O que será do Benformoso? Quatro meses depois da rusga, “é preciso olhar para esta rua”
Comerciantes falam de quebras de 70% no negócio, numa zona que já teve mais vida e vizinhança. PSP está a testar modelo de proximidade.


Passaram quatro meses, mas a memória da operação policial na Rua do Benformoso, cristalizada na imagem de imigrantes de braços esticados contra a parede, mantém-se fresca. Em Abril, no dia 17, a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI) arquivou o inquérito sobre a operação, considerando que cumpriu “os preceitos legais, gerais e específicos”. Assunto arrumado pela autoridade, mas por quem lá vive, que relata grandes quebras nos negócios, vazio e medo de que se repita uma rusga como a de Dezembro, não.
“Mais de 1000 pessoas vinham ao meu restaurante todos os dias, agora vêm 100. As pessoas deixaram de vir à Rua do Benformoso. E, se vierem, chegam de Uber, comem e vão embora”, relata Sohel Mia, proprietário do Royal Spicy, que se tornou, em 2024, um dos restaurantes bengali mais cobiçados da cidade (e onde Pedro Nuno Santos foi almoçar no dia a seguir à operação policial). “Recebíamos sobretudo turistas asiáticos, mas também europeus e de outros continentes, e portugueses. Agora, tenho 22 empregados, dei-lhes um tempo para ver como vão evoluir as coisas, mas não sei quanto mais vou aguentar”, refere, apontando para uma quebra no negócio superior a 70%.
Sohel relata três problemas que têm afectado particularmente a comunidade imigrante da rua: “assédio por parte da polícia” – “estamos constantemente a ser abordados e questionados”; “a zona está a ser destruída por traficantes, negros e portugueses, uma situação em que não vemos melhorias”; e as mudanças nas regras de imigração pelo actual executivo. “Além de não chegarem novas pessoas, muitos dos que cá estavam estão a ir embora. Há negócios a fechar porque estão a ver o futuro, e o futuro não é bom.”
“As pessoas estão tristes e sem apoio. E sem dignidade não podem viver", corrobora Farid Ahmed Patwary, tradutor e jornalista natural do Bangladesh, que trocou o emprego estável no seu país por uma oportunidade para os filhos seguirem os estudos, em Portugal, há mais de dez anos. Para os comerciantes, em particular, “a situação piorou muito depois do dia da rusga, porque as pessoas deixaram de vir cá. Os negócios caíram mais de metade”, continua o também porta-voz da manifestação “Não nos encostem à parede!”, que aconteceu a 11 de Janeiro. O único aspecto em que o Benformoso melhorou desde o dia da operação policial, na opinião deste imigrante, foi a limpeza. “A Junta está a olhar mais para esta rua, nota-se a diferença. Mas tem de continuar. O Benformoso não é uma rua normal, em que basta limpar uma vez e ter poucos pontos de lixo. Há muito comércio e muita concentração de pessoas aqui, mais do que noutra rua qualquer”, regista.
São vários os problemas decorrentes do excesso, como os apartamentos sobrelotados e todo o mercado paralelo à volta da imigração, bem como os efeitos no espaço público. Canalizações dos edifícios rompem; o lixo, já não cabendo nos contentores, voa pela rua; há dejectos deixados por pessoas sem abrigo e sem acesso a casas de banho, em particular perto das escadinhas junto ao chafariz, espaço habitual de consumo de drogas.
Muitas camadas e a droga é uma delas
Como analisa Filipa Bolotinha, dirigente da associação Renovar a Mouraria, “o que se passa no Benformoso é super complexo e tem muitas camadas”. No pós-Covid, recua, “os consumos aumentaram e a comunidade imigrante, em particular, não teve acesso aos benefícios que nós tivemos”. “Isso deixou-a em total vulnerabilidade, muito dependente dos mecanismos internos, que também sabemos que não são os melhores. Foi um gatilho, associado à subida de preços, à crise da habitação, à passagem do SEF para a AIMA, ao aumento do fluxo migratório e à incapacidade de dar resposta aos processos”, resume a dirigente, que acompanha as dinâmicas do bairro há mais de 20 anos.
Outra incapacidade prende-se com a gestão do tráfico e do consumo de droga, bem como com a redução de danos para quem consome. No GAT IN Mouraria, o centro gerido por um grupo de activistas mais próximo do Benformoso, há cinco meses que a sala de consumo assistido de drogas fumadas está encerrada. Foi criada em 2023, como resposta à mudança da realidade de consumos, que hoje incide no crack, barato (conseguem-se doses a cinco euros) e de efeito rápido, embora de curta duração. A de injectáveis, por sua vez, funciona, mas apenas com oito lugares. “É claramente insuficiente. E tivemos de fechar a sala de fumados porque também a equipa é insuficiente e o número de pessoas [a consumir] aumentou imenso”, diz-nos Mariana Vicente, directora-geral de serviços e projectos do GAT – Grupo de Activistas em Tratamentos.
