10 Considerações sobre Memórias de Marta, de Júlia Lopes Almeida ou sobre nossos outros cortiços da literatura brasileira

O Blog Listas Literárias leu Memórias de Marta, de Júlia Lopes de Almeida, publicado pela Penguin & Companhia das Letras; neste post, as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou sobre os outros cortiços da literatura brasileira, confira:1 - Publicado pelo selo Penguin & Companhia das Letras que dedica-se a clássicos da literatura, como de praxe do selo, além da obra, a publicação reúne um importante conjunto de discussões acerca deste trabalho e da literatura de Júlia Lopes Almeida, uma das mulheres precursoras em nossa literatura. Neste volume temos uma introdução or Anna Faedrich e nota de edição de Rodrigo Jorge Neves. Além destes, acompanham ao final do livro notas, apêndice e uma cronologia da carreira da autora;2 - Dito isso, podemos nos concentrar na narrativa de Memórias de Marta. A publicação toma por base o texto da terceira edição do romance, de possivelmente entre 1925 e 1930. A primeira publicação ocorre em 1888 e como indica o título é a narrativa em primeira pessoa por Marta, uma mulher que por meio das palavras resgata suas experiências traumáticas relacionadas à pobreza e à condição que ela e a mãe passam a viver após dívidas e morte do pai que obrigan-nas a viver em um dos tantos cortiços cariocas;3 - Aliás, vale dizer que mostra-se interessante esse processo de distanciamento que a narradora constrói entre ela e o cortiço, isso porque não seria ela uma habitante natural daquele lugar radicalmente empobrecido, já que até parte de sua infância vivera ao modo burgês, o qual a família tem de abandonar após uma série de infortúnios do pai e sua morte posterior em virtude de uma epidemia. Esse é um detalhe importante na leitura e interpretação do texto, especialmente pela lembrança de tratar-se de obra vigente no naturalismo, ao qual a autora filia-se e, inclusive, há referência textual no próprio romance em relação a isso. Marta teve de parar no cortiço, mas nunca foi de lá uma habitante natural e isso é perceptível na sua relação com os vizinhos e mesmo no desfecho trágico de alguns deles, já que o meio inviabiliza qualquer mudança;4 - Essa compreensão é importante na interpretação do processo e da mudança da mulher que narra o passado numa condição, é bem verdade, não de todo fácil, mas diferente da perpetuação do cortiço como ocorre com a Ilhoa e seus filhos (amigos de infância de Marta). A voz que nos narra é uma professora, o que descobriremos aos poucos, ou seja, de certo modo uma moradora do cortiço que vivencia certa ascensão social, ilusória, bem verdade, já que uma condição ainda inferior à realidade passada da família. Ainda assim, Marta sairá do cortiço, mas isso pouco tem a ver com alguma quebra ou fragilidade no seu olhar naturalista, pois Marta a seu modo, embora viva um bom tempo no cortiço, para com ele mantém distancia, sabe não ser natural dali;5 - Marta e a mãe vão parar no cortiço e então lá vivenciam uma vida de grandes dificuldades. A mãe passa a viver do serviço extenuante de engomar roupas, o dia inteiro, noite adentro, também. De postura firme, a mãe será à narradora seu grande exemplo e seu grande escudo. Nela, a presença de toda a força feminina que resiste e luta nas condições mais adversas, uma mãe que certamente reflete-se em tantas outras mães Brasil a fora. Em grande medida, Memórias de Marta é a forma da narradora resgatar o heroísmo de sua mãe, cuja missão, acaba sendo de certo modo encaminhar a filha a uma vida mais segura, obviamente, um destino ao contexto da época e com certo desagrado de própria Marta, que ao fim reflete e considera a solução um tanto pragmática e de uma lucidez acachapante da mãe; um olhar destituído de qualquer romantismo da questão da mulher, pragmático justamente pelo fato de que sua mãe compreendia de modo exemplar as desigualdades com que as mulheres de seu tempo lutavam;6 - E aqui entra outro aspecto fundamental do distanciamento natural entre Marta e a mãe com o restante do cortiço. A história de ambas seria impossível sob a estética naturalista, já que o meio nesse olhar tem força tão grande que mantém o moto perpétuo. Esse contraste, inclusive é trazido a partir do desfecho das outras crianças do cortiço em relação à Marta. E o meio por qual Marta consegue ter um pequeno vislumbre de vitória está intimamente ligado à origem social de sua tenra infância e do passado burguês da mãe, que, em razão disso sempre teve na educação, instrumento importante - especialmente naquele época, lembremos, a educação, privilégio da burguesia. Ocorre que diferentemente das outras crianças do cortiço, Marta não só consegue permanecer na escola, como também encontrar naquele espaço uma mestra incentivadora e protetora;7 - A escola - e a educação, então, servem a ela como contrapeso aos fatores que lhe desgraçam a vida, ou seja, a pobreza e a sua autoproclamada fealdade - que em certo sentido é construída muito em razão de sua percepção em comparação a uma menina rica, cliente de sua mãe, de modo que sua fealdade está muito mais associad

