Fé e angústia existencial em 'Habemus Papam': não é uma coisa terrível ser Papa?

A comédia italiana “Habemus Papam” (2011) ganhou a fama de ter antevisto a renúncia inédita do Papa Bento XVI. Agora ganhou uma inesperada atualidade. Além de ser uma versão paródica do thriller eclesiástico “Conclave” (2024), também trata com humor a angústia existencial por trás de toda fé: não é uma coisa terrível ser Papa? “Habemus Papam”, é anunciado pelo cardeal do balcão da Basílica de São Pedro. Então ouvimos um grito sobrenatural vindo por trás das cortinas que decoram a sacada. É o Papa escolhido tendo uma crise de pânico agarrado ao trono. O anúncio cessa, para escalar uma crise sem precedentes. Um psicanalista é chamado, mas as coisas só pioram: o Papa foge e ganha as ruas de Roma em busca da solução do seu diagnosticado “déficit parental”. Fé é crer no absurdo, dizia o existencialismo cristão do filósofo Kierkegaard. Como um ser finito pode ter fé e encontrar acolhimento numa totalidade infinita chamada Deus? Esse é o absurdo paradoxo da fé, satirizado pela comédia “Habemus Papam”. A morte de Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, ganhou a ribalta midiática. E promete continuar nas próximas semanas com o principal spin-off: a formação do Conclave, colegiado de cardeais que se trancarão na Capela Sistina, para escolherem o nome do próximo Papa e avisarem a escolha através da emblemática fumaça branca aguardada pelo mundo. Por exemplo, só o filme Conclave (já analisado por esse Cinegnose, clique aqui), um thriller eclesiástico sobre os bastidores políticos da escolha de um Papa, teve um crescimento de 283% em audiência no Prime Video. Porém, diante dessa figura global cujo martírio deve se tornar público para fazer a analogia entre a própria vida com a Via Sacra de Cristo, ninguém se pergunta: não é uma coisa terrível deve Papa! Que responsabilidades impensáveis ​​para recair sobre os ombros em idade tão avançada! Sem privacidade. Sem reclusão. Sem pecado. Depois de uma vida inteira de renúncias, estudos, dedicação e compromissos, ainda no final da vida deve se comprometer a ser o representante máximo de Deus e da fé terrena. Quem já leu o filósofo do existencialismo cristão, Soren Kierkegaard (1813-1855), sabe que não deve ser nada fácil. Principalmente por causa do paradoxo existencial da fé, resumido da seguinte maneira: “Creio porque é absurdo”. Ter fé é acreditar numa Divindade que o ultrapassa porque eterna, infinita. Como um ser que se reconhece finito, o homem, pode encontrar um momento de realização com uma totalidade infinita? Para Kierkegaard, o Cristianismo tenta resolver essa angústia de forma paradoxal através da união transcendente de Deus e do homem na pessoa de Jesus Cristo. O problema é que essa revelação da Verdade não foi feita por meio de pompas e circunstâncias, mas foi encarnada por meio de um homem obscuro que morreu como um criminoso na cruz. Dessa forma o acesso à Verdade somente foi possível por meio do paradoxo e do absurdo. Como um ser finito, mortal, pode se sentir acolhido por um Pai Infinito e Eterno? Principalmente quando a recompensa é o acerto de contas final prometido numa futura Ressurreição em algum momento no fim dos tempos...  Essa fé misturada com angústia é o surpreendente tema da comédia italiana Habemus Papam (2011), do diretor Nanni Moretti. Um filme que na época foi visto como profético: um pouco tempo depois dessa comédia sobre um papa que renuncia pelas incertezas existências que contaminam a fé, o Papa Bento XVI renunciava alegando que sua idade avançada não lhe permitia exercer as funções do pontificado de forma adequada - a primeira renúncia de um papa sem pressão externa desde 1294. Certamente o Papa talvez mais intelectualizado (foi emblemático o debate intelectual com o filósofo Jürgen Habermas sobre a relação entre fé, razão e modernidade) não queria transformar seu embate com a saúde numa Via Crucis midiática – esse é o show que todo Papa promete aos fiéis: ficar no pontificado expondo publicamente a lenta decrepitude e a morte. Mas hoje, Habemus Papam ganha uma notável atualidade. Não só porque tornou-se uma versão paródica da seriedade do thriller eclesiásticoConclave. Mas também por tratar com humor essa angústia a qual se mescla toda fé: não deve ser uma coisa terrível ser Papa? Há uma cena perto do início, quando o Colégio Cardinalício é isolado do mundo dentro do Vaticano. Os prelados não podem sair de seus aposentos nem se comunicar com o exterior de forma alguma, até que elejam o próximo pontífice e uma nuvem de fumaça branca suba da pequena chaminé no topo do antigo edifício. A câmera de Nanni Moretti estuda os rostos desses cerdeais idosos. São brancos, negros, asiáticos, enrugados, apreensivos. Podemos ler suas mentes. Todos pensam a mesma coisa: "Eu não, meu Deus! Não me escolha! Eu não sou digno!". Finalmente, uma votação crucial é realizada e, por alguma alquimia sagrada, todos os cardeais parecem estar decididos pelo mesmo homem. "Melville... Melville... Melville", ouvimos, e a câmera observa um homem velho

