Ao lançar “Novo Mundo”, Arnaldo Antunes conecta fios da meada de carreira tão pop quanto estranha

Em grande coro, Arnaldo faz questão de lembrar ao público que a vida é mais do que só comida – é necessidade, desejo e vontade, todos juntos numa roda só.

Apr 29, 2025 - 17:45
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Ao lançar “Novo Mundo”, Arnaldo Antunes conecta fios da meada de carreira tão pop quanto estranha

texto e vídeos de Bruno Capelas
fotos de Douglas Mosh

Revelado na grande onda do rock nacional dos anos 1980, Arnaldo Antunes soube pautar sua carreira solo de modo muito singular a partir de 1992, quando resolveu deixar os Titãs. Tal como aquela velha canção de Caetano, onde o queriam revólver, ele era coqueiro; onde o queriam família, maluco. Nesse jogo de apenas aparentes contradições, o artista ergueu uma sólida trajetória combinando sucessos de rádio com experimentações ousadas. Não chega, portanto, a ser uma surpresa vê-lo retomar esse caminho em 2025, com o lançamento do álbum “Novo Mundo”. No entanto, entender como essa combinação funciona ao vivo – como aconteceu em três noites do final de abril na comedoria do Sesc Pompeia – pode ser um exercício bastante interessante em tempos de um midstream cada vez mais estreito no Brasil.

Animado após uma bem-sucedida turnê dos Titãs que lotou estádios pelo País ao longo de 2023 e 2024, Arnaldo poderia ter aproveitado os polpudos milhões embolsados para ficar em casa esperando visita. Mas não foi o que aconteceu: lançado pelo independente Selo Risco (casa de jovens talentos como O Terno, Luiza Lian, Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, Maria Beraldo e Jadsa, entre outros), “Novo Mundo” traz o artista dialogando com velhos conhecidos (David Byrne, Marisa Monte) e novos amigos (Ana Frango Elétrico, Vandal), além da esmerada produção de Pupillo.

No palco, essa mistura também se dá de maneira interessante, com uma banda afiada: Curumin (bateria), Vitor Araújo (teclados), Kiko Dinucci (guitarra e programação), Chico Salem (violão e guitarra) e Betão Aguiar (baixo). Juntos, os cinco sobem ao palco primeiro, em um figurino todo preto desenhado por Marcelo Sommer. Depois, é a vez de Arnaldo aparecer de branco para abrir os trabalhos com a intensa faixa-título do novo trabalho. Com versos como “o passado já não traz aprendizado / o futuro se tornou uma ameaça”, “Novo Mundo” é um manifesto tão preciso do presente que parece até já fazer parte do passado – e oferece uma oportunidade para Kiko e Vitor começarem um ruidoso duelo que trará alguns dos melhores momentos da noite.

Entre eles, é fácil citar a releitura de “O Pulso” – uma das duas músicas dos Titãs que Arnaldo apresentou ao longo da noite. Mas ao contrário da versão reverente exibida em grandes palcos pelo grupo oitentista na turnê Encontro, a canção apareceu logo no início do show no Sesc Pompeia, de maneira poderosa, cheia de ruídos, com Dinucci abraçando o caos pós-punk da canção. Outro momento desses foi a dobradinha da nova “Tire O Seu Passado da Frente” com a veterana “Cultura” – do álbum de estreia de Arnaldo, “Nome” (1993) -, ligadas por uma longa viagem dub de três ou quatro minutos – a passagem, criada inicialmente para permitir uma troca de figurino de Arnaldo, faz o show alçar voos interessantes.

É curioso, porém, notar como as partes mais radicais do show se entremeiam a outras, mais acessíveis e radiofônicas. Logo após “O Pulso”, por exemplo, Arnaldo emenda as baladas “É Primeiro de Janeiro” e “Se Assim Quiser”, juntas do primeiro grande sucesso dos Tribalistas, “Já Sei Namorar” – de refrão tão fácil que o cantor até se permite sair do palco e ir para a galera no meio da música, em evidente comoção. Após a já citada “Cultura”, por sua vez, ele abre os braços para um de seus maiores hits solo, “A Casa é Sua”, não só cantada mas esgoelada pelo público que esgotou os ingressos das três noites do Sesc.