Apr 26, 2025 - 00:13
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10 Considerações sobre Memórias de Marta, de Júlia Lopes Almeida ou sobre nossos outros cortiços da literatura brasileira

O Blog Listas Literárias leu Memórias de Marta, de Júlia Lopes de Almeida, publicado pela Penguin & Companhia das Letras; neste post, as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou sobre os outros cortiços da literatura brasileira, confira:


1 - Publicado pelo selo Penguin & Companhia das Letras que dedica-se a clássicos da literatura, como de praxe do selo, além da obra, a publicação reúne um importante conjunto de discussões acerca deste trabalho e da literatura de Júlia Lopes Almeida, uma das mulheres precursoras em nossa literatura. Neste volume temos uma introdução or Anna Faedrich e nota de edição de Rodrigo Jorge Neves. Além destes, acompanham ao final do livro notas, apêndice e uma cronologia da carreira da autora;

2 - Dito isso, podemos nos concentrar na narrativa de Memórias de Marta. A publicação toma por base o texto da terceira edição do romance, de possivelmente entre 1925 e 1930. A primeira publicação ocorre em 1888 e como indica o título é a narrativa em primeira pessoa por Marta, uma mulher que por meio das palavras resgata suas experiências traumáticas relacionadas à pobreza e à condição que ela e a mãe passam a viver após dívidas e morte do pai que obrigan-nas a viver em um dos tantos cortiços cariocas;

3 - Aliás, vale dizer que mostra-se interessante esse processo de distanciamento que a narradora constrói entre ela e o cortiço, isso porque não seria ela uma habitante natural daquele lugar radicalmente empobrecido, já que até parte de sua infância vivera ao modo burgês, o qual a família tem de abandonar após uma série de infortúnios do pai e sua morte posterior em virtude de uma epidemia. Esse é um detalhe importante na leitura e interpretação do texto, especialmente pela lembrança de tratar-se de obra vigente no naturalismo, ao qual a autora filia-se e, inclusive, há referência textual no próprio romance em relação a isso. Marta teve de parar no cortiço, mas nunca foi de lá uma habitante natural e isso é perceptível na sua relação com os vizinhos e mesmo no desfecho trágico de alguns deles, já que o meio inviabiliza qualquer mudança;

4 - Essa compreensão é importante na interpretação do processo e da mudança da mulher que narra o passado numa condição, é bem verdade, não de todo fácil, mas diferente da perpetuação do cortiço como ocorre com a Ilhoa e seus filhos (amigos de infância de Marta). A voz que nos narra é uma professora, o que descobriremos aos poucos, ou seja, de certo modo uma moradora do cortiço que vivencia certa ascensão social, ilusória, bem verdade, já que uma condição ainda inferior à realidade passada da família. Ainda assim, Marta sairá do cortiço, mas isso pouco tem a ver com alguma quebra ou fragilidade no seu olhar naturalista, pois Marta a seu modo, embora viva um bom tempo no cortiço, para com ele mantém distancia, sabe não ser natural dali;

