Crítica: Em novo disco, Marcelo Perdido registra experiência de uma juventude em construção, na internet e na rua
Perdido fez o disco por conta própria, produzindo sozinho em casa. É um exercício do bedroom pop, movimento que une pessoas em seus quartos gravando álbuns, de Seul à Copacabana.

texto de Manoel Magalhães
As questões de Marcelo Perdido em “O inacreditável resto de nossas vidas” (2025) são encontradas todas já no começo do século passado no último volume da obra de um certo Marcel que mudou a literatura. Em “O tempo recuperado” (1927), Proust decide usar uma festa como mote para pensar a passagem do tempo, a arte, a importância de cada história de vida, a sociedade e a finitude. Já Marcelo, usa um álbum para discutir parte dessas questões nas primeiras décadas do século XXI. É o indivíduo tratando temas coletivos em uma obra a partir de sua percepção limitada pelas questões de classe. O escritor francês era um burguês vivendo entre aristocratas. Perdido vive a classe média metropolitana na América do Sul.
Uma frase resume bem o álbum novo do artista: “quando eu olho no espelho / nem sempre eu me vejo / com a idade que eu tenho”. Não são mais de 30 anos correndo contra o tempo, é uma vida inteira lidando com o nosso único bem existencial. “Tempo é tudo que somos”, sintetizou um outro compositor. O retrato do Marcelo de hoje ficou dividido em 18 músicas confessionais sem separação clara de quando o autor fala de si ou fala de nós, os outros, que escutam canções no celular enquanto dividem a fila do supermercado com ele.
Na temática das letras, o álbum é uma coletânea de tratados curtos a respeito de temas latentes de quem está deixando de ser jovem. “Exatamente bem” discute saúde mental, um tema prioritário na internet, “A gente diz que tá aprendendo a amar” trata da impermanência nas relações fora de comunidades estruturadas, a tal vida líquida de Bauman. “Trabalhar na MTV” fala de emprego, assunto pouco explorado em canções no geral. Toda uma geração sonhou em ter a carteira assinada pela MTV, mas acabou num escritório de 9h às 18h ou pejotizado. Perdido pelo menos passou pelo prédio da Abril na Avenida Professor Alfonso Bovero, 52. Lá dirigiu programas como o 15 Minutos e utilizou a canção para prestar homenagem à uma época em que era possível ser mais utópico. Acredite, a indústria do entretenimento já existia antes da internet e as pessoas pareciam sonhar com ídolos que não precisavam vender shampoo. Embora muitos já vendessem.
A faixa da MTV foi lançada como single em 2023 e tem a participação dos Pullovers, banda indie paulistana que alcançou certo resumo geracional com o álbum “Tudo que eu sempre sonhei”, de 2009. É mais uma escolha que amarra a vida do compositor ao inconsciente coletivo de uma parcela dos Xennials e Millennials brasileiros. No vídeo da música estão representadas duplas de um nicho muito específico. Beavis and Butt-Head, Habacuque e Chapolim, do Ludov, Polar e Moptop (bandas do Rio de Janeiro nos anos 2000), Marcelo Perdido e Luiz Venâncio. Todos já passaram pela tela da finada Music Television Brasil.
É especialmente interessante a canção “E aí, AI?”. Perdido fala com a inteligência artificial sobre a apreensão que as máquinas geram nos humanos. É algo como cantar e conversar (ao mesmo tempo) com a Alexa, da Amazon. Desde 1968, a comunicação com HAL 9000 em “2001 – Uma Odisseia no Espaço” traz um medo humano da realidade para a ficção, mas estamos em 2025 e as máquinas se mostram menos assustadoras do que nossa obsessão por elas. Provavelmente Proust entendeu as questões humanas essenciais antes de Arthur C. Clarke. É gostoso escutar a voz suave da inteligência artificial, a faixa poderia facilmente figurar nas compilações em CD que a rede de cafeterias Starbucks lançou nos anos 2000.
Perdido fez o disco por conta própria, produzindo sozinho em casa. É um exercício do bedroom pop, movimento/gênero internacional que une pessoas em seus quartos gravando álbuns, de Seul à Copacabana. O formato parece adequado às questões discutidas nas músicas, de sentimentos mediados pela tecnologia naturalizada no nosso cotidiano. Aplicativos de relacionamento, canções feitas na cama com os assuntos mais comentados nas redes sociais. A vida sem separação entre experiência física e digital. No álbum, você fica em dúvida o tempo todo se alguém tocou o instrumento, se o som foi programado, se a cantora existe ou foi criada por um computador. Nada disso importa se as pessoas estão expressando as suas vidas e verdades. É o caso aqui.
O vídeo de “Cachorro Pequeno”, lançado para divulgar o disco, mostra a relação de Marcelo com o seu cão, Chili. Os dois envelheceram juntos e são um documento íntimo da força transformadora do tempo (“nossa vigésima casa / vou perdendo a conta dos anos / mas bora comigo”). O compositor fala de filhos em “Neném”, fobia social é o tema de “Ele é tão galera”. Assuntos que contextualizam sua relação com o mundo, mesmo que todas as letras pareçam fazer o ouvinte retornar ao quarto em que as canções foram gravadas. As experiências ficam restritas ao espaço no qual nos trancamos? Proust ia a festas e depois se trancava para escrever. Perdido fecha-se tentando comunicar um mundo cheio de festas em que não estamos, mas gostaríamos. O diálogo não se encerra mais em um quarto fechado.
O disco, além de seu motivo mais natural, o prazer com a música, acrescenta uma pequena camada de artefato arqueológico digital dos anos 20 à sua razão de existir no século XXI. É a vida do Marcelo, mas é também um pouco da experiência de uma juventude brasileira em construção, na internet e na rua. Espero que você tenha tempo para escutar.
– Manoel Magalhães (@manoelmagalhaez) é músico, jornalista e produtor. Vive no Rio de Janeiro.