À primeira vista, o choque entre os dois pólos oferecidos por Arnaldo provoca estranheza. Não é de hoje: como pode o herdeiro dos concretistas e o vocalista de um grupo que chamou a atenção pela violência poética também ter canções de amor singelas, às vezes até simplórias, como “Passe em Casa”? Como dar conta de um romantismo inocente como o de “Pedido de Casamento”, e, na sequência, lidar com um grito quase primal como o de “Fora de Si”? Por que preferir uma antiga faixa pouco compreensível a um sucesso cantarolável como “Saiba”, “Essa Mulher”, “Consumado” ou “Paradeiro”, todos ausentes do setlist?

Aos poucos, porém, a ficha vai caindo – e talvez mais agora do que em qualquer outro momento da carreira, Arnaldo Antunes está pronto para ligar os dois fios da mesma meada. O que ele propõe em “Novo Mundo” (e alcança com grande dose de sucesso!) é nada mais do que um profundo humanismo, uma busca pelo que faz essa espécie ser… humana. E isso passa pela poesia mais banal dos nossos dias, mas também reconhece o lado mais radical da nossa própria existência. Talvez seja algo que ele tenha sempre proposto, mas em tempos tão extremos, a mensagem está cada vez mais clara.

Ele não está só nessa ideia, claro. Muito do que acontece no show de “Novo Mundo” remete a outro grande espetáculo dos nossos tempos: “American Utopia”, de David Byrne – outro artista cuja curiosidade pelo humano sempre esteve em alta. Aqui, a comparação se refere menos à coreografia cênica: Arnaldo não repete com seus músicos o balé coreografado de Byrne, mas parte da mesma estratégia de revisita sonora de uma carreira inteira para desvendar o que há por trás do homo sapiens. Das escolhas de luz ao figurino, passando pela capacidade de emendar um repertório variado, o show de Arnaldo está umbilicalmente ligado ao do parceiro.

Há um momento, inclusive, em que essa sinapse se manifesta de maneira mais intensa: na parceria entre o titã e o americano em “Body/Corpo”, executada logo após “A Casa É Sua”. No palco, a voz gravada de Byrne e a emitida ao vivo de Arnaldo dialogam, em um efeito que remete à literalmente cerebral “Here”, que abria o supracitado show do ex-Talking Heads. Mas há uma diferença sutil: enquanto a canção do americano é linear, a de Arnaldo traz um sutil trocadilho: repetida rapidamente no refrão, a palavra “body” logo se transforma em “bole”, convidando quem ouve a música a rebolar os quadris. Não é o único momento dançante da noite: em várias horas, é interessante perceber como o rock vira samba, xaxado ou bole-bole, fazendo o público bailar por cima das guitarras, em uma amostra da capacidade cancioneira do artista.

Outra dessas amostras surge na sequência final do set principal, com a introdução torta e neoconcreta de “Agora” se ligando ao charme pop de “Socorro” – hino escrito nos anos 1990, mas parece cada vez mais pronta para soar nos algoritmos de agora. As duas fazem cama para outra ligação interessante: a nova “Tanta Pressa Pra Quê” e a já citada “Passe Em Casa”, numa execução tão simpática quanto um convite para tomar um chá com bolo em dia frio.

No bis, contudo, é quando o projeto estético de Arnaldo se torna ainda mais evidente. Primeiro, com a já citada “Fora de Si” fazendo a antítese simbólica da canção anterior. Depois, com um hino de 1987 soando fresco como raras vezes aconteceu nos últimos anos: após temporadas sendo desgastada em aulas de artes e releituras de barzinho, “Comida” surge vigorosa em um arranjo que recupera sua raiz à la Gang of Four, em mais uma cortesia do punk de carteirinha Kiko Dinucci. Em grande coro, Arnaldo faz questão de lembrar ao público que a vida é mais do que só comida – é necessidade, desejo e vontade, todos juntos numa roda só. Se o novo mundo em que vivemos tem “cada vez mais casca e menos substância”, é bom lembrar que ainda há artistas que querem o inteiro e não pela metade. Com o perdão do trocadilho, caro leitor: para os próximos meses, está aí um show pelo qual vale a pena não pagar meia entrada.

– Bruno Capelas (@noacapelas) é jornalista. Apresenta o Programa de Indie e escreve a newsletter Meus Discos, Meus Drinks e Nada Mais. Colabora com o Scream & Yell desde 2010.
– Douglas Mosh é fotógrafo de shows e produtor. Conheça seu trabalho em instagram.com/dougmosh.prod