5 - Marta e a mãe vão parar no cortiço e então lá vivenciam uma vida de grandes dificuldades. A mãe passa a viver do serviço extenuante de engomar roupas, o dia inteiro, noite adentro, também. De postura firme, a mãe será à narradora seu grande exemplo e seu grande escudo. Nela, a presença de toda a força feminina que resiste e luta nas condições mais adversas, uma mãe que certamente reflete-se em tantas outras mães Brasil a fora. Em grande medida, Memórias de Marta é a forma da narradora resgatar o heroísmo de sua mãe, cuja missão, acaba sendo de certo modo encaminhar a filha a uma vida mais segura, obviamente, um destino ao contexto da época e com certo desagrado de própria Marta, que ao fim reflete e considera a solução um tanto pragmática e de uma lucidez acachapante da mãe; um olhar destituído de qualquer romantismo da questão da mulher, pragmático justamente pelo fato de que sua mãe compreendia de modo exemplar as desigualdades com que as mulheres de seu tempo lutavam;

6 - E aqui entra outro aspecto fundamental do distanciamento natural entre Marta e a mãe com o restante do cortiço. A história de ambas seria impossível sob a estética naturalista, já que o meio nesse olhar tem força tão grande que mantém o moto perpétuo. Esse contraste, inclusive é trazido a partir do desfecho das outras crianças do cortiço em relação à Marta. E o meio por qual Marta consegue ter um pequeno vislumbre de vitória está intimamente ligado à origem social de sua tenra infância e do passado burguês da mãe, que, em razão disso sempre teve na educação, instrumento importante - especialmente naquele época, lembremos, a educação, privilégio da burguesia. Ocorre que diferentemente das outras crianças do cortiço, Marta não só consegue permanecer na escola, como também encontrar naquele espaço uma mestra incentivadora e protetora;

7 - A escola - e a educação, então, servem a ela como contrapeso aos fatores que lhe desgraçam a vida, ou seja, a pobreza e a sua autoproclamada fealdade - que em certo sentido é construída muito em razão de sua percepção em comparação a uma menina rica, cliente de sua mãe, de modo que sua fealdade está muito mais associada às condições de pobreza, suas vestes simples, menos recursos para vaidade, do que talvez uma feiosidade física, propriamente;

8 - Mas retomemos aqui o aspecto da educação. Ela desempenhará um papel importante no destino de Marta, que desafortunada das outras virtudes, dedica todas suas energias aos estudos, o que acaba destacando a jovem entre outras ao passo que Marta, assim como uma Anne de Green Gables, vai percorrendo os passos do magistério, o que, para as mulheres ser-lhes-ia uma espécie de emancipação naqueles tempos. Todavia, não plena, conforme vemos na solução de Marta e sua mãe, pois ainda que, ao ser aprovada num concurso a situação melhorasse um pouco, a lucidez, especialmente da mãe, lembrava à jovem de que tal situação emancipada poderia ser transitória e que a sociedade trazia muitos perigos a uma mulher;

9 - Dito tudo isso, vejamos que trata-se de uma obra de importante leitura. inclusive para ampliar o olhar naturalista aos cortiços brasileiros, certamente avôs de nossas comunidades espalhadas pelo país. Tal como no cortiço mais famoso, aqui um espaço demarcado pela exploração dos seres humanos, a especulação trazida na transformação destes em avenidas, nas condições de trabalho precárias, na precocidade da tragédia e na vileza humana como na relação do botequeiro com o jovem Maneco de triste fim. O olhar de Júlia Lopes de Almeida para as condições sociais de seu tempo é descritivo e altamente crítico diante da penúria das situações, acrescentando em seu caso o aspecto feminino na miséria, um olhar que obviamente transforma também o cortiço e torna-o ainda mais severo que o irmão mais famoso;

10 - Enfim, Memórias de Marta não apenas mostra o talento de uma autora que a despeito da contemporaneidade a Machado de Assis e à fundação da ABL, da qual foi relegada por sua condição de mulher (o marido teve seu posto, mas quem sabe o que ele escreveu?), como nos apresenta uma típica narrativa da vertente naturalista que influenciou seu tempo. Todavia, e ainda com as ressalvas que apontamos da origem distinta de Marta ao cortiço, mesmo impregnado pelo forte naturalismo, aqui um sopro ínfimo de esperança, uma esperança sob as condições que apresentamos, o passado burguês de Marta, mas ainda assim uma esperança já que o meio tão forte e atroz de algum modo aqui é superado ainda que minimamente. Uma narrativa sobre a força das mulheres, mas também dos impactos emancipatórios da educação. Uma grande leitura.

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