Apr 24, 2025 - 23:18
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Fé e angústia existencial em 'Habemus Papam': não é uma coisa terrível ser Papa?


A comédia italiana “Habemus Papam” (2011) ganhou a fama de ter antevisto a renúncia inédita do Papa Bento XVI. Agora ganhou uma inesperada atualidade. Além de ser uma versão paródica do thriller eclesiástico “Conclave” (2024), também trata com humor a angústia existencial por trás de toda fé: não é uma coisa terrível ser Papa? “Habemus Papam”, é anunciado pelo cardeal do balcão da Basílica de São Pedro. Então ouvimos um grito sobrenatural vindo por trás das cortinas que decoram a sacada. É o Papa escolhido tendo uma crise de pânico agarrado ao trono. O anúncio cessa, para escalar uma crise sem precedentes. Um psicanalista é chamado, mas as coisas só pioram: o Papa foge e ganha as ruas de Roma em busca da solução do seu diagnosticado “déficit parental”. Fé é crer no absurdo, dizia o existencialismo cristão do filósofo Kierkegaard. Como um ser finito pode ter fé e encontrar acolhimento numa totalidade infinita chamada Deus? Esse é o absurdo paradoxo da fé, satirizado pela comédia “Habemus Papam”.

A morte de Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco, ganhou a ribalta midiática. E promete continuar nas próximas semanas com o principal spin-off: a formação do Conclave, colegiado de cardeais que se trancarão na Capela Sistina, para escolherem o nome do próximo Papa e avisarem a escolha através da emblemática fumaça branca aguardada pelo mundo.

Por exemplo, só o filme Conclave (já analisado por esse Cinegnose, clique aqui), um thriller eclesiástico sobre os bastidores políticos da escolha de um Papa, teve um crescimento de 283% em audiência no Prime Video.

Porém, diante dessa figura global cujo martírio deve se tornar público para fazer a analogia entre a própria vida com a Via Sacra de Cristo, ninguém se pergunta: não é uma coisa terrível deve Papa! Que responsabilidades impensáveis ​​para recair sobre os ombros em idade tão avançada! Sem privacidade. Sem reclusão. Sem pecado. Depois de uma vida inteira de renúncias, estudos, dedicação e compromissos, ainda no final da vida deve se comprometer a ser o representante máximo de Deus e da fé terrena.

Quem já leu o filósofo do existencialismo cristão, Soren Kierkegaard (1813-1855), sabe que não deve ser nada fácil. Principalmente por causa do paradoxo existencial da fé, resumido da seguinte maneira: “Creio porque é absurdo”.

