Televisão & política(a propósito de Good Night, and Good Luck)

Boa Noite, e Boa Sorte (2005): David Strathairn no papel de Edward R. Murrow O poder está nos ecrãs: deixou de ser possível separar os políticos das suas performances televisivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 abril).Na Broadway, no palco do Winter Garden Theatre, está actualmente em cena (até 8 de junho), a peça Good Night, and Good Luck, escrita por George Clooney e Grant Heslov. Ao ler as notícias sobre esta produção, não pude deixar de evocar a excelência do original em que se baseia. A saber: o filme homónimo de 2005 — entre nós lançado como Boa Noite, e Boa Sorte —, escrito pela mesma dupla, com realização de Clooney.Em jogo está o papel do trabalho jornalístico perante as máscaras e os abusos do poder político. A actualidade política e simbólica do filme é tanto mais perturbante quanto não se trata de abordar esse trabalho a partir de qualquer generalização pueril, antes através de uma série de acontecimentos históricos na televisão dos EUA. No seu centro está a figura lendária de Edward R. Murrow (1908-1965) enquanto apresentador do programa See It Now, na CBS.O essencial da acção de Boa Noite, e Boa Sorte (era essa a frase com que Murrow se despedia dos espectadores) tem lugar em 1953, em pleno “maccartismo”. Enquanto presidente do Comité das Actividades Anti-americanas, e em nome de um combate visceralmente anti-comunista, o senador Joseph McCarthy desenvolveu uma “caça às bruxas” que abalou a sociedade americana, com repercussões até mesmo no universo de Hollywood, incluindo a marginalização de muitos profissionais (O Testa de Ferro, realizado em 1976 por Martin Ritt, com Woody Allen no papel central, é um dos filmes que evoca esse período).Com o contributo de uma equipa liderada pelo produtor Fred W. Friendly, Murrow assumiu-se como uma voz dos valores liberais americanos, por um lado desmentindo McCarthy quando o acusou de estar próximo do PC americano, por outro lado desmontando a campanha de difamação e perseguição do Comité. No filme, Murrow e Friendly são interpretados, respectivamente, por David Strathairn e Clooney; agora, no palco, a personagem de Murrow pertence a Clooney (segundo o próprio, há vinte anos não tinha a gravidade necessária para o fazer).Estamos perante um drama em que o dispositivo televisivo se revela como uma máquina (também) política que desempenha um papel fundamental no escrutínio dos actos praticados pelos políticos. Essa é, afinal, uma missão nuclear do labor jornalístico. Ainda assim, importa não confundir o que aconteceu num contexto muitíssimo particular, na América de há 72 anos, com a nossa contemporaneidade — e, em particular, com os valores agora dominantes no espaço televisivo. Dito de outro modo: a definição do perfil de cada político passou a estar radicalmente ligada à dinâmica das imagens televisivas.Agora, prevalece uma lei mediática que todos conhecem (porque a praticam), ainda que quase ninguém se atreva a recuar um passo para, no mínimo, tentar racionalizar o que está acontecer. Não para apontar o dedo seja a quem for, ainda menos para gerar outra “caça às bruxas”. Apenas para reconhecer que, maioritariamente, a televisão deixou de ser um espaço de informação sobre a política, funcionando mais, e mais frequentemente, como um sistema de quotidiana encenação dos protagonistas da cena política.Na prática, acomodadamente ou não, os políticos passaram a encarar o seu próprio ideário, não como um sistema de princípios e valores que vale por si, antes como um acumulado de sínteses (tão breves quanto possível). A avaliação das ideias que fundamentam esse ideário reduziu-se aos efeitos impressionistas das performances televisivas dos próprios políticos — há uma teatralidade audiovisual que se impôs como o naturalismo perverso da nossa experiência informativa.Nenhum político é “melhor” ou “pior” por ter começado na televisão, por exemplo como comentador de política ou futebol. Seja como for, isso não impede que reconheçamos que há um número considerável de políticos que “nasceram” para o imaginário dos eleitores enquanto comentadores nos nossos ecrãs caseiros. Resta saber se conquistar (ou receber a dádiva de) um lugar na televisão passou a ser também um passo obrigatório em qualquer carreira política. Se assim for, o poder político desagregou-se, dissipando-se num novo sistema de espectáculo: a tele-política.

