Marcello Mio— o cinema, o actor, a sua filha e o filme dela

Chiara assombrada por Marcello: uma fábula sobre o apelido "Mastroianni" Em Marcello Mio, o realizador francês Christophe Honoré filma Chiara Mastroianni e Catherine Deneuve através das memórias de Marcello Mastroianni: é uma história familiar que, subtilmente, se transfigura em celebração do cinema e dos prazeres da cinefilia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 abril).Perante um filme como Marcello Mio — revelado no Festival de Cannes de 2024, a partir de hoje nas salas portuguesas —, sentimos emergir uma pergunta bizarra, com o seu quê de inquietante. Ou seja: entre as novas gerações de espectadores, educados entre videojogos e plataformas de “streaming”, quantos serão aqueles que sabem que Chiara Mastroianni é filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve? Na pior das hipóteses, podemos até imaginar que muitos desses espectadores, ignorando os prazeres e poderes da cinefilia, perguntarão: Marcello quê? E Deneuve? “Connaît pas”.Tendo em conta que vivemos num mundo em que o horror do Big Brother televisivo conquistou um lugar cativo nos ecrãs do glorioso e vetusto continente europeu, convenhamos que o impossível se tornou moeda de troca do quotidiano — com a cumplicidade festiva, festivamente irresponsável, dos cantões mais sinistros dos nossos ecrãs caseiros. Pois bem, tanto pior para a ditadura mediática de tais obscenidades: ainda há cinéfilos!O cineasta francês Christophe Honoré é um desses cinéfilos, por certo dos mais subtis e militantes, e decidiu fazer um filme sobre Chiara Mastroianni. Ou melhor, sobre as memórias do seu pai, falecido em 1996 (o seu filme final foi Viagem ao Princípio do Mundo, de Manoel de Oliveira). Ou ainda sobre Chiara em diálogo com a mãe...Nenhuma sinopse nos pode ajudar a descrever a maravilhosa alegria poética de Marcello Mio, povoada de infinitas tristezas como a paixão romântica exige. Digamos, para simplificar, que tudo começa no facto de o rosto de Chiara existir habitado, porventura assombrado, pelos traços do pai. É ela que pergunta a Catherine: “Não vês que eu tenho a cara do papá?” Parece um assombramento, de facto, ainda que a mãe, atenta à ciência das fisionomias, não permita simplificações precipitadas: “Sabes, também te pareces comigo. Não tens só Mastroianni, também tens uma parte minha, tanto quanto dele”. As coisas complicam-se um pouco mais quando, ao fazer um teste para um filme da actriz/cineasta Nicole Garcia (também “no seu próprio papel”), ela lhe diz, literalmente: “Esperava que representasses um pouco mais Mastroianni que Deneuve”.Estamos, bem entendido, muito longe das patranhas televisivas em que se procura que alguém verta algumas lágrimas como prova inquestionável de verdade. O que, em qualquer caso, não exclui (muito pelo contrário!) a tenacidade com que Chiara, vestindo-se e comportando-se como Marcello, se afirme ela própria como investigadora de uma verdade radical, pressentida nas memórias do pai, todos os dias agredida pela facilidade das imagens dominantes. Não por acaso, a comédia dramática que Chiara protagoniza vai ter uma cena decisiva no interior de um estúdio de televisão, carregado de luzes, cores garridas, sorrisos postiços e ruidosa desumanização. Músicas e cançõesVale a pena recordar que a trajectória do realizador Christophe Honoré (nascido em 1970), também responsável pelo argumento de Marcello Mio, não é estranha a estes sobressaltos cinéfilos e musicais da natureza humana. Musicais? Sim, porque ele volta a convocar músicas e canções do imaginário popular como subtis elementos narrativos. Lembremos, a propósito, os casos exemplares de As Canções de Amor (2007) e Os Bem-amados (2011) — ambos com Chiara Mastroianni, o segundo também com Catherine Deneuve.Marcello Mio é, enfim, o mais anti-biográfico dos filmes biográficos. Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve e alguns outros cúmplices da herança de Marcello Mastroianni — incluindo o impagável Fabrice Luchini — reuniram-se, afinal, para dar corpo ao mais difícil: um filme de declarado artifício em que triunfa o realismo dos afectos. Luchini di-lo numa frase que faria sentido colocar à entrada de alguns estúdios de televisão: “Não devemos exagerar na nossa capacidade de racionalizar o mundo”.