Ter fé é acreditar numa Divindade que o ultrapassa porque eterna, infinita. Como um ser que se reconhece finito, o homem, pode encontrar um momento de realização com uma totalidade infinita?



Para Kierkegaard, o Cristianismo tenta resolver essa angústia de forma paradoxal através da união transcendente de Deus e do homem na pessoa de Jesus Cristo. O problema é que essa revelação da Verdade não foi feita por meio de pompas e circunstâncias, mas foi encarnada por meio de um homem obscuro que morreu como um criminoso na cruz. Dessa forma o acesso à Verdade somente foi possível por meio do paradoxo e do absurdo.

Como um ser finito, mortal, pode se sentir acolhido por um Pai Infinito e Eterno? Principalmente quando a recompensa é o acerto de contas final prometido numa futura Ressurreição em algum momento no fim dos tempos...

 Essa fé misturada com angústia é o surpreendente tema da comédia italiana Habemus Papam (2011), do diretor Nanni Moretti. Um filme que na época foi visto como profético: um pouco tempo depois dessa comédia sobre um papa que renuncia pelas incertezas existências que contaminam a fé, o Papa Bento XVI renunciava alegando que sua idade avançada não lhe permitia exercer as funções do pontificado de forma adequada - a primeira renúncia de um papa sem pressão externa desde 1294.

Certamente o Papa talvez mais intelectualizado (foi emblemático o debate intelectual com o filósofo Jürgen Habermas sobre a relação entre fé, razão e modernidade) não queria transformar seu embate com a saúde numa Via Crucis midiática – esse é o show que todo Papa promete aos fiéis: ficar no pontificado expondo publicamente a lenta decrepitude e a morte.




Mas hoje, Habemus Papam ganha uma notável atualidade. Não só porque tornou-se uma versão paródica da seriedade do thriller eclesiásticoConclave. Mas também por tratar com humor essa angústia a qual se mescla toda fé: não deve ser uma coisa terrível ser Papa?

Há uma cena perto do início, quando o Colégio Cardinalício é isolado do mundo dentro do Vaticano. Os prelados não podem sair de seus aposentos nem se comunicar com o exterior de forma alguma, até que elejam o próximo pontífice e uma nuvem de fumaça branca suba da pequena chaminé no topo do antigo edifício.

A câmera de Nanni Moretti estuda os rostos desses cerdeais idosos. São brancos, negros, asiáticos, enrugados, apreensivos. Podemos ler suas mentes. Todos pensam a mesma coisa: "Eu não, meu Deus! Não me escolha! Eu não sou digno!".

Finalmente, uma votação crucial é realizada e, por alguma alquimia sagrada, todos os cardeais parecem estar decididos pelo mesmo homem. "Melville... Melville... Melville", ouvimos, e a câmera observa um homem velho e assustado que parece quase se encolher dentro de suas vestes.

Melville é interpretado por Michel Piccoli, vencedor do prêmio de melhor ator em Cannes em 1980, um dos favoritos do renomado diretor ateu Luis Buñuel, com quem fez sete filmes, incluindo "A Via Láctea", no qual interpretou o Marquês de Sade.

E impactante vê-lo agora interpretando um cardeal. Este é um dos seus papéis mais cativantes, e ele o dedica com muito carinho. Mas, claro, faz um eclesiástico com sérias crises existenciais. Não chega à radicalidade sadeana. Mas decide cruzar os muros do Vaticano para se perder nas ruas de Roma em busca da Verdade: descobrir o que ele perdeu na sua vida.



O Filme

Fica claro que Melville é uma escolha de compromisso e não fortuita: um homem idoso, muito querido, que deve deixar o papado vago novamente somente depois que muitos anos se passem. Os Guardas Suíços assumem seus postos em uma sacada com vista para a Praça de São Pedro lotada, um porta-voz do Vaticano e um cardeal sênior aparecem, e as palavras antigas são entoadas: Habemus Papam! Temos um papa! Então ouvimos um grito sobrenatural vindo por trás das cortinas que decoram a sacada. O anúncio cessa.

