles não teriam outra criança na casa, mas teriam um gato”, brinca Gabi. 

O último óvulo de Jéssica, que representava sua tentativa final de ser mãe, voou de São Paulo para o Ceará, onde as três moram. Jéssica cuidou da gestação como se estivesse em seu útero: acompanhou todos os exames e visitas à ginecologista, e cuidou das despesas financeiras extras ligadas à gravidez e ao bebê. 

“Todo gasto que ela teria se estivesse gestando, ela pagou. Vitaminas, remédios, injeções, honorários médicos, a transferência embrionária. Ela também instalou um ar condicionado no quarto, para diminuir o risco de ter mosquito à noite, por medo do zika vírus, pagou o gasto extra na conta de energia. Eu costumava fazer exercícios físicos sozinha em casa. Ela queria que eu fizesse com acompanhamento, então contratou um personal”, conta Gabi.

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Em fevereiro de 2025, depois de uma gestação tranquila, Gabriela pariu o filho de Jéssica. “Foi tudo muito tranquilo, a gravidez toda foi tranquila. Foi uma experiência muito gostosa, porque curtimos mesmo o processo, sem a preocupação de ter outro filho depois. Não queríamos outro filho”, explica Gabi.

“E foi lindo, porque o pai e mãe estavam lá, depois chegaram a avó, a tia e a irmã. Todo mundo chorando de emoção, até a equipe médica e a fotógrafa.”

As duas famílias seguem cada vez mais próximas, com encontros e visitas. “A Gabi foi maravilhosa. Nós éramos só amigas, mas hoje ela é uma irmã para mim. É uma gratidão sem tamanho a pessoa gestar um filho para você”, diz Jéssica.

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