Com seis unidades fixas na cidade, o GAT tem na Mouraria um dos seus espaços mais antigos e mais complexos. Aqui recebe uma comunidade heterogénea, entre pessoas imigrantes, trans, trabalhadores do sexo, todos consumidores. “Estamos aqui há 12 anos e só conseguimos financiamento há dois. Mas o espaço é pequeno, é um milagre acontecer tudo o que acontece aqui”, desde um simples lanche a tratamentos de enfermagem, consultas de psiquiatria e acesso ao consumo assistido. Por ano, contam 500 utentes activos e, ao serviço de acolhimento, chegam 80 a 100 pessoas entre as 14.00 e as 20.00, todos os dias (mais de 50% dos utentes são sem-abrigo). “Fazemos também rondas na rua e integramos pessoas [consumidores e sem-abrigo], que trabalham aqui connosco, como mediadores ou na prestação de serviços como a recolha de seringas das ruas”, exemplifica.
Mas quem quer ter uma sala de consumo à porta de casa? O presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior (onde fica a Mouraria), Miguel Coelho, defende a criação de centros de consumo dispersos pela cidade, em zonas como a Lapa ou a Estrela. Mas os locais de consumo devem estar onde está quem precisa deles, acredita Mariana Vicente, garantindo que “não são espaços como este que trazem o consumo para a rua”. Alguém que frequente o eixo Intendente-Martim Moniz, que tenha ali a sua comunidade, vai caminhar até à Lapa para aceder a uma sala segura? “O que defendemos é que haja mais locais de consumo seguros na cidade, integrados numa rede de outras respostas. Espaços pequenos, informais, para que esta realidade se dilua e não tenha um impacto demasiado grande nos bairros”, detalha a responsável. E em relação à Mouraria, o que fazer? “Estamos num momento crítico, em que temos de repensar estratégias, porque a situação também mudou. E não se apoiar porque não é documentado não vai resolver absolutamente nada”, defende.
A experiência do GAT na zona diz que a maioria da população não está preparada para tentar deixar de consumir. Para quem se sente apto a dar esse passo, porém, “a fila de espera são meses, só para a primeira consulta são cinco”, exemplifica Cláudia Pinto, também da Renovar a Mouraria, para a seguir questionar: “Como é que alguém sai dos consumos assim?” Na óptica da responsável, “existem vários problemas aqui, que toda a gente consegue identificar”. Essa não é a questão. O que acontece é que os decisores não se questionam “sobre as soluções sobre o processo de integração, quando essa deveria ser a principal premissa”, defende.
Aliados aos consumos estão os problemas de saúde mental, tornando frequentes os episódios de psicose no bairro. “Muitas pessoas passaram décadas de situações de discriminação, violência, não confiam nos outros e agora estão em ciclos muito difíceis.” Para os moradores de longa data e turistas de passagem são episódios que criam desconforto e a muito falada sensação de insegurança. À vulnerabilidade juntam-se os pequenos furtos, o crime mais frequente na zona, de acordo com a Polícia de Segurança Pública.
“Nunca vamos ter um polícia em cada rua”
Em entrevista à Time Out, o comandante da 1.ª divisão da PSP, Iúri Rodrigues, que chegou à esquadra da Rua da Palma em Outubro, explica que, face à complexidade, à demografia e mesmo às queixas dos moradores, há um modelo específico de actuação da polícia para o Benformoso e a zona envolvente. “Os indicadores que temos vêm de informação estatística, sobretudo, embora saibamos que a realidade não se esgota nisso. Neste eixo, temos muitas situações de sentimento de insegurança, mas muitos dos crimes, a maioria, são furtos de carteiras. Só que depois temos outros mais graves e aí coloca-se a questão: quantos furtos vale uma violação?”, questiona. “Mesmo que os dados não apontem nesse sentido, o sentimento de insegurança é muito elevado”, insiste, apontando o tráfico, o consumo de droga e o crescimento do número de pessoas sem abrigo como as principais causas desse sentimento generalizado.