Apr 27, 2025 - 21:57
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Marcello Mio— o cinema, o actor, a sua filha e o filme dela
Chiara assombrada por Marcello: uma fábula sobre o apelido "Mastroianni"

Em Marcello Mio, o realizador francês Christophe Honoré filma Chiara Mastroianni e Catherine Deneuve através das memórias de Marcello Mastroianni: é uma história familiar que, subtilmente, se transfigura em celebração do cinema e dos prazeres da cinefilia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 abril).

Perante um filme como Marcello Mio — revelado no Festival de Cannes de 2024, a partir de hoje nas salas portuguesas —, sentimos emergir uma pergunta bizarra, com o seu quê de inquietante. Ou seja: entre as novas gerações de espectadores, educados entre videojogos e plataformas de “streaming”, quantos serão aqueles que sabem que Chiara Mastroianni é filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve? Na pior das hipóteses, podemos até imaginar que muitos desses espectadores, ignorando os prazeres e poderes da cinefilia, perguntarão: Marcello quê? E Deneuve? “Connaît pas”.
Tendo em conta que vivemos num mundo em que o horror do Big Brother televisivo conquistou um lugar cativo nos ecrãs do glorioso e vetusto continente europeu, convenhamos que o impossível se tornou moeda de troca do quotidiano — com a cumplicidade festiva, festivamente irresponsável, dos cantões mais sinistros dos nossos ecrãs caseiros. Pois bem, tanto pior para a ditadura mediática de tais obscenidades: ainda há cinéfilos!
O cineasta francês Christophe Honoré é um desses cinéfilos, por certo dos mais subtis e militantes, e decidiu fazer um filme sobre Chiara Mastroianni. Ou melhor, sobre as memórias do seu pai, falecido em 1996 (o seu filme final foi Viagem ao Princípio do Mundo, de Manoel de Oliveira). Ou ainda sobre Chiara em diálogo com a mãe...
Nenhuma sinopse nos pode ajudar a descrever a maravilhosa alegria poética de Marcello Mio, povoada de infinitas tristezas como a paixão romântica exige. Digamos, para simplificar, que tudo começa no facto de o rosto de Chiara existir habitado, porventura assombrado, pelos traços do pai. É ela que pergunta a Catherine: “Não vês que eu tenho a cara do papá?” Parece um assombramento, de facto, ainda que a mãe, atenta à ciência das fisionomias, não permita simplificações precipitadas: “Sabes, também te pareces comigo. Não tens só Mastroianni, também tens uma parte minha, tanto quanto dele”. As coisas complicam-se um pouco mais quando, ao fazer um teste para um filme da actriz/cineasta Nicole Garcia (também “no seu próprio papel”), ela lhe diz, literalmente: “Esperava que representasses um pouco mais Mastroianni que Deneuve”.
Estamos, bem entendido, muito longe das patranhas televisivas em que se procura que alguém verta algumas lágrimas como prova inquestionável de verdade. O que, em qualquer caso, não exclui (muito pelo contrário!) a tenacidade com que Chiara, vestindo-se e comportando-se como Marcello, se afirme ela própria como investigadora de uma verdade radical, pressentida nas memórias do pai, todos os dias agredida pela facilidade das imagens dominantes. Não por acaso, a comédia dramática que Chiara protagoniza vai ter uma cena decisiva no interior de um estúdio de televisão, carregado de luzes, cores garridas, sorrisos postiços e ruidosa desumanização.

Músicas e canções

Vale a pena recordar que a trajectória do realizador Christophe Honoré (nascido em 1970), também responsável pelo argumento de Marcello Mio, não é estranha a estes sobressaltos cinéfilos e musicais da natureza humana. Musicais? Sim, porque ele volta a convocar músicas e canções do imaginário popular como subtis elementos narrativos. Lembremos, a propósito, os casos exemplares de As Canções de Amor (2007) e Os Bem-amados (2011) — ambos com Chiara Mastroianni, o segundo também com Catherine Deneuve.
Marcello Mio é, enfim, o mais anti-biográfico dos filmes biográficos. Chiara Mastroianni, Catherine Deneuve e alguns outros cúmplices da herança de Marcello Mastroianni — incluindo o impagável Fabrice Luchini — reuniram-se, afinal, para dar corpo ao mais difícil: um filme de declarado artifício em que triunfa o realismo dos afectos. Luchini di-lo numa frase que faria sentido colocar à entrada de alguns estúdios de televisão: “Não devemos exagerar na nossa capacidade de racionalizar o mundo”.