Todos os olhos se voltam para Melville, encolhido em sua cadeira, o rosto enterrado nas mãos. Ela está passando por alguma crise nervosa ou de pânico, avaliam.

Ele simplesmente não consegue. Implora perdão. Infelizmente, isso é impossível. A vontade de Deus se pronunciou por meio dos cardeais, e eles não estão em posição de anulá-Lo. Autoridades do Vaticano insistem para que Melville descanse um pouco e se recomponha, já que a intenção individual nada pode contra a vontade Deus manifestada no Conclave.

Por um motivo não muito claro, chega-se a convocar um psicanalista (interpretado pelo próprio diretor Morello) – imagine um psicanalista fazendo perguntas para um cardeal sobre a sua sexualidade, desejos e fantasias! São temas logo proibidos para o psicanalista. Por exemplo, ele ouve de um clérigo de que ele não pode coexistir nas sessões de análise as palavras “alma” e “inconsciente” – uma heresia teológica para a Igreja.

E pior: ele deve psicoanalisar Melville diante do colegiado, sem privacidade. Afinal, não pode existir segredos para Deus...



Vendo a situação impossível, convence a levar Melville para sua ex-esposa, psicanalista, fora das fronteiras do Vaticano. Para ter alguma privacidade.

Então, Melville aproveita a oportunidade e desaparece de vista, atravessa a Cidade do Vaticano e foge para as ruas de Roma, para desespero do relações públicas que decide forjar uma farsa: escala um soldado da Guarda Suíça para ocupar o quarto do cardeal, para todos pensarem que Melville está isolado e orando. 

Como sua eleição não foi tornada pública, ele é apenas mais um velho padre e, rapidamente, encontra roupas civis para ficar ainda mais irreconhecível.

Por lei, os cardeais devem permanecer isolados – como o nome do Papa não foi divulgado, é como se o Conclave não tivesse terminado. Eles são acompanhados pelo psicanalista, que também não pode ser autorizado a sair.

O roteiro do diretor Moretti faz do psiquiatra um catalisador para jogos de cartas e até mesmo um torneio de vôlei, criando times de cardeais de acordo com os continentes. Há discussões sobre os cardápios, as regras do bridge e a composição dos times de vôlei. Os cardeais parecem  que não se divertiam assim há anos.

Enquanto isso, uma expressão não sai da cabeça de Melville: “déficit parental”. Foi o diagnóstico feito pela ex-esposa do psicanalista (Margherita Buy). Deus não foi o suficiente para suprir seu déficit afetivo. Por isso, Melville vaga pelas ruas, tentando reencontrar aquilo que foi perdido.

Tal qual o anjo que vaga em Berlim no filme Asas do Desejo, de Win Wenders, Melville transita incógnito em Roma aproximando-se dos pensamentos dos mortais. O mais interessante para ele é quando se aproxima de uma alegre trupe de teatro que vai encenar o clássico russo Anton Tchékhov – ele se recorda de quando quis se ator na infância e lembra de linhas de peças do dramaturgo.

E de como ele acabou, de forma perversa, tornando-se um mal ator como cardeal.

O discurso final de Melville sobre a inevitável renúncia é de um surpreendente existencialismo kierkegaardiano: precisamos abraçar a nossa própria finitude humana e abrir mão da nossa necessidade de estar no controle. Essa entrega nos ajuda a encontrar a nossa própria "liberdade espiritual" e essa liberdade nos permite amar a Deus, aos outros e a nós mesmos com mais atenção e intenção.


 

  Ficha Técnica

Título: Habemus Papam

Direção:  Nani Moretti

Roteiro: Nani Moretti

 Elenco: Francesco Piccolo, Nani Moretti, Federica Pontremoli

Produção: Fandango

Distribuição: Sundance Selects

Ano: 2011

País: Itália

 

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