Apr 24, 2025 - 23:16
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Televisão & política(a propósito de Good Night, and Good Luck)
Boa Noite, e Boa Sorte (2005): David Strathairn no papel de Edward R. Murrow

O poder está nos ecrãs: deixou de ser possível separar os políticos das suas performances televisivas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 abril).

Na Broadway, no palco do Winter Garden Theatre, está actualmente em cena (até 8 de junho), a peça Good Night, and Good Luck, escrita por George Clooney e Grant Heslov. Ao ler as notícias sobre esta produção, não pude deixar de evocar a excelência do original em que se baseia. A saber: o filme homónimo de 2005 — entre nós lançado como Boa Noite, e Boa Sorte —, escrito pela mesma dupla, com realização de Clooney.
Em jogo está o papel do trabalho jornalístico perante as máscaras e os abusos do poder político. A actualidade política e simbólica do filme é tanto mais perturbante quanto não se trata de abordar esse trabalho a partir de qualquer generalização pueril, antes através de uma série de acontecimentos históricos na televisão dos EUA. No seu centro está a figura lendária de Edward R. Murrow (1908-1965) enquanto apresentador do programa See It Now, na CBS.
O essencial da acção de Boa Noite, e Boa Sorte (era essa a frase com que Murrow se despedia dos espectadores) tem lugar em 1953, em pleno “maccartismo”. Enquanto presidente do Comité das Actividades Anti-americanas, e em nome de um combate visceralmente anti-comunista, o senador Joseph McCarthy desenvolveu uma “caça às bruxas” que abalou a sociedade americana, com repercussões até mesmo no universo de Hollywood, incluindo a marginalização de muitos profissionais (O Testa de Ferro, realizado em 1976 por Martin Ritt, com Woody Allen no papel central, é um dos filmes que evoca esse período).
Com o contributo de uma equipa liderada pelo produtor Fred W. Friendly, Murrow assumiu-se como uma voz dos valores liberais americanos, por um lado desmentindo McCarthy quando o acusou de estar próximo do PC americano, por outro lado desmontando a campanha de difamação e perseguição do Comité. No filme, Murrow e Friendly são interpretados, respectivamente, por David Strathairn e Clooney; agora, no palco, a personagem de Murrow pertence a Clooney (segundo o próprio, há vinte anos não tinha a gravidade necessária para o fazer).
Estamos perante um drama em que o dispositivo televisivo se revela como uma máquina (também) política que desempenha um papel fundamental no escrutínio dos actos praticados pelos políticos. Essa é, afinal, uma missão nuclear do labor jornalístico. Ainda assim, importa não confundir o que aconteceu num contexto muitíssimo particular, na América de há 72 anos, com a nossa contemporaneidade — e, em particular, com os valores agora dominantes no espaço televisivo. Dito de outro modo: a definição do perfil de cada político passou a estar radicalmente ligada à dinâmica das imagens televisivas.
Agora, prevalece uma lei mediática que todos conhecem (porque a praticam), ainda que quase ninguém se atreva a recuar um passo para, no mínimo, tentar racionalizar o que está acontecer. Não para apontar o dedo seja a quem for, ainda menos para gerar outra “caça às bruxas”. Apenas para reconhecer que, maioritariamente, a televisão deixou de ser um espaço de informação sobre a política, funcionando mais, e mais frequentemente, como um sistema de quotidiana encenação dos protagonistas da cena política.
Na prática, acomodadamente ou não, os políticos passaram a encarar o seu próprio ideário, não como um sistema de princípios e valores que vale por si, antes como um acumulado de sínteses (tão breves quanto possível). A avaliação das ideias que fundamentam esse ideário reduziu-se aos efeitos impressionistas das performances televisivas dos próprios políticos — há uma teatralidade audiovisual que se impôs como o naturalismo perverso da nossa experiência informativa.
Nenhum político é “melhor” ou “pior” por ter começado na televisão, por exemplo como comentador de política ou futebol. Seja como for, isso não impede que reconheçamos que há um número considerável de políticos que “nasceram” para o imaginário dos eleitores enquanto comentadores nos nossos ecrãs caseiros. Resta saber se conquistar (ou receber a dádiva de) um lugar na televisão passou a ser também um passo obrigatório em qualquer carreira política. Se assim for, o poder político desagregou-se, dissipando-se num novo sistema de espectáculo: a tele-política.