Naquilo que considera uma acção local de maior importância não só para o Benformoso, como para outras zonas da cidade, a PSP está a apostar no policiamento de proximidade, sobretudo durante o dia. O plano foi implementado em Janeiro e desenhado ainda antes de ter sido planeada a rusga, de acordo com o subintendente. “Nunca vamos conseguir ter um polícia em cada rua e o problema da insegurança também não se esgota na capacidade de intervenção da polícia. Temos várias reclamações de falhas na iluminação, insalubridade, consumo de drogas… Tenho, no entanto, a convicção de que este é o caminho para esta e outras zonas: manter a proximidade, com quem se sente mais vulnerável, ad aeternum.”
“À noite o Benformoso é outra coisa", comentava Filipa Bolotinha, da Renovar a Mouraria, com a Time Out. “A zona fica deserta. E é muito fortuito estarmos no sítio certo à hora certa”, refere o comandante Iúri Rodrigues. Moradores e comerciantes da zona contam que é comum ver a polícia passar de carro, nas ruas mais centrais, e seguir o seu caminho. “Muitas vezes a polícia passa mesmo em frente do tráfico e não faz nada. Estamos fartos que isto aconteça aqui”, relata Farid Patwary. Sohel Mia, do Royal Spicy, por sua vez, conta como já assistiu a traficantes serem detidos por pequenos furtos (como o do seu próprio computador portátil) e libertados horas a seguir. “A polícia não faz nada”, critica. “Já houve vários casos de roubos e agressões em que nada aconteceu. Estamos sem esperança em relação à polícia."
Sobre o tema, Iúri Rodrigues afirma que a PSP tenta “manter a proactividade no que toca ao tráfico”. “Mas sabemos que é uma luta inglória se não se actuar no lado do consumo. Enquanto houver consumo o tráfico vai existir”, remata. Sobre o assédio a imigrantes mencionado por Sohel Mia no início desta reportagem, a PSP recusa a acusação: “A comunidade estrangeira não é responsável pelo aumento de criminalidade e é tratada de forma igual pela polícia. Na rusga, inclusive, também havia portugueses a serem revistados”, garante, embora existam testemunhos em contrário.
Os resultados deste modelo de policiamento de proximidade serão avaliados em Junho e, sobre as operações especiais de segurança, o subintendente não nega a possibilidade de voltarem a ocorrer no eixo entre o Martim Moniz e o Intendente. Em cima da mesa está ainda a instalação de câmaras de videovigilância na zona, depois de uma mudança de estratégia por parte das autoridades de segurança. “Podemos confirmar que, de facto, nem a Rua do Benformoso nem o Martim Moniz estavam incluídos no plano inicial. É importante referir que o plano foi elaborado entre 2019 e 2020 e, à época, estas zonas não foram consideradas prioritárias em comparação com outras que o foram", afirmava uma fonte da PSP em Janeiro à CNN. A realidade mudou.
“É preciso olhar para esta rua”
No mês passado, Sohel Mia combinou uma reunião com outros comerciantes da Rua do Benformoso. O objectivo era encontrar soluções para melhorar o ambiente na zona. “É preciso olhar para esta rua, é preciso que as coisas mudem. Não foi só a operação do dia 19, a polícia está constantemente a vir aqui para assustar, revistar-nos. Mas é preciso que o sistema de acolhimento funcione, que não se leve tanto tempo a conseguir os documentos de residente... As pessoas vêem-se sem direitos, nem sempre é claro o que os serviços pedem… Nós pagamos impostos, abrimos negócios, constituímos família, trabalhamos”, enumera o gerente.
“Quando abri o restaurante, em Janeiro de 2024, o feedback foi fantástico. As pessoas vinham ao Benformoso de propósito, comer, fazer compras, conviver. Sinto que trouxe uma mudança para esta rua, outro ambiente. Por isso, quando falam dos imigrantes como o problema, somos o alvo errado. Se experimentassem tirar os traficantes de droga um mês desta zona, nada aconteceria aqui, seria a paz. Mas a polícia tem de nos ajudar”, pede o proprietário, de telemóvel na mão, enquanto mostra uma das ideias debatidas na reunião de comerciantes. A imagem é de uma cobertura de guarda-chuvas coloridos, como os que existem na chamada rua cor-de-rosa, no Cais do Sodré. “É muito pouco, mas o que podemos mais fazer? Queremos falar com a Câmara, apresentar e discutir um plano. É preciso mudar isto”, insiste Sohel Mia.
O imobiliário, desde o Intendente
A par das mudanças sociais, a pressão para viver entre a Mouraria e o Intendente é cada vez mais alta. O negócio do aluguer de camas, muitas vezes em beliche, é relatado por todos, além de outras formas de fazer dinheiro com a imigração, como os “vistos de trabalho vendidos por 19 mil euros” ou o pagamento por “qualquer tipo de ajuda ou documentação”, descreve Farid Patwary, que todos os dias partilha nas redes sociais vídeos do seu Portugal Today, uma espécie de telejornal/programa informativo seguido por perto de 50 mil pessoas.
Nos últimos anos, a zona do Intendente – para onde conflui o Benformoso –, assistiu ao fecho de cafés, bares e colectividades (a Casa Independente é um dos últimos sobreviventes e tem como prazo de saída o final deste ano) para dar lugar a muitos alojamentos locais e hotéis, e à subida dos preços do imobiliário. Em 2024, os valores do mercado de habitação continuaram a subir, com o preço médio por metro quadrado em Santa Maria Maior (onde se situa grande parte da Rua do Benformoso) a ultrapassar os 5300 euros, “reflectindo uma forte tendência de valorização”, de acordo com os dados fornecidos à Time Out por Sandra Bértolo Fragoso, directora de empreendimentos da imobiliária Remax Siimgroup. Sem surpresas. São zonas que “beneficiam de localizações muito centrais, património histórico e oferta cultural diversificada, factores que têm contribuído para a sua valorização contínua”, acrescenta o grupo.
Outros motivos a atrair novos investidores ao eixo Intendente-Mouraria-Martim Moniz foram a “regeneração do Intendente”, a “melhoria das infra-estruturas”, “a revitalização do comércio local” e “o aumento da segurança”. Sob o pano da regeneração, recorde-se que, há pouco mais de um ano, foi também aprovado o novo projecto para a Praça do Martim Moniz, que, segundo a autarquia, deveria estar pronta em 2026.
Com maior detalhe sobre a zona do Martim Moniz, a Confidencial Imobiliário indica que, do lado de Arroios, o valor médio por metro quadrado em 2024 foi de 4751 euros, enquanto no perímetro de Santa Maria Maior o valor sobe para 5094 euros. Entre 2023 e o ano passado, o volume de investimento no mercado imobiliário (por parte de particulares) aumentou 18% na primeira freguesia e 3% na segunda.
Bem no centro da Rua do Benformoso está uma das mais antigas inquilinas da zona, a Casa da Covilhã. Há 80 anos no mesmo edifício, não sabe por quanto tempo mais conseguirá ficar por aqui. “Ainda não recebemos sinais nesse sentido, mas um dia vamos ter de sair. Sabemos que vai acontecer. É pena, porque, por um lado, é uma forma de manter aqui algo de português”, afirma José Hermínio Rainha, tesoureiro da colectividade.
Com os elementos da direcção na faixa entre os 65 e os 80 anos, garantir a continuidade desta casa, que serve almoços à terça-feira, que chegou a ceder o salão para aulas de português à comunidade do Bangladesh e que organiza convívios ao fim-de-semana, também não parece tarefa simples. “Quando estes desaparecerem, isto acaba. As pessoas têm as suas vidas, o ciclo destas casas está a terminar”, analisa António Chorão, vendo na mudança uma certa perda de sentido de vizinhança no bairro.
Por quererem remar contra isso, retomaram em Fevereiro as sessões de fado, um clássico cancelado em 2023, porque “as pessoas ganharam medo de sair à noite aqui”. “Fizemos pela primeira vez uma sessão de fados à hora do almoço. Foi a maneira que encontrámos de não terminar com esta actividade e correu muito bem, apareceram ainda umas 50 pessoas”, dá conta António Chorão, frisando que nunca tiveram problemas com “residentes do Bangladesh ou do Nepal”. “São gente calma, não fazem mal a ninguém. Agora, as pessoas ouvem as notícias, viram a operação da polícia e tudo o mais, e ficam com medo.”
Também a associação Renovar a Mouraria acredita que juntar as pessoas, criar momentos de vizinhança, pode ser uma arma contra a divisão que se acentua no bairro, e é nisso que estão a apostar desde Fevereiro, através de um reforço da programação. “Para nós, é quase uma última oportunidade para tentar perceber se vamos conseguir fazer mais pessoas, e também mais instituições, conectarem-se. Choca-me, por exemplo, que a Câmara de Lisboa não tenha uma palavra a dizer sobre este território. Não sei quantas associações já fecharam nas redondezas nos últimos dez anos, e nós temos este espaço disponível. Queremos que não seja só nosso. Este trabalho em rede é a única forma de resistência que podemos continuar a alimentar”, remata a